O Dia Mundial da Água - data criada pela ONU e comemorada amanhã, 22 de março - tinha tudo para transformar este ano a Baía de Guanabara no cenário de uma festa especial. A três meses da Rio+20, a conferência sobre o desenvolvimento sustentável que deve atrair ao Rio de Janeiro mais de 100 chefes de Estado, a Cidade Maravilhosa poderia mostrar ao mundo a recuperação de sua baía, banhada por dezenas de rios, originalmente cercada por manguezais e antigo hábitat de golfinhos e tartarugas marinhas.
Anunciado há 20 anos, durante a Rio-92, o Programa de Despoluição da Baía de Guanabara começou a ser executado em 1995, foi prorrogado oficialmente sete vezes e, após consumir mais de US$ 1 bilhão, continua inacabado.
Hoje, apenas 36% de todo o esgoto gerado nos 15 municípios do entorno é tratado. Um dos maiores símbolos da beleza natural do Rio no passado, a baía recebe em média 10 mil litros por segundo de esgoto sem tratamento. Duas décadas depois, o cartão-postal do Rio de Janeiro continua lindo - mas seu odor é fétido.
Nenhuma das quatro estações construídas ao longo do projeto, que ficou conhecido pela sigla PDBG, está operando plenamente. O programa passou por seis governos desde a assinatura do contrato com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), em 1994. Inicialmente, a previsão para conclusão da primeira fase de obras era de cinco anos, chegando a 51% de esgoto tratado.
Além do fiasco e do atraso, há questionamentos sobre a qualidade do tratamento. Outra crítica comum é de que tenha havido um desvio do conceito original, mais amplo. Na prática, ficou restrito ao saneamento básico, sem um plano ambiental.
Recursos
O PDBG consumiu US$ 1,17 bilhão em recursos do BID, da Agência de Cooperação Internacional do Japão (JICA) e do governo do Estado. O primeiro desembolso ocorreu no fim de 1994, ano de implantação do Plano Real, e o dólar teve grande variação no período de contrato: chegou a valer R$ 4 em 2002.
Até hoje o esgoto não chega à estação de tratamento de São Gonçalo, inaugurada no fim do governo Marcello Alencar (1995-1998) - faltaram as redes. A estação da Pavuna, projetada para tratar 1.500 litros por segundo, recebe menos de 200. Na de Sarapuí, com a mesma capacidade, são tratados de 600 a 900 litros/segundo.
A maior delas, a de Alegria, projetada para 5.000 l/s, opera com metade disso. As estações da Pavuna, de Sarapuí e de Alegria foram inauguradas no governo de Anthony Garotinho (1999-2002), e o atual governador, Sérgio Cabral Filho, reinaugurou as duas últimas, com tratamento secundário.
No contrato, estavam previstos 1.248 km de redes coletoras de esgoto e 178 mil ligações domiciliares. Foram executados apenas 603 km de redes e 54 mil ligações até novembro de 2006, segundo o último relatório do BID. De acordo com a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), foram instalados 697 km de redes coletoras desde 2007, início da atual gestão - o número de ligações domiciliares, também solicitado pela reportagem, não foi informado.
Denúncias
"Os principais problemas do PDBG foram a falta de transparência, de articulação com os municípios, de regulação da Cedae e, principalmente, a fraude cavalar de fazer as estações sem a rede", afirma o secretário de Ambiente do Rio, Carlos Minc. Autor de uma série de denúncias de irregularidades em obras do programa enquanto era deputado estadual pelo PT, Minc conseguiu em novembro de 2011 a aprovação no BID de um novo empréstimo de US$ 452 milhões para melhorar a coleta do esgoto despejado na baía.
O PDBG estava tão queimado que o programa mudou de nome para Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM).
Minc afirma que o volume de esgoto tratado no início do governo Cabral, em 2007, era de 20% e chegará a 40% ainda neste semestre. "A nossa meta é chegar a 2014 com 65% e na Olimpíada (em 2016) com 80%", diz.
O presidente da Cedae, Wagner Victer, apresenta números um pouco diferentes. "Quando entramos (em 2007), era pouco mais de 15% e hoje estamos em quase 50%. Vamos chegar a 80% da baía em 4 anos." A meta apresentada pelo BID junto com o novo financiamento foi mais conservadora: 80% até 2018.
Um símbolo dos erros do programa é o que ocorreu com a estação de Paquetá. Fora de uso por muito tempo, ficou deteriorada, e o governo desistiu de colocá-la em funcionamento.
