Temos o objetivo de apresentar algumas reflexões a respeito do conflito em torno da posse e da luta pela terra no Pontal do Paranapanema (SP) no século 21, renovado pelo processo de expansão do capital agroindustrial canavieiro por meio da territorialização dos canaviais e das plantas agroprocessadoras.
Os conflitos estão sendo intensificados e redimensionados quanto aos métodos, com a manutenção do latifúndio improdutivo e terras griladas, que ainda se mantém a base de 450 mil hectares. Ou seja, as terras com pendências jurídicas (declaradamente devolutas, parcialmente regularizadas etc.) são alvo da cobiça de outra fração da burguesia agrária, industrial, financeira etc.
A configuração espacial passa por mudanças, e as novas formas de exploração da terra com a expansão da cana-de-açúcar e o eixo centrado no conflito pela posse da terra, coloca novos elementos para pensarmos o território em disputa do Pontal do Paranapanema, no século 21.
Se nos basearmos nas 4 mil famílias que se encontram nos acampamentos existentes à beira das estradas do Pontal do Paranapanema ou parte delas que permanecem nas periferias dos pequenos núcleos urbanos à espera de oportunidade para comporem os acampamentos ou serem selecionados, tem-se um contingente de sem terras, que aguardam negociações, licenciamento ambiental e outras providências. Considerando-se somente as terras que aguardam desfecho final, 5.800 hectares poderiam estar beneficiando o acesso à terra de mais de 200 famílias.
Esse cenário habitado pela ausência de política pública para acesso a terra, a começar pela inexistência da reforma agrária, tampouco cenários que mantenham a limitada política de assentamentos por meio de desapropriações ou compra de terras é fundamentado no histórico das lutas, é regido no marco da violência e é um dos principais desafios para o futuro. É por isso que não podemos dissociar as disputas territoriais e a grilagem no Pontal do Paranapanema das formas de uso da terra.
Portanto, é nesse contexto que ganha significado territorial e estratégico a via de mão dupla das ações que o Estado e a burguesia estão apostando por demarcar o leito político das disputas territoriais: de um lado a legalização da grilagem via o Projeto de Lei 578, aprovado em todas as comissões temáticas, na Assembleia Legislativa e somente aguardando os acordos para ser submetido a plenário, e a legitimação protagonizada pelo capital agroindustrial canavieiro quando aposta na territorialização das áreas de plantio nas terras com pendências jurídicas ou mesmo já declaradas públicas [1].
Mesmo que esse processo se efetive por meio da desapropriação de fazendas, vinculado às tramitações jurídicas demoradas, portanto, não como dispositivo vinculado à reforma agrária e à Constituição Federal, é o que tem viabilizado a presença de 108 assentamentos que se territorializam em 15 municípios e aglutinam aproximadamente 146.000 hectares e 6.425 famílias.
É importante registrar que, historicamente, foi sendo incorporada à sociedade hegemonizada por grileiros/latifundiários/pecuaristas, nos anos 1950/60, e grandes empresas da construção civil nos anos 1970/80, que atuavam na região na construção das hidrelétricas de Taquaruçu, Rosana e Porto Primavera, um conjunto de trabalhadores migrantes.
É impossível desvincular a concentração fundiária das lutas de resistência e das ocupações de terras quando abordamos a história do Pontal do Paranapanema e, consequentemente, ignorar os problemas políticos em torno da questão agrária, cada vez mais viva, mais emergente, que, aliás, é o retrato do Brasil.
Depois das inúmeras reivindicações dos trabalhadores junto às autoridades (prefeito, Igreja, vereadores, sindicato etc.), no dia 15 de novembro de 1983, ocorreu a ocupação das fazendas Tucano e Rosanela de “propriedade” da construtora Camargo Corrêa e da empresa Vicar S/A Comercial Agropastoril por aproximadamente 350 famílias.
