Se um desastre nuclear comparável ao de Fukushima atingir uma usina nuclear alemã, as autoridades estarão despreparadas para enfrentá-lo, e projeções científicas mostram que a radiação provavelmente se espalharia muito mais do que anteriormente se pensava. Mas as agências do governo pouco têm feito no sentido de lidar com o problema. Os críticos afirmam que esse atraso é um “escândalo”.
A catástrofe prevista teria início em 1º de dezembro de 2010, um dia frio de inverno. No cenário visualizado pelos cientistas, elementos combustíveis começam a se derreter na usina nuclear Philippsburg 2, no Estado de Baden-Württemberg, no sudoeste da Alemanha. Os engenheiros aliviam a pressão para evitar que o reator exploda, provocando um vazamento.
Durante os próximos 25 dias, nuvens radioativas deslocam-se para o norte, na direção do Vale do Reno, passando pelas cidades de Speyer e Hockengheim, e seguindo para Mannheim e Heildelberg.
O cenário parece ter sido retirado do best-seller alemão “Die Wolke” (“A Nuvem”), mas o fato é que ele foi criado por especialistas do Departamento Federal para Proteção contra a Radiação (em alemão, Bundesamt für Strahlenschutz, ou BfS). Esses especialistas compilaram dados meteorológicos referentes ao local em que se situa a usina nuclear Philippsburg 2, no sudoeste da Alemanha, e a de Unterweser, no norte do país, que já foi desativada.
A seguir eles combinaram esses dados com uma sequência de acontecimentos que lembra o acidente de Fukushima a fim de calcularem como a nuvem radioativa espalhar-se-ia. Os mapas que eles criaram parecem-se com aqueles do Japão há um ano, mas as cidades afetadas não se chamam Namie, Odaka ou Tomioka, mas sim Linkenheim-Hochstetten, Schwanewede e Bremerhaven.
O aspecto mais preocupante desse estudo, que foi divulgado no outono europeu passado pelo Ministério Federal do Meio Ambiente, Conservacionismo e Segurança Nuclear (em alemão, Bundesministerium für Umwelt, Naturschutz und Reaktorsicherheit, ou BMU), foi a descoberta de que as autoridades do país não se encontram preparadas para uma catástrofe como a ocorrida em Fukushima.
O material radioativo contaminaria áreas bem mais vastas do que se acreditava anteriormente, e cidades inteiras precisariam ser evacuadas --mas nada disso está previsto nos planos de emergência.
Um ano após a catástrofe nuclear no Japão, as autoridades encarregadas de lidar com desastres na Alemanha ainda não implementaram mudanças significativas. A desativação das usinas nucleares da Alemanha e a substituição delas por outras fontes de energia foram de fato uma resposta política ao desastre, uma reação mais nítida do que a presenciada em qualquer outro país.
Mas os especialistas do setor dizem que nenhum integrante do governo federal está disposto a interferir nos nove reatores nucleares alemães que ainda permanecerão operando por um prazo de até uma década, e tampouco a tomar providências em relação aos elementos combustíveis que ainda representam um risco nos reatores que já foram desativados.
Transferindo a responsabilidade
É claro que as usinas nucleares alemãs não correm o risco de serem atingidas por tsunamis. Mas uma inundação daquelas que ocorre uma vez a cada mil anos poderia paralisar o sistema de resfriamento de um reator --um risco que é classificado de improvável na Alemanha, da mesma forma que se dizia no Japão em relação a um grande tsunami até a catástrofe do ano passado.
Especialistas do Ministério do Meio Ambiente, do Ministério do Interior, das secretarias do Interior estaduais e das equipes de resposta a catástrofes vêm se reunindo desde o outono europeu do ano passado, mas tudo o que eles fizeram até agora foi driblar a questão. Os resultados do BfS estão disponíveis para grupos de trabalho, grupos de projeto e especialistas, mas até agora poucas medidas concretas foram tomadas.
Os críticos dizem que o BMU tem mantido os resultados em sigilo. Mas o ministério nega essa acusação, e responde dizendo que sempre trabalhou em conjunto com o BfS. Atualmente o BMS está dizendo que pretende reavaliar “as premissas nas quais o estudo se baseia” e que mais tarde publicará os resultados dessa pesquisa.
A reação política ao problema até o momento baseia-se na ideia de que tal desastre não pode ocorrer e, portanto, ele não ocorrerá. Os preparativos para enfrentar tais emergências têm um custo enorme. “Os acontecimentos de Fukushima exigem que nós nos perguntemos seriamente se a atual alocação de responsabilidades e recursos na Alemanha é adequada às exigências de hoje”, disse no ano passado o presidente do BfS, Wolfram König.
Todos os envolvidos nessa área desejam transferir a responsabilidade para outros. O Ministério do Interior Federal aponta para os Estados, que são tecnicamente responsáveis pela preparação para emergências. O Ministério do Meio Ambiente Federal trabalha em conjunto com a Comissão Alemã de Proteção Radiológica, a Sociedade para a Segurança de Usinas e Reatores e autoridades estrangeiras.
