Em uma década, 12 mil km2 de floresta - ou oito vezes o tamanho da cidade de São Paulo - desapareceram para dar espaço a mais de 2 milhões de cabeças de gado em São Félix do Xingu, no sul do Pará. O título de campeão de desmatamento na Amazônia levantou barreiras de mercado contra a carne do município, que detém o maior rebanho do País.
Os caminhões lotados de bois e vacas não vão deixar de marcar a paisagem da cidade e da balsa que atravessa os Rios Fresco e Xingu várias vezes ao dia, a caminho dos frigoríficos, preveem representantes do governo e de mais de uma dezena entidades da sociedade civil que trabalham na construção de um modelo econômico sustentável para o município. Mas a cena ficou um pouco mais promissora no lugar em que tudo parece ser gigante, a começar pela extensão do município, com o dobro do tamanho do Estado do Rio de Janeiro.
A pressão do mercado, aliada à dos "olhos" dos satélites, inviabilizou em grande parte a forma mais barata de aumentar a produção, que consistia em derrubar floresta para criar pastos num lugar onde a terra era barata e quase ninguém tem títulos válidos de propriedade.
Os satélites do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), que haviam registrado o ritmo acelerado das motosserras, colheram também os primeiros sinais de mudança: o desmatamento caiu quase 60% entre 2010 e 2011, a 146 km2 durante o ano.
"Ninguém deixou de desmatar porque é bonzinho, mas porque não tem comprador para o produto, o mercado está cobrando", registra o secretário de Meio Ambiente da cidade, Luiz Alberto de Araújo.
Crédito
A freada no desmatamento ainda não foi suficiente para tirar São Félix do Xingu da lista dos municípios que mais abatem a florestas e restabelecer o crédito na região, cortado desde o início de 2008, em meio às medidas de combate à ação das motosserras.
Mas sinais mais sutis mostram que o município está no caminho de trocar o título de campeão de desmatamento pelo de grande produtor de cacau.
A produção da amêndoa da fruta -matéria-prima para a fabricação do chocolate - quadruplicou em cinco anos e alcançou 1,5 mil toneladas no ano passado, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais importante: o cacau vem sendo usado para recompor a vegetação em áreas desmatadas e garante fonte de renda, sobretudo para os pequenos produtores, com menos de 100 hectares de terra.
Em maior número (mais de 40% das propriedades), eles representam menos de 4% do território de São Félix, e são parte importante na engenharia de sustentabilidade ambiental do território.
A cerca de duas horas de distância, ou 34 quilômetros do centro da cidade pelas estradas de terra esburacadas do município, a entrada da propriedade de Jaime Martins de Sousa é de um verde intenso. Com orgulho, ele mostra a floresta que cresce vigorosa onde havia pasto até pouco tempo atrás. As margens de rios estão protegidas, há uma área de pasto recuperada para as vacas que ainda cria e uma produção de cacau, que cresce à sombra de outras espécies nativas.
"Dentro de pouco tempo, a capoeira vai recuperando e em dois anos já está dessa grossura", diz Sousa, que nem tem banheiro em casa, apontando para as encostas dos morros em volta, onde a floresta já cresce alta. A declaração põe em xeque um dos tabus do debate da reforma do Código Florestal em votação na Câmara, segundo o qual a exigência recuperação de Áreas de Preservação Permanente (APPs), já aprovada no Senado, inviabilizaria a vida dos produtores.
Macacos
Além da falta de estradas para escoar as amêndoas, o principal obstáculo das plantações de cacau ainda são os macacos, que comem, em algumas propriedades, até 40% da produção de frutos. É um dos problemas em que a precária assistência técnica tem de lidar. Uma calda preparada a base de pimenta tem sido a melhor alternativa, nesse caso.