"Chegamos à conclusão de que era mais barato passar os tubos por baixo d'água e levar o esgoto para a estação de São Gonçalo", diz Minc. Mas a de São Gonçalo precisa ser refeita. "Ela foi inaugurada três ou quatro vezes e não funciona até hoje", conta a engenheira Dora Negreiros, que participou da concepção do PDBG e preside o Instituto Baía de Guanabara.
Lixo
Minc afirma que estações de tratamento ficaram secas por até 13 anos "porque a grana para essas obras vinha de fora". "Já a grana para fazer redes, conexões, era do Fecam (fundo estadual), que ia para tudo, menos para saneamento e ambiente. Rede é debaixo da terra, o que dá voto é estação. São elefantes brancos, monumentos à incompetência, ao descaso, à ilusão."
Para Victer, os maiores problemas hoje são o lixo - um dos alvos (e fracassos) do programa original - e o fato de algumas empresas não quererem se conectar à rede de esgoto. "Vamos acabar com todos os lixões do entorno da baía este ano", promete Minc.
A recuperação ambiental da baía é um dos compromissos assumidos pelo governo para a realização da Olimpíada de 2016.
Rio de esgoto deságua em área protegida
O banheiro químico boiando na Baía de Guanabara, dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, é revelador. Ali desemboca o Rio Guaxindiba, que nasce no município de São Gonçalo. Trata-se de um rio de esgoto, com água escura e viscosa. O cheio é insuportável.
“O pessoal de Magé vinha pescar aqui porque esse rio era rico demais. Fica dentro da área de proteção ambiental, mas hoje é só esgoto e chorume, tá acabando com o pulmão da baía”, diz o pescador Gilson Alves Milagre, de 42 anos, filho e neto de pescadores.
Presidente da Associação Homens do Mar da Baía de Guanabara (AHOMAR), Alexandre Anderson cita levantamento feito em conjunto com geógrafos em 28 colônias de pescadores que aponta redução de 80% do volume de pescado desde a década de 1990. “Pelo menos 34 espécies de peixes e crustáceos desapareceram, não entram mais na baía. Daqui a pouco não vamos ter mais nada, acho que é só uma questão de tempo”, lamenta.
Segundo ele, havia 23 mil pescadores cadastrados em toda a baía até o fim da década de 1990, e hoje são menos de 9 mil. Até 78% da área da baía era usada para pesca artesanal, diz Anderson, mas hoje só é possível aproveitar um trecho seis vezes menor, por causa do assoreamento, da instalação de plantas industriais e de outros problemas.
“Está difícil, o quadro é crítico. Não acreditamos que será possível reverter a situação.” Além do esgoto doméstico, a baía também recebe muito chorume de lixões. “Se tornou um grande penico, uma área de descarte de toda a região metropolitana.”
Qualidade do tratamento e foco do programa são questionados
O especialista Paulo Canedo, professor de recursos hídricos da Coppe/UFRJ, questiona não apenas os números apresentados pelo governo, de milhares de litros de esgoto tratado por segundo, mas a qualidade do tratamento no Rio.
Segundo ele, a única estação que funciona efetivamente é a de Alegria, no Caju, ainda assim “mal e porcamente”. “A situação é absolutamente ridícula. Deveriam assumir e encarar a realidade. Não adianta tapar o sol com a peneira. Pode ser que o esgoto tratado seja tão ruim quanto entrou.”
Consultor do Banco Mundial em projeto de saneamento realizado no Espírito Santo, Canedo diz que lá o critério exigido é a qualidade do resíduo que sai da estação. “Aqui (no Rio) sequer falam nesse assunto.” Outro problema é o lodo - só na estação de Alegria, 40 toneladas de lodo que resultam por dia do processo de tratamento precisam ser descartadas no aterro sanitário de Gramacho, que está saturado e a prefeitura promete fechar até o meio do ano.
Canedo lembra que a estação de Sarapuí, quando foi inaugurada, em 2000, “tratava” apenas água do rio, por falta de ligações com as redes. “Não tinha esgoto nenhum. São meias verdades. Essa numerologia não tem valor. O sistema não funciona porque não tem rede coletora. E metade da culpa é dos municípios.”
Para Canedo, o inimigo número um é o esgoto doméstico não tratado, depois vem o nível do tratamento. “Tem que melhorar muitíssimo para ficar muito ruim. É uma barbaridade. Não tem um rio limpo na zona urbana. Nossa condição sanitária é medíocre. Tanto é que o governo considera a baía um organismo semimorto.”