A sucessão das lutas dos trabalhadores com as ocupações, como da Água Sumida em 1985 (Teodoro Sampaio), resultando em assentamento; em 1988, Areia Branca (Marabá Paulista), e os demais acampamentos, ganhou nova configuração com a atuação do MST no Pontal do Paranapanema a partir de julho de 1990, com a ocupação da fazenda Nova do Pontal, no dia 14, com a presença de 700 famílias (Rosana). Depois de despejadas, as famílias foram ameaçadas por jagunços contratados diretamente pelos fazendeiros para que evacuassem a área, porém, 450 famílias resistiram às margens da rodovia SP-613 e retornaram aos barracos do então acampamento Nova do Pontal, depois João Batista da Silva.
Em meio às disputas, tensionamentos e enfrentamentos de toda ordem, desde os tribunais, ocupações de terras, de prédios públicos, marchas e a violência física patrocinada pelos grupos armados a mando dos grileiros e perseguições, é que os assentamentos rurais têm mudado a qualidade de vida dos assentados. Por meio das ocupações organizadas pelo MST e também pelas demais organizações que se formaram produto de dissidências, mesmo contando com poucos recursos e inconstantes, tampouco política agrícola específica e sem planejamento prévio afinado aos períodos de plantio, tratos culturais e colheita, essa história que vem sendo construída, tece novas urdiduras.
Os sinais evidentes de sucesso dos assentamentos são ofuscados, de um lado, pela ausência de projetos duradouros e que tenham na sua ossatura a reforma agrária, ampla e massiva nas terras improdutivas, devolutas, e que faça valer os dispositivos constitucionais da função social da propriedade da terra. E, por outro, o total descaso por parte dos setores dominantes e formadores de opinião, que hegemonizam o poder político-econômico no Pontal do Paranapanema, a começar pelos latifundiários, políticos apaniguados e, em diversas situações, o Judiciário.
Em reação a isso, os assentados e os movimentos sociais, particularmente o MST e o Movimento dos Agricultores Sem Terra (MAST), que protagonizam esse processo, revelam, reivindicam e denunciam além do passivo social que os latifundiários têm com a sociedade em geral e com os trabalhadores sem terra em particular, o passivo ambiental, pois o ritmo acelerado do desmatamento para territorializar a pecuária extensiva, o abandono das terras, a ausência de manejo e tratos adequados têm produzido efeitos desastrosos às terras, às nascentes, aos corpos d’água, contribuindo para o assoreamento dos rios, o que em conjunto, impacta a fertilidade natural e resultam em vários processos erosivos de grande magnitude e de desertificação.
De forma oportuna, o capital se apropriou dessa avaliação pública dos movimentos sociais, de sorte que, numa oportunidade específica, um empresário do grupo Carolo, que à época investia na aquisição da Destilaria Bela Vista e na implantação de outra planta agroprocessadora, disse: “Como argumentam os trabalhadores, nós precisamos fazer das pastagens degradadas áreas produtivas, e a cana-de-açúcar é a alternativa ideal”.
Estava implícito nessa avaliação, que o capital se apresentava para salvar a lavoura, aplicar o tratamento correto e os procedimentos técnicos adequados, tais como os terraços embutidos para recuperar as terras com o intuito de viabilizar a expansão do plantio da cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema, sendo, pois, essa possibilidade mais oportuna para apostar no desenvolvimento econômico e na ampliação da oferta de empregos numa região sufocada por presídios e elevados índices de trabalhadores desempregados.
Basta atentarmos para a situação no início do século 21 (Mapa 2), em comparação à demarcação territorial para o final da primeira década (Mapa 1). As informações extraídas a partir da interpretação das imagens de satélite (Mapas 1 e 2), mostram que em 2002, havia 70.305 hectares e, em 2008/2009, 345.500 hectares com cana-de-açúcar.
A fúria alcoolizante [2] do capital agroindustrial, além de legitimar a posse ilegal das terras (devolutas e improdutivas) nas mãos dos latifundiários e fazendeiros, está garantindo igualmente, para si, a base material para seus futuros investimentos, expansão da área de plantio sobre terra planas mecanizáveis, com disponibilidade de água (superficiais, subterrâneas) e capacidade de moagem.
