A tramitação do Código Florestal com um ministro de Meio Ambiente fraco é um desastre. A avaliação é do professor do Instituto de Relações Institucionais da USP, José Eli da Veiga.
Acompanhando o processo no Congresso da nova legislação ambiental do País, em análise na Câmara, ele acredita que a presidente Dilma Rousseff está mal assessorada no assunto, diz que a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, é "fraca" politicamente e acrescenta que o Planalto pode acabar aprovando uma lei que, segundo ele, vai causar prejuízos ambientais, econômicos e institucionais ao País.
Para Veiga, o texto contém avanços em relação ao que foi aprovado no ano passado, mas precisa de mais discussão.
Eis a entrevista.
O Estado de S. Paulo - Qual é a sua opinião sobre a tramitação do Código Florestal?
José Eli da Veiga - Está absolutamente confirmado que o Executivo, com acordo do principal partido, o PT, queria que aquilo que foi aprovado no Senado já se tivesse promulgado. O grande atropelo, na verdade, foi no Senado. E foi uma pena, porque o Senado acabou melhorando, e muito, mas com atropelamentos que acabaram por anular os avanços. E o Senado atropelou muito porque a ordem era de que o Congresso liquidasse a fatura até dezembro.
Mas houve surpresa na Câmara. Os ditos ruralistas racharam e acabaram não aprovando em dezembro. Tudo ficou para a retomada, agora. A nova ordem é que o assunto não pode entrar no mês de abril.
Por que a pressa?
Veiga - Por causa da Rio+20. Há um grande temor de que o Brasil tenha seu desempenho prejudicado na Rio+20 pela reação que pode haver por parte de todos os que, de fato, já assumiram essa cultura do desenvolvimento sustentável. A reação não deve se restringir aos movimentos socioambientais brasileiros.
Então há o temor de que isso possa desmoralizar o compromisso do Brasil com o desenvolvimento sustentável. E o Itamaraty está muito apreensivo com esse risco. Ele vem dizendo à presidente que esse assunto é perigoso para o desempenho no Brasil na Rio+20.
E qual é a sua opinião?
Veiga - Será muito melhor para a democracia brasileira se houver mais tempo para um exame bem mais cuidadoso dos imensos riscos, incertezas e desastres embutidos no texto aprovado pelo Senado. Mas, se continuar no atropelo, por força de um jogo complexo de interesses muito mesquinhos e também pelo fato de a matéria ser muito complexa, será uma tragédia.
Como não chegou a se formar uma opinião pública sobre questões tão difíceis quanto delicadas, há alto risco de que, inadvertidamente, os deputados voltem a votar sem conhecimento de causa.
Em vez de tomarem conhecimento da matéria, os deputados do PMDB podem apostar no "quanto pior melhor" só por estarem muito insatisfeitos com o PT, principalmente por causa do rolo da eleição municipal da cidade de São Paulo, mas também pela nomeação do senador Crivella para o ministério do "pesque e pague" sem qualquer consulta ao vice-presidente Michel Temer.
Pior, a presidente está sendo confundida e iludida. Principalmente pela ministra do Meio Ambiente, que é muito fraca e tem um assessor que afirma exatamente o contrário do que dizem os principais especialistas, como mostram os posicionamentos da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e da ABC (Academia Brasileira de Ciências).
Além disso, o Código vai ser substituído por uma lei que nem será mais Código. O Código é de 1934. Em 1965 foi aprovado o Novo Código. Tanto o projeto da Câmara quanto o substitutivo do Senado preveem sua revogação sem que seja substituído por outro.
O que é colocado no lugar?
Veiga - A nova lei tratará única e exclusivamente das regras de conservação da vegetação nativa dentro das propriedades privadas. Florestas públicas e terras indígenas, por exemplo, serão tratadas por outras leis. Não haverá mais Código Florestal, por mais que se diga que ele está sendo "reformado".
Isso é um equívoco?
Veiga - Não. Mas é preciso entender que essa lei só trata do que toca às fazendas. E, nisso, há um triplo retrocesso no substitutivo do Senado. Infelizmente. Embora tenha havido avanços. Mas no que sobrou, é retrocesso ambiental, retrocesso econômico brutal, e, talvez o pior, retrocesso institucional. É incrível que muitas pessoas não percebam.
