Novas regras em vigência desde março alteraram os procedimentos da Fundação Nacional do Índio (Funai) na análise de grandes obras de infraestrutura e reacenderam o temor nos empresários de um freio no licenciamento ambiental para a construção de usinas hidrelétricas e rodovias em terras indígenas, principalmente na Amazônia. Associações do setor elétrico advertem que as regras podem travar o último pacote de medidas anunciadas pelo governo para simplificar trâmites do licenciamento.
Em outubro do ano passado, a publicação de seis portarias interministeriais prometeu agilizar a análise socioambiental de grandes projetos de infraestrutura. O objetivo era tornar mais previsível e bem administrado o processo de licenciamento em quatro órgãos frequentemente consultados pelo Ibama - a Funai, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Ministério da Saúde e a Fundação Palmares.
A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, disse na ocasião que o estabelecimento de "regras claras" acabava com o "achismo ambiental" por parte desses órgãos.
No entanto, de acordo com sua instrução normativa nº 1, de 2012, a Funai estabeleceu procedimentos que pegaram os empresários de surpresa. O Rima - relatório simplificado do estudo de impacto ambiental que precisa ser feito para cada projeto - deverá ser encaminhado às tribos afetadas "em linguagem acessível ou com tradução para línguas indígenas".
Além disso, segunda a norma, as comunidades poderão opinar sobre os futuros empreendimentos em consulta "prévia, livre e informada".
A lista de preocupações continua. Equipes técnicas e empresas de consultoria com "produtos pendentes, insatisfatórios ou reprovados na Funai" poderão ser proibidos de participar de novos estudos.
Por fim, o órgão de proteção aos índios concede a si mesmo o direito de pedir "complementações" ou "revisões parciais" dos estudos, quando o pacote do ano passado - especificamente a portaria interministerial nº 419/2011 - restringia essa prerrogativa apenas ao Ibama.
"Quando foi publicada, a portaria foi celebrada como um avanço. Com essa linguagem, a instrução normativa volta a flexibilizar prazos que estavam sendo regulamentados e constitui um retrocesso", diz Claudio Sales, presidente do Instituto Acende Brasil, um observatório do setor elétrico. Para ele, o principal ponto negativo da medida é que reforça o "papel discricionário" da Funai na análise dos pedidos de licenciamento ambiental.
"Há etapas e procedimentos novos. Isso pode acentuar a morosidade do processo de licenciamento, que já é lento", diz o coordenador do Fórum de Meio Ambiente do Setor Elétrico (Fmase), Marcelo Moraes.
"O problema é que a instrução normativa da Funai vai de encontro ao espírito do que se havia anunciado", completa o executivo, que levará esses assuntos a uma reunião marcada para hoje com o ministro de Minas e Energia, Edison Lobão.
A questão atinge em cheio os planos do ministério comandado por Lobão. De acordo com a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), responsável pelo planejamento do setor, cerca de 70% do potencial hidrelétrico brasileiro que ainda não foi explorado está na Amazônia. E metade do potencial, aproximadamente, encontra-se em terras indígenas. As usinas de Belo Monte (PA) e Teles Pires (MT/PA) são só as primeiras de uma longa lista. São Luís do Tapajós (AM) deve ser o próximo projeto com potencial explosivo.
A licença de Teles Pires chegou a ser revogada, durante duas semanas, por decisão da Justiça Federal no Mato Grosso. Uma das alegações era justamente que as tribos Kayabi, Apiaká e Munduruku não foram ouvidas adequadamente antes da emissão da licença pelo Ibama. A decisão judicial só foi cassada anteontem.
Em nota técnica, o Fmase combate os procedimentos estabelecidos pela Funai. Segundo a entidade, já existe a previsão de fornecer os estudos socioambientais em linguagem acessível às comunidades afetadas, mas a tradução de documentos deve ser exigida "apenas em caráter de excepcionalidade". Devido à complexidade das línguas indígenas e à falta de profissionais com conhecimento delas, a regra pode acabar encarecendo todo o processo de licenciamento, além de ter reflexos nos seus prazos.