E o outro desdobramento também importante dessa ação é que está apostando no desmonte dos assentamentos e na fragilização da cultura e resistência camponesas, ao atraí-los para o interior do processo produtivo da matéria-prima e ao subordiná-los à exploração social, no momento em que os insere no ambiente proletário do processo social de trabalho.
O agronegócio canavieiro não promete, mas está ofuscando a luta pela terra e abafando as disputas territoriais no Pontal do Paranapanema O aparente oportunismo desse processo protagonizado pelo capital agroindustrial canavieiro objetiva, em primeiro plano e em seu fundamento central, viabilizar o projeto de classe burguês, de fazer da submissão, dominação, exploração do trabalho e dos mecanismos especulativos da acumulação de capital.
É por isso que tanto a legitimação quanto a legalização da grilagem não podem ser entendidas separadamente, pois é nessa articulação que o Estado e a burguesia dão identidade ao projeto de dominação de classe. Esse é o aspecto central em torno do qual está sediado o conflito social no Pontal, antes somente pelo acesso às terras griladas, agora, além disso, passando a compor a equação da luta de classes a burguesia agroindustrial ou o agronegócio canavieiro, somando força com os latifundiários/pecuaristas.
Todavia, ao mesmo tempo em que o capital se consolida, as lutas de resistência dos trabalhadores, apesar de fragilizadas, indicam que o tecido social também se complexifica, o que faz com que a luta pela terra ou os conflitos que a envolvem ganhem novos elementos [3]. Como sabemos, o expansionismo do agronegócio para o Pontal mobilizou um conjunto diverso e amplo de trabalhadores para o corte da cana, tais como desempregados urbanos, acampados, assentados, e um contingente expressivo de migrantes do norte-nordeste do país, originários do Maranhão, inclusive das áreas de expansão das pastagens que foram “empurradas” pela cana-de-açúcar no Pontal do Paranapanema.
Mesmo que uma parte significativa desses migrantes seja, na origem, constituída de posseiros, camponeses com pouca terra, extrativistas, estão migrando com as famílias e, segundo informações iniciais das pesquisas, estão permanecendo na região após a safra. Esses trabalhadores são potenciais demandantes de terra e poderão engrossar as fileiras dos movimentos sociais envolvidos na luta pela terra.
Por isso, é importante repor em discussão o fato de que o avanço dos canaviais para o oeste de São Paulo, em particular para o Pontal, não está colidindo com os interesses dos pecuaristas, uma vez que se estabelece entre as partes a mediação do pagamento da renda da terra e para os pecuaristas, que efetivamente apostam nessa atividade, há como se manter.
Apenas nas situações em que haja coincidência das pastagens degradadas, terras improdutivas em perímetro com pendências jurídicas (normalmente vinculados à UDR), aí sim o capital, além de beneficiar-se dos baixos preços do arrendamento, está também legitimando o uso produtivo da terra e garantindo prioridade na compra, antes que seja aventada qualquer proposta de destinação para assentamentos rurais.
Nesse vale tudo, são cada vez mais frequentes as denúncias de desmatamento, incêndios criminosos de bosques e de pastagens em áreas de preservação permanentes (APP), de reserva legal (RL). Mas há outras faces da aliança latifúndio/capital agroindustrial canavieiro que, contraditoriamente, ao mesmo tempo em que fortalece o agronegócio, fragiliza os trabalhadores e os projetos alternativos de organização social fundamentados, por exemplo, nos assentamentos rurais oriundos da luta pela terra e pela reforma agrária.
O processo de expansão e consolidação da agroindústria canavieira no Pontal do Paranapanema (SP), talvez seja o exemplo mais ilustrativo das disputas de classes em pauta, cujo epicentro é a questão da terra, da posse da terra, dimensão que evidencia a iminência da questão agrária e dos conflitos sociais no Brasil do século 21.
O primeiro registro revela a atração dos camponeses ao circuito produtor de cana-de açúcar, via Programa de Integração Rural do Banco do Brasil, denominado BB-Convir [4], com o aval do Itesp, por meio da Portaria N°77/ 2004, que permite o cultivo de culturas para fins de processamento industrial até determinados limites pré-estabelecidos do lote.