"Tem pessoas de todo tipo aqui. Conheço gente que, se tivesse 20 alqueires de floresta, iria derrubar 30. Eu me arrependi de ter derrubado para fazer pasto, mas, para recuperar, basta pôr uma cerca e dar uma ajuda, é muito fácil de pegar", diz um outro mineiro instalado no lugar, o também pequeno produtor Altamiro Pereira Lourenço. "Com gado em terra pequena, não dá para viver; diversificando dá pra viver, é bom."
Lourenço cria peixes e produz polpas de frutas da região, além do próprio cacau. O troféu que guarda na propriedade é uma sumaúma gigante, na parte de mata que acompanha a plantação de cacau.
"A expectativa é de que a produção cresça, porque garante renda e contribui para a redução do desmatamento", diz Iron Eterno de Faria, presidente da Cooperativa Alternativa dos Pequenos Produtores Rurais e Urbanos (Cappru). Considerando a produtividade média de cada pé de cacau na região, um alqueire de terra, ou cerca de cinco hectares, pode render R$ 31 mil por ano, mais do que a renda proporcionada pela criação de gado na mesma área, calcula. Uma oportunidade também para o País, que ainda importa 50% do cacau que consome.
Negociações
Na quinta-feira, Faria participou de reunião com representante da multinacional Cargill, maior compradora de cacau no Brasil. As negociações indicam que a produção de cacau, restrita a menos de 20 km2, pode alcançar 500 km2 (50 mil hectares) nos próximos anos, dependendo da oferta de sementes de boa qualidade e assistência técnica. Isso significaria multiplicar por 200 a produção atual, de acordo com estimativas preliminares. Atualmente, o cacau produzido na região vai para Itabuna, onde as amêndoas são processadas.
As negociações vêm sendo acompanhadas pelo cuidado de não transformar o cacau em monocultura. Seria arriscado para os pequenos produtores locais, porque o preço produto está sujeito a instabilidades do mercado internacional.
Por ora, os médios e grandes produtores não parecem muito interessados em investir em cacau. Diferentemente da criação de gado, o cultivo do cacau exige cuidados frequentes e mais gente trabalhando.
"Esperamos autorização para compensar a reserva legal em outras áreas", diz o produtor rural Pedro Rodrigues Vieira, que investe em aumento da produtividade das pastagens. "Para o cacau, precisamos de mão de obra, e isso é custoso", avalia.
Motosserras ainda agem em reserva
No início do ano, o secretário de Meio Ambiente de São Félix do Xingu, Luiz Alberto de Araújo, pediu um "voto de confiança" ao Ministério do Meio Ambiente para deixar a lista dos municípios que mais desmatam a Amazônia. Dos três requisitos exigidos pelo ministério, dois haviam sido cumpridos: mais de 82% dos proprietários rurais aderiram ao Cadastro Ambiental Rural, e o desmatamento caiu 85% em relação à média de abate registrada entre 2005 e 2008.
Falta cumprir a terceira exigência, de desmatamento inferior a 40 km2. Em 2011, as motosserras puseram abaixo 145,7 km2 de floresta em São Félix. O Ministério do Meio Ambiente ainda avalia o pedido, com base na dimensão de São Félix do Xingu. O município tem 84 mil km2, mais de 80% deles ainda cobertos por floresta.
O principal foco de desmatamento está na Área de Proteção Ambiental (APA) Triunfo do Xingu, que abriga uma das maiores propriedades rurais do município, uma fazenda do grupo Santa Bárbara, do investidor Daniel Dantas. A fazenda deu entrada do Cadastro Ambiental Rural para liberar a venda de gado para o abate. A APA também abriga assentamentos de reforma agrária.
De acordo com dados do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), o desmatamento na APA cresceu no período em que a taxa do município caia, entre agosto de 2010 e julho de 2011. Passou de 44 para 48 km2 em um ano. Na Área de Proteção Ambiental criada pelo governo do Estado do Pará, a cobertura de floresta é inferior aos 81% de floresta remanescente no município.