O nome Programa de Despoluição da Baía de Guanabara é charmoso, avalia o professor, porém tecnicamente inconveniente. “Não se trata de despoluir a baía, mas os rios que chegam lá. Se parar de sujar, há uma autorrecuperação.” Na opinião dele, o que se deve fazer é concentrar tudo em coleta de esgoto. “Qualquer outra coisa é firula.”
O especialista também aponta como problema a falta de regulação no setor de saneamento. “Qualquer jogo que se joga sem regra e sem juiz vira zona.” Sobre o presidente da Cedae, Wagner Victer, Canedo diz que é “o melhor que a que a empresa já teve”, e completa a frase: “isso não é um elogio a ele, é só uma crítica à Cedae, porque apesar de ruim ele foi o melhor.”
Luta
O arquiteto e professor de ciência política Manuel Sanches coordenou o grupo de 14 pessoas que idealizou o PDBG, mas ficou pouco tempo no cargo executivo. Ele diz que o objetivo inicial era bem mais amplo, com vários outros componentes e uma visão sistemática do problema. “Foi uma luta para tratar o PDBG como um programa ambiental, e não apenas de saneamento. De certa forma, fomos um exemplo para a criação dessas carteiras no BID. Mas o programa agarrou-se à parte sanitária, que sozinha não vai resolver o problema.”
Sanches ficou na coordenação do PDBG somente até 1993, quando se desentendeu com o então governador Leonel Brizola. Segundo ele, o motivo foi o pedido de dispensa de licitação para contratação de uma empresa, no valor de US$ 5 milhões, sob o argumento da notória especialização. “É assim que o sistema funciona em obras públicas, com pressão de empreiteiras sobre políticos, e vice-versa”, diz Sanches.
“Mas eu não queria servir de boi de piranha. Como servidor público, não podia fazer aquilo. Não cabia, havia normas que impediam. Tanto que a licitação não foi feita depois que eu saí.”
O professor conhece os problemas que resultaram da condução do programa pela Cedae, mas avalia que ele superou o principal obstáculo: ser abandonado de vez ao longo do processo.
“O PDBG passou por seis governos e nenhum pode dizer que é dono dele, todos fizeram alguma coisa. A questão não é saber se deu certo ou não, mas que levou vinte anos e não quatro, como estava previsto. Está incompleto, mas por outro lado resiste. E, por incrível que pareça, o BID vai botar mais dinheiro”, diz Sanches, que lamenta a falta de mobilização da sociedade para defender o programa e cobrar resultados. “Teria avançado mais rápido.”
"Não é um projeto que teve boa reputação", diz BID
“Não é um projeto que teve boa reputação no banco”, diz Yvon Mellinger, representante do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), referindo-se ao Programa de Despoluição da Baía de Guanabara (PDBG). Na avaliação dele, o projeto teve êxito relativo, mas demorou muito. Para o técnico, a pior dificuldade foi a contrapartida do Governo do Rio.
“O Estado passou por momentos difíceis. Não era o Rio de Janeiro que conhecemos hoje, com crescimento econômico e bom relacionamento com o governo federal”, avalia. Segundo ele, a Cedae - apontada como principal foco dos problemas - melhorou, mas ainda tem um caminho a percorrer. “A direção atual é empenhada, mas se trata de uma tarefa difícil.”
O novo financiamento aprovado pelo BID no fim de 2011 tem prazo de 5 anos para desembolso dos US$ 452 milhões, com a previsão de uma contrapartida de US$ 188 milhões do Estado.
“Não foi fácil aprovar. Se foi, é porque merecia. O importante é começar e não deixar pelo caminho, incompleto e inacabado, como ocorreu com o PDBG”, diz Mellinger. O nome mudou para Programa de Saneamento Ambiental dos Municípios do Entorno da Baía de Guanabara (PSAM). “A concepção do PSAM é diferente”, afirma o secretário do Ambiente, Carlos Minc. “Envolve muito mais os municípios e haverá a regulação da Cedae. Aprendemos com os erros do passado.”
Sobre a suspeita de corrupção citada por Minc - ele afirmou que a Cedae “era um antro de corrupção e agora está dando lucro” -, o representante do BID declarou: “Por nosso lado, não encontramos (provas de corrupção). São coisas difíceis de comprovar”.
