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peixes pesca industrial extinção de espécies
2012-02-29 | Rodrigo

O chileno Eric Pineda olhava para as 10 toneladas de cavala no porão do barco, depois ter passado quatro dias no mar durante uma pescaria tão farta que dava para encher o piso de peixe em apenas algumas horas. O agente de doca, como todos no velho porto ao sul de Santiago, cresceu comendo o peixe espinhudo e escuro que eles chamam “jurel”, que costuma nadar em grandes cardumes no Pacífico Sul.

“Está indo rápido”, disse Pineda. “Nós temos que pescar muito antes que ele desapareça”. Perguntando sobre que peixe sobraria para seus filhos, ele encolhe os ombros: “Ele terá que achar outra coisa”.

Mas o que mais há?

A cavala, rica em proteína oleosa, é o alimento para um planeta com fome, um produto básico na África. Em outros lugares, as pessoas o comem sem saber. A maioria da cavala pescada é processada e vira ração para piscicultura e para criação de porcos. São necessários mais de 5 kg de cavala para engordar 1 kg de salmão de cativeiro.

Só que, em duas décadas, as reservas de cavala caíram de 30 milhões de toneladas para menos de 3 milhões. Os maiores barcos pesqueiros do mundo, depois de esgotarem outros oceanos, agora rumam ao sul, chegando até perto da Antártida para competirem pelo que ainda resta.

Uma investigação do International Consortium of Investigative Journalists sobre a indústria da pesca em oito países mostra porque o drama da humilde cavala é o prenúncio de um colapso progressivo das reservas de peixes em todos os oceanos.

Um problema mundial
O destino deles reflete um panorama maior: décadas de pesca global sem regulação impulsionada por rivalidades geopolíticas, ambição, corrupção, má gerência e indiferença pública.

Daniel Pauly, o iminente oceanógrafo da Universidade da Colúmbia Britânica, nos EUA, vê a cavala no Pacífico Sul como um indicador alarmante. “Este é o último dos moicanos”, ele disse ao ICIJ, “Quando eles se forem, tudo mais estará perdido… é a última fronteira!”

Até hoje, grandes barcos pescam sem nenhum tipo de fiscalização
Representantes de vinte países encontraram-se no dia 30 de janeiro em Santiago para discutir uma maneira de conter esse assalto. As negociações que levaram à criação da Organização da Administração da Pesca no Pacífico Sul (SPRFMO) começaram em 2006 por iniciativa da Austrália e da Nova Zelândia junto com o Chile, – país que geralmente evita organismos internacionais.

Seu propósito é o de proteger os peixes, em especial a cavala. Mas foram necessários quase quatro anos para os 14 países adotarem os 45 artigos que têm esse objetivo. Até agora, apenas seis países ratificaram o acordo.

Enquanto isto, navios industriais só têm restrições puramente voluntárias na competição descontrolada pelo que resta em águas-de-ninguém no fundo do mar. Apenas entre 2006 e 2011, os cientistas estimam que as reservas de cabala caíram 63%.

A convenção da SPRFMO precisa de oito assinaturas para ser firmada, incluindo o maior país da costa pacífica da América do Sul. O Chile, que foi proeminente ao juntar-se ao grupo inicial, ainda não ratificou a convenção.

Corrida pelo que resta
A Organização decidiu inicialmente que futuras cotas anuais seriam acordadas entre os países membros a partir da pesagem total de cada navio entre 2007 e 2009. Mas, para aumentar suas cotas, diversos navios pesqueiros correram para o sul. Pesqueiros chineses chegaram em massa, entre outros da Ásia, Europa e América Latina.

Um dos que acabaram de chegar a estas águas foi o Atlantic Dawn, maior navio pesqueiro no mar, com 14 mil toneladas. Construído por irlandeses, o barco foi comprado pela empresa holandesa Parlevliet & Van der Plas e rebatizado como Annelies Ilena.