Das pesquisas, retiramos algumas compreensões desse processo e o que chama atenção é que o capital, no caso a Destilaria Alcídia, se beneficiou do ponto de vista econômico, porque, ao ser avalista dos R$ 18.000,00 a que os assentados que participam do Programa têm direito, via Programa Nacional de Fortalecimento da agricultura Familiar (Pronaf-D), também se responsabilizava pelos pagamentos respectivos à produção da cana no lote.
Entretanto, o capital se beneficia também porque controla o processo desde o corte, medição, carregamento, transporte, pesagem na balança, fixação do preço/tonelada, e aos camponeses fica a desconfiança e a certeza dos prejuízos com essa desastrosa alternativa de renda (THOMAZ JUNIOR, 2009).
Na verdade, os camponeses estão longe de dispor de apoio e de políticas efetivas de estímulo à produção de alimentos, semelhantes às facilidades que os empresários canavieiros têm, para se apoderarem dos recursos do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf-D), via esquema barriga de aluguel, no qual os assentados cumprem o papel de viabilizar o uso desses recursos para o plantio de cana-de-açúcar. Quer dizer, o negócio é viabilizado em atendimento às prerrogativas do Pronaf, sem que haja benefícios claros e conhecidos para os assentados.
Os camponeses não têm controle dos custos e gastos, portanto, dos pagamentos ou o que deveriam receber da Destilaria Alcídia, com base nas sobras, após o desconto de 50%, 30%, 20%, do valor do empréstimo total de R$ 18.000,00, respectivamente às três safras subsequentes (2005/06, 2006/07, 2007/08). Poucos obtiveram ganhos bem abaixo do esperado, enquanto a maioria não obteve ganhos, estando, com base na contabilidade da Destilaria Alcídia, endividados com a empresa.
Em meio a esse processo de expansão do agronegócio canavieiro no Pontal, estão se registrando impactos negativos marcantes para a luta pela terra. A ausência de políticas públicas que estimulem concretamente a produção de alimentos, o endividamento de parte dos assentados, a inexpressiva política de assentamentos do governo federal, a letargia do Itesp na operacionalização jurídica e técnica dos processos, a imobilidade da Cooperativa de Comercialização e Prestação de Serviços dos Assentados da Reforma Agrária do Pontal (Cocamp) – sem nunca ter funcionado, como planejado, deixam as portas abertas para as ações do capital para se beneficiar das fragilidades das organizações, do empobrecimento dos camponeses e dos bolsões de desempregados.
As contradições desse processo põem em destaque a trama política do trabalho, redesenhada pelos recentes avanços do capital, que produzem rupturas marcantes no território do Pontal do Paranapanema.
Ou seja, o capital não lida somente com assalariados puros, tanto na planta fabril, quanto nas atividades agrícolas, subsume os camponeses, sobretudo por saber que está apostando na fragilização do seu inimigo de classe, sem necessariamente desterreá-lo, exatamente porque o atrai para seu campo, mantendo-o subsumido ao processo produtivo e de gestão agroindustrial, e controlado para as ações futuras pelo acesso a terra. É necessário enfrentar os desafios do presente e apostar nas transformações necessárias!
Bibliografia
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Notas
1-Esse assunto está desenvolvido em Thomaz Junior, 2007a; 2009. O nome original do artigo é "Disputas territoriais e grilagem no Pontal do Paranapanema (SP)", publicado no relatório da Rede Social de 2011
2 Cf. THOMAZ JUNIOR, 2008.
3 Em nível de Brasil, esse assunto é abordado por Oliveira (2003).
4 O BB Convir é um convênio de integração rural entre o Banco do Brasil e empresas integradoras ou cooperativas de produção agropecuária que industrializam, beneficiam ou comercializam produção agropecuária. Pelo convênio, o BB financia os produtores rurais integrados a essas empresas, em custeio e investimento, com diversas linhas de crédito rural.
(Por Antonio Thomaz Junior*, MST, 23/03/2012)
* Coordenador do CEGeT/FCT/UNESP/Presidente Prudente e pesquisador PQ/CNPq