Quanto ao mecanismo de consulta prévia, o fórum do setor elétrico lembra que a legislação já prevê a realização de audiências públicas para a apresentação dos estudos, nas quais os interessados podem opinar livremente.
Há queixas ainda sobre as restrições a especialistas, considerada "descabida porque diferentes estudos não guardam relação entre si e eventual reprovação dos mesmos não legitimam a Funai a desabilitar um técnico ou uma empresa de consultoria a exercer suas atividades profissionais".
Outro ponto que gerou controvérsia envolve a área de abrangência para intervenção da Funai no licenciamento. A portaria 419 fixava limites para determinar essa área de influência, que podia chegar a 40 quilômetros, no caso de rodovias ou de hidrelétricas.
Na instrução normativa, contudo, a Funai volta a usar termos mais genéricos e afirma que as novas regras valem para empreendimentos localizados em terras indígenas ou "em seu entorno". Com isso, teme-se a abertura de brecha para o órgão entrar na análise de inúmeros empreendimentos de infraestrutura, argumentando que há possibilidade de impactos socioambientais.
Marcelo Moraes, do Fmase, diz que os procedimentos da Funai podem até ser questionados nos tribunais. "Mas queremos resolver isso no âmbito administrativo, conversando com os órgãos envolvidos, sem a necessidade de judicialização", acrescenta.
Procurado pelo Valor, o Ibama não quis comentar as exigências definidas pela Funai.
Usinas não podem colocar em xeque modos de vida das tribos, diz Funai
A Fundação Nacional do Índio (Funai) rejeita as críticas do setor elétrico e diz que os trâmites definidos em sua instrução normativa não vão provocar atrasos no licenciamento de grandes obras de infraestrutura.
"Não concordo com isso. Não estamos burocratizando, pelo contrário. Sem a instrução, não teríamos como atender aos prazos da portaria interministerial", afirma o diretor do Departamento de Promoção ao Desenvolvimento Sustentável da Funai, Aloysio Guapindaia.
Guapindaia admite rever "inconsistências que precisem ser sanadas", mas defende as regras da autarquia. Para ele, o desenvolvimento "bastante acelerado" da economia e da infraestrutura representam um desafio à proteção das comunidades indígenas.
"A Funai busca assegurar os direitos dos povos indígenas, e isso não deve ser conflitante com o desenvolvimento do país", afirma o diretor do órgão. "Não entendemos que o desenvolvimento seja contraposto ao desenvolvimento das populações indígenas, mas é preciso respeitar seus modos de vida tradicionais. Uma hidrelétrica que afete terra indígena não pode colocar em risco, sob hipótese nenhuma, a sobrevivência daquele grupo nem colocar em xeque seus modos de vida. Se colocar em risco, a Funai vai dizer ao Ibama que aquele empreendimento é inviável."
Segundo ele, a portaria interministerial 419/2011 já previa que órgãos auxiliares no licenciamento publicassem normas internas para se adequarem às novas orientações. Guapindaia diz que não houve excessos da Funai, conforme reclamação das associações do setor elétrico.
"A Funai tem a atribuição, pelo próprio Conama [Conselho Nacional de Meio Ambiente], de se manifestar com relação ao componente indígena. Ela pode, sim, dizer ao Ibama que este ou aquele estudo não é suficiente para concluirmos a nossa análise", afirma.
Quanto às críticas, o diretor diz que a consulta prévia apenas formaliza uma prática que a Funai já vinha adotando, buscando ouvir as comunidades indígenas para definir medidas compensatórias ou mitigatórias das obras de infraestrutura. Ele defende a possibilidade de veto da autarquia a determinas equipes técnicas e empresas de consultoria na preparação de estudos.
"É necessário fazer tudo em comum acordo com os indígenas. Afinal, estamos entrando na casa deles. A recusa, em última instância, não é da Funai. Quem estabelece esses vetos são os próprios índios."
(Por Daniel Rittner, Valor Econômico / IHU On-Line, 12/04/2012)