Tais “super pesqueiros” capturam a cabala com redes que medem 25m X 80m. Quando elas se arrastam, peixes são sugados para o porão por meio de tubos como grandes aspiradores de pó.

Gerard can Balsfoort, presidente da associação holandesa Pelagic Freezer-Trawler Association (PFA), que representa nove empresas e 25 embarcações de países da União Europeia, confirma o óbvio: os holandeses, como outros, vieram para demarcar território.

“Era uma das poucas áreas onde ainda dava para entrar livremente”, diz van Balsfoort. “Parecia que muitas embarcações rumariam ao sul, mas não havia escolha… Se uma empresa demorasse a ir para lá, eles poderiam fechar os portões”. Em 2010, a SPFRMO contabilizou 75 embarcações pescando nesta região.

A cavala também atraiu a empresa Pacific Andes International Holdings (PacAndes), de Hong Kong. A companhia gastou 100 milhões de dólares em 2008 para transformar um petroleiro de 750 pés e 50 mil toneladas em uma fábrica flutuante chama “Lafayette”.

Este navio de bandeira russa, maior que dois campos de futebol, suga o peixe de pesqueiros ao redor por meio de uma mangueira gigante e os congela em blocos. Embarcações refrigeradas – “reefers” – levam a carga para portos distantes.

Sozinho, o Lafayette tem capacidade técnica de processar 574 mil toneladas por ano, se funcionar diariamente. Em setembro de 2011, cientistas da SPRFMO concluíram que uma captura acima de 520 mil toneladas pode esgotar as reservas de cavala.

Cristian Canales do centro de pesquisa Instituo de Fomento Pesquero (Ifop), no Chile, diz que um limite seguro seria de 250 mil toneladas. Alguns peritos discordam, dizendo que a única maneira de restaurar as reservas de peixe é impor uma moratória total por cinco anos.

A espécie Trachurus murphyi, a cavala do pacífico, é pescada no oeste do Peru e do Chile, ao longo de 4.100 milhas de costa por 120 graus de longitude, a meio caminho da Nova Zelândia. São pequenos peixes de mar aberto, vitais para espécies maiores; se espalham pelo oceano, alimentando-se de planctôns e pequenos organismos e servindo de comida para peixes maiores.

Este peixe, que é praticamente uma pastagem dos mares, representa um terço do total da pesca capturada no mundo.

A FAO, organismo da ONU para Comida e Agricultura, diz que a frota pesqueira global  “é 2,5 vezes maior que a necessária”. “Esta estimativa é baseada num relatório de 1998; desde então, as frotas se expandiram. Sem regulação, elas podem rapidamente devastar a pesca”.

Por trás da pesca, subsídios dos governos
Especialistas apontam que muito desta sobrecarga tem sido financiada por subsídios governamentais, particularmente na Europa e Ásia.

Um importante relatório feito por Rashid Sumaila, junto com o oceanógrafo Pauly e outros da Universidade de Colúmbia Britânica, estima que o total de subsídios globais em 2003 – os dados disponíveis mais recentes – vão de 25 a 29 bilhões de dólares.

Entre 15% a 30% dos subsídios são pagos em combustível que permite os navios chegarem a grandes distâncias. Outros 60% são destinados ao aumento do tamanho das embarcações e à renovação de equipamentos.

O estudo calcula que os subsídios chineses somam 4,14 bilhões de dólares, enquanto a Rússia destina 1,48 bilhões em apoio.

Um relatório do Greenpeace lançado de dezembro de 2011 analisou profundamente a associação holandesa PFA. Descobriu-se que o grupo recebeu isenções em impostos sobre combustíveis no valor de 20 a 78 milhões de euros os últimos 5 anos.