“Uma avaliação conclusiva para determinar se os planos de respostas emergenciais precisam ser alterados não pode ser feita antes que que essas reavaliações e consultas internacionais sejam concluídas”, afirmou o BMU em uma declaração pública.
Cenários de acidentes irrealistas
“A morosidade do governo é um escândalo”, afirma Sylvia Kotting-Uhl, a porta-voz parlamentar do Partido Verde para questões relativas à política nuclear. Ela acrescenta que há algum tempo está claro que são necessários investimentos e melhorias significativos no que diz respeito às precauções do país em relação ao pior dos cenários. “O governo está trabalhando a um ritmo de lesma”, critica Kotting-Uhl.
O mundo observou chocado no ano passado a maneira como as autoridades do Japão, um país tecnologicamente avançado, reagiram impotentes à catástrofe. Pessoas de todo o mundo ficaram perplexas ao saberem que no Japão se acreditava que um desastre nuclear tão grave era impossível. Mas, segundo uma brochura da usina nuclear de Philippsburg sobre emergências, um acidente grave é algo que “o julgamento humano nos diz que não pode ocorrer”.
Ainda de acordo com a brochura, as autoridades “prepararam planos para uma evacuação da população em um raio de oito a dez quilômetros a partir da usina nuclear”. Esses planos não foram modificados --apesar de desde então ter ficado óbvio que áreas bem mais distantes provavelmente seriam afetadas pela radiação.
Antes da ocorrência do desastre do Japão, as autoridades assumiam que haveria sempre o mesmo tipo de cenário em caso de um acidente: um extenso período de latência, e a seguir uma explosão de um reator que lançaria material radioativo na atmosfera durante “várias horas ou dias”. Na realidade, a usina de Fukushima Daiichi emitiu material radioativo durante semanas.
“Esse é um cenário totalmente novo”, explica Wolfgang Weiss, diretor do Comitê Científico das Nações Unidas sobre os Efeitos da Radiação Atômica (UNSCEAR). “Grande parte daquilo em que acreditávamos mostrou-se inverídico na prática”.
Os especialistas do BfS analisaram cenários de emissões radiativas com a duração de 15, 25 e 30 dias. As simulações feitas por eles mostraram que a direção do vento muda frequentemente. Até agora os planos de resposta preveem a evacuação de pessoas apenas nas áreas mais afetadas em torno das usinas nucleares alemãs. Uma área é dividida em setores, e se a nuvem deslocar-se para o oeste, os setores a oeste são evacuados. Mas o que aconteceria se a direção do vento mudasse?
Questões não respondidas
Os cientistas sabem que existe um perigo de que as equipes de descontaminação tenham que trabalhar nos mesmos locais para os quais a nuvem radioativa se deslocar, e concluem que as medidas de resposta emergencial poderiam atingir rapidamente um limite crítico já que “muitas vezes mais da metade de todos os setores, e em alguns casos todos os setores, é afetada”.
Se ocorresse um acidente em Philippsburg, as cidades de Karlsruhe, Heidelberg, Mannheim, Ludwigshafen e Darmstadt poderiam ser todas elas afetadas pela radiação. Tabletes de iodo precisariam ser distribuídos em uma área muito mais ampla.
As simulações revelam que pessoas vivendo a cem quilômetros de distância da usina nuclear precisariam permanecer dentro das suas casas, mas não se sabe por quanto tempo milhares de pessoas seriam capazes de ficar dentro de casa, e tampouco como elas mais tarde deixariam a área, depois que esta ficasse contaminada. Especialistas do Ministério do Interior dizem que, no pior dos cenários, um milhão de pessoas precisariam se evacuadas --e com rapidez.
Na área em redor da usina nuclear de Philippsburg, ônibus pegariam pessoas em locais de embarque preestabelecidos. Mas o que seria feito no que se refere às área para as quais não existissem planos? Como seria possível evacuar tamanha quantidade de hospitais e abrigos para idosos? E onde ficaria esse um milhão de indivíduos? Segundo o Ministério do Interior, essas questões continuam sem resposta.
Uma questão bastante básica não foi sequer discutida. Os planos de resposta emergencial da Alemanha se baseiam nos chamados níveis de referência para intervenção, e quando esses níveis são ultrapassados, o governo tem que agir. A Comissão Internacional de Proteção Radiológica (ICPR) recomenda a evacuação quando os níveis atingirem patamares entre 20 e 100 milisieverts por ano. Após o desastre de Fukushima, o Japão decidiu aplicar o limite mais prudente de 20 milisieverts. Esse nível foi criticado - também na Alemanha - como sendo muito alto.
Os críticos podem não ter levado em consideração o fato de que, segundo as regulamentações atuais, os alemães só seriam evacuados depois que os níveis atingissem 100 milisieverts por ano. Se os critérios mais prudentes adotados pelo Japão fossem aplicados na Alemanha, isso faria com que aumentasse enormemente o número de pessoas afetadas.
(Por Michael Fröhllingsdorf, Cordula Meyer e Holger Stark, Der Spiegel / UOL / IHU On-Line, 27/03/2012)