Como é assim, a única interpretação que posso ter é a de que a presidente está muito mal informada. Particularmente pela ministra, que é muito fraca. E a própria ministra está sendo iludida por gente que faz avaliação de que, apesar de tudo, a reconstituição de algumas coisas que já foram desmatadas, quando se calcula a área a ser regenerada, em termos de hectares, isso seria muito.
Falam de recuperação de 18 milhões de hectares. E como muito poucos países têm essa possibilidade de recuperação, pode até parecer bom. Mas qualquer comparação teria de ser em porcentuais. E aí, em porcentuais, a cantilena do MMA é uma farsa.
Vejamos só uma questão: as Áreas de Preservação Permanente (APPs). É unânime entre técnicos e cientistas que as APPs são algo, a palavra talvez nem seja apropriada, mas APP deve ser entendida como sagrada. As APP são santuários da prudência econômico-ecológica. Quanto mais avança o conhecimento científico, mais evidências confirmam essa já antiga constatação. Já a reserva legal é bem diferente. É outra discussão: se é conveniente ou não, que tipo, qual é a porcentagem, por bacia ou por bioma, com que critérios, etc. Há uma série de questões discutíveis.
Mas entre pessoas que têm o mínimo de formação nas ciências naturais, todos concordam que não deve haver transigência quando se fala de APP. E é brutal a redução de APP que vai haver com a aprovação de qualquer dos projetos até agora aprovados pela Câmara e pelo Senado. Há imagens claríssimas, elaboradas pelo departamento técnico do Ministério Público. Imagens que comparam como são as atuais APPs e como elas ficariam se as regras previstas nesses projetos se tornarem lei. Todas têm reduções brutais e algumas simplesmente desaparecem.
E mais uma questão muito séria: a presidente Dilma, entre o primeiro e segundo turno da eleição, mandou uma carta para a então senadora Marina Silva. Há um parágrafo sobre o Código Florestal que diz que ela não toleraria redução de Áreas de Preservação Permanente (APP), redução de Reserva Legal e, com muita ênfase, nenhum tipo de anistia para desmatadores. Agora, o substitutivo reduz APPs, Reserva Legal e, pior que anistia, dá indulto a crimes cometidos a partir da lei de crimes ambientais.
Mas a presidente poderia vetar e recuperar aquela intenção manifestada na carta?
Veiga - Tudo indica que isso será impraticável. O texto está montado de tal forma que não vejo como ela poderá exercer vetos cirúrgicos. Não é o caso de um ou outro artigo. Veja uma das questões-chave, a tal data que separa o passivo do que vai vigorar a partir das novas regras, julho de 2008. É a data daquele decreto que desencadeou a grande revolta. E quero falar disso também porque muitas vezes as reclamações são legítimas.
Tenho receio de que as pessoas subestimem a bronca dos agricultores, sem distinguir o que é legítimo dos oportunismos enfiados nos dois projetos. O que era legítimo foi muito bem aproveitado e desvirtuado pelas lideranças que se dizem ruralistas. Essas lideranças manipularam uma espécie de rebelião contra o decreto. A data é um retrocesso institucional porque ignora a lei de crimes ambientais.
A rigor, até a Constituição, quem desmatou ilegalmente tem de ser perdoado. Pelo seguinte: apesar do Código desde 65, todos os governos, na ditadura militar, mais os patéticos Sarney e Collor, incentivavam o agricultor a desmatar, com crédito, até com competição. Quem foi levado para as áreas de fronteira agrícola, agricultores que migraram para Rondônia, Acre, Mato Grosso, foram muitas vezes quase obrigados a desmatar ilegalmente, tanto as APPs como o que deveria ser reserva legal.
E não pode haver emenda na Câmara ajustando esses pontos?
Veiga - Não. Os deputados só podem mudar com emendas de redação. Esse é um ponto incontornável. Se fizerem a desgraça de mandarem esse texto para a presidente, vão emparedá-la. Ela vai ser encurralada.
A ministra não teve força para manejar a aliança do governo neste ponto, é isso?
Veiga - É mais que isso. Ela não tem a capacidade de interlocução com os senadores. É diferente do Minc (Carlos Minc), da Marina ou do Zequinha (Sarney). Foi um desastre o Código tramitar num contexto em que o MMA é conduzido por um suposto bom técnico. É como querer usar um gato em briga de cachorro grande.
(Por Pablo Pereira, O Estado de S. Paulo / IHU On-Line, 04/03/2012)