O Banco Japonês, que financiou a construção de três estações de tratamento (Alegria, Pavuna e Sarapuí), informou apenas que o período de desembolsos terminou e que está “aguardando a conclusão das obras por parte do governo do Estado”. Para Mellinger, o que mais faltou foram as ligações. “De nada servem as estações se não existem as redes de esgoto.”
"Muito dinheiro público foi desperdiçado", diz promotora
O governo do Estado, responsável pelo controle dos repasses de verbas, e a Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), órgão executor do PDBG, são réus em ação civil pública movida pelo Ministério Público do Estado em novembro 2007 e ainda sem um desfecho na Justiça.
O objetivo da promotora Rosani da Cunha Gomes é condená-los a terminar o programa em um prazo estabelecido. O presidente da Cedae, Wagner Victer, afirma que os contratos do PDBG serão finalizados até o fim do ano, mas o órgão se recusa a entregar ao MP um cronograma formal com datas fechadas para o restante das obras. “Apesar do compromisso verbal, ainda não recebemos o cronograma prometido. Só acredito vendo. Tivemos muita dificuldade de obter informações ao longo da investigação”, diz a promotora da área ambiental.
Ela, no entanto, ressalva que “embora ainda não tenha sido concluído, o programa tomou outro rumo na atual gestão”. “Essa mudança de postura é um fato. Não posso negar que tenham demonstrado empenho para revolver”, diz Rosani. Para ela, ocorreram vários equívocos na concepção, na execução e na gestão do PDBG. Falta de continuidade foi um deles. “Troncos foram ligados a nada. Muito dinheiro público foi desperdiçado e a baía ainda é palco de inúmeras agressões ambientais.”
Apesar de reconhecer que houve avanços nos últimos anos, a promotora afirma que muita coisa está faltando. “O empenho deve ser maior. Embora haja certa boa vontade no discurso da atual gestão, a ação ainda é muito tímida”, avalia. Para ela, a recusa da entrega de um cronograma final não é compatível com a transparência. “Quais são as metas? Que obras faltam efetivamente? Ainda não colocaram isso no papel. Quando não informam, tenho dúvidas, porque muitas outras previsões não se confirmaram.”
Presidente da Cedae desde 2007, início da atual gestão, Victer ocupou cargos nos governos antecessores de Anthony Garotinho e Rosinha Garotinho. Sem apresentar nomes, ele insinuou que houve irregularidades na Cedae. “O PDBG foi pessimamente conduzido e teve uma série de equívocos. Dois muito claros: a transferência do gerenciamento para empresas de consultoria, uma farra do boi, e a escolha de subsistemas que não era integrados. Gestores anteriores estão sendo processados”, afirma.
No início do ano passado, quatro ex-presidentes da Cedae foram condenados pela Justiça por improbidade administrativa. Os casos não tinham relação direta com o PDBG: envolviam a contratação de funcionários sem concurso público. Victer afirma que nenhuma das estações estava funcionando quando ele assumiu a empresa. “Vou botar todas em operação até o fim do ano e ampliar as capacidades em relação ao projeto original.”
Das quatro estações construídas pelo PDBG, três (Pavuna, Alegria e Sarapuí) foram inauguradas na gestão do então secretário Luiz Henrique Lima, titular da pasta de Saneamento e Recursos Hídricos do Estado de 2000 a 2002, no governo de Garotinho. As duas últimas foram reinauguradas por Sérgio Cabral em 2009 e 2011, respectivamente.
Na opinião de Lima, hoje conselheiro do Tribunal de Contas do Estado (TCE) do Mato Grosso, “existem críticas que devem ser feitas ao PDBG, mas não são aquelas mais frequentemente apresentadas”.
“Principalmente em relação ao nome, um erro colossal que vende uma expectativa distante daquilo que o programa se propunha a fazer. É como chamar o Mobral, um programa de alfabetização, de programa de doutorado.” Lima negou a informação de que as estações não tratavam esgoto quando foram inauguradas, mas disse que não pretendia polemizar com Victer. “Metas foram alcançadas em alguns casos.”
Sobre a falta de ligações com redes de esgoto, Lima disse que “as estações, como desafio de engenharia, são mais simples do que as obras nos troncos”. “É como agora, na Copa. Primeiro são feitos os estádios. Metrô, transportes, infraestrutura urbana, isso é mais complicado”, compara.
(Por Felipe Werneck, O Estado de S. Paulo, 21/03/2012)