Pequeno produtor instalado há 25 anos na APA, Raimundo Freire dos Santos confirma que ainda há produtores abrindo áreas de pastagem na Triunfo do Xingu. Ele participa do conselho responsável pela elaboração de um plano de manejo para a APA, onde ninguém detém título de propriedade. "O melhor negócio era mesmo assinar o pacto do desmatamento, o mercado se fechou até para o pequeno produtor." Ele já recuperou cerca de 20 hectares da propriedade, de pouco mais de 100 hectares, e planta cacau.
O secretário de Meio Ambiente participou da negociação do pacto contra o desmatamento, assinado em agosto do ano passado. Apesar de ter assinado um pedido de "voto de confiança" para o São Félix do Xingu deixar a lista dos maiores desmatadores, admite riscos de o desmatamento voltar a crescer. "Não podemos ter ilusão. Só vamos controlar o desmatamento quando tivermos alternativas econômicas sustentáveis."
"Risco existe", reconhece Mirela Sandrini, gerente do Fundo Vale, que patrocina parcerias para o desenvolvimento sustentável no município. "A questão não é só sair da lista, é manter o município fora dela", completou.
Paragominas é o exemplo a ser seguido
"Todo mundo aqui quer ser Paragominas", resume o gerente de hotel Cledson Mendonça, acostumado com o vai e vem de pecuaristas, representantes de ONGs e autoridades na cidade, que tem o município localizado mais ao norte do Pará como modelo a ser seguido.
Paragominas foi o primeiro município da Amazônia a deixar a lista de maiores desmatadores, em março de 2010.
"O que não vai ser sustentável no Pará é Paragominas virar uma ilha de legalidade. Ninguém deve ser diferente de Paragominas", observa o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais do município, Mauro Lucio Costa, em visita a São Félix, na quarta-feira. "São 40 anos de coisas erradas no Estado, que criaram um emaranhado de confusão", avalia.
Para a pecuária, prevê, o único caminho é aumentar a produtividade do gado. Com 8 km2 de pasto em sua propriedade, de mais de 43 km2, o pecuarista experimenta em parcela dos pastos tecnologia que permite a engorda de até 8 cabeças de gado por hectare. A produtividade média em São Félix do Xingu ainda está abaixo de uma cabeça por hectare, diz o presidente do sindicato local, Wilton Batista Costa Filho.
"Por que tem de parar de desmatar? Porque não tem mercado comprador para o produto do desmatamento", resume Costa Filho, engajado em convencer os colegas pecuaristas de São Félix a não apenas aderir ao Cadastro Ambiental Rural como avançar no processo de regularização ambiental e fundiária das propriedades.
Rodízio
Com 30 km2 de pasto, o piauiense Pedro Rodrigues Vieira, "médio" produtor rural de São Félix do Xingu, investiu no rodízio de pastos, que evita a degradação da área e à consequente derrubada de mais floresta. "Entre os produtores médios, todo mundo reclama: antes, a gente trocava de carro todo ano, agora não dá mais", diz Vieira, diretor do sindicato local, reticente em relação ao pacto contra o desmatamento fechado na região. "Hoje não pode nem sonhar em desmatar, não estamos ganhando dinheiro não", completou.
Vieira preencheu o Cadastro Ambiental Rural para liberar a venda dos bois nos frigoríficos. Em janeiro deste ano, cinco caminhões com 90 bois já haviam sido mandados ao frigorífico da JBS em Xinguara, quando a empresa apontou um registro de desmatamento na propriedade. "Um intermediário resolveu, não sei para qual frigorífico foi", revela. O produtor investe no georreferenciamento da propriedade para poder fazer uma nova venda.
São Félix do Xingu ainda não calculou o tamanho do passivo ambiental a ser recuperado às margens de rios e topos de morro e também em áreas de reserva legal. A lista dos municípios que mais desmatam engordou depois da saída de Paragominas e Querência. Reúne hoje 48 municípios.
(Por Marta Salomon, O Estado de S. Paulo / IHU On-Line, 19/03/2012)