Estima-se que a média de lucro anual da PFA seja de cerca de 55 milhões de euros; segundo o estudo, este lucro seria de apenas 7 milhões se não contasse com a ajuda dos contribuintes. Fundos da União Europeia – e apoio financeiro da Alemanha, Grã-Bretanha e França – ajudaram a PFA construir e modernizar 15 pesqueiros, quase metade de sua frota.

O navio Helen Mary, por exemplo, começou pescando no Pacífico Sul em 2007. Entre 1994 e 2006, recebeu 6,4 milhões de euros em subsídios mais do que qualquer outra embarcação pesqueira segundo dados da Comissão Europeia.

Van Balsfoort, o presidente da PFA, não discute números de subsídios, mas diz que isenção de impostos sobre combustíveis são rotineiros na indústria pesqueira. Segundo ele, o Helen Mary e outra embarcação irmã a ele eram pesqueiros decrépitos da Alemanha Oriental, reconstruídos com incentivo da Alemanha depois da reunificação.

Embarcações podem pescar livremente em áreas não governadas por acordos ratificados. Esta é uma prática internacional. Mesmo assim, a União Europeia requer que navios de países membros se comprometam a seguir as medidas internas da SPRFMO. Além disso, países da UE devem dividir uma cota anual coletiva da cavala do pacífico.

Mas os proprietários de navios sempre acham um jeito de burlar as regras. Por exemplo, a Unimed Glory, uma subsidiária da companhia grega Laskaridis Shipping, opera três pesqueiros no Pacífico Sul. Apesar de seus donos serem da Grécia, sua bandeira é da ilha pacífica de Vanuatu, e por isso eles operam fora do controle europeu, podendo pescar mais cavala do Pacífico do que poderia.

O gerente norueguês do Unimed Glory, Per Pevik, contou ao ICIJ que seu peixe não pode ser vendido na Europa porque Vanuatu não atende os padrões sanitários. Então, ele vende cavala do Pacífico para a África. Perguntado se as autoridades europeias opõem-se à sua bandeira de Vanuatu, ele diz: “Não, eles não me incomodam por conta disso”.

Uma vez que o peixe é descarregado em navios refrigerados de longas distâncias, sua origem pode ser escondida.

No Pacífico Sul, embarcações industriais acham cada vez menos cavalas do Pacífico depois de anos de pesca agressiva: os navios de bandeiras da União Europeia capturaram coletivamente mais de 110 milhões de toneladas do peixe em 2009. No ano seguinte, os barcos içaram uma quantidade 40% menor do peixe. No último ano, as embarcações registraram apenas 2.261 toneladas pescadas.

O presidente da PFA, van Balsfoort, admite que os navios pescaram muito intensamente numa época em que os peixes estavam vulneráveis. “Houve um empenho muito grande em pouco tempo… toda a frota tem culpa nisso”.

Por dentro da chinesa PacAndes
Entender a PacAndes é como montar um quebra-cabeça. Sua nau de 50 mil toneladas brutas, o Lafayette, é registrada no nome da Investment Company Kredo em Moscou e hasteia uma bandeira russa. Por sua vez, a Kredo – via quatro outras subsidiárias – pertence ao China Fishery Group em Singapura, que por vez está registrada nas Ilhas Cayman.

Esta última empresa pertence à Pacific Andes International Holding, sediada em Hong Kong, que ainda está ligada a outra companhia registrada em Bermuda.

A PacAndes, que vende suas ações na bolsa de valores de Hong Kong, tem mais de 100 subsidiárias em diversos ramos, além de uma com muitas outras empresas afiliadas. Um de seus maiores investidores é o grupo americano Carlyle, que comprou 150 milhões em ações em 2010.

A China Fishery Group relatou uma receita de 685,5 milhões de dólares em 2011, valor que significa 55% dos ganhos da PacAndes. A empresa atribui isto à operação intensa da frota do Pacífico Sul e ao negócio de farinha de pescado no Peru.

O malasiano-chinês Ng Joo Siang, de 52 anos, graduado na Louisiana State University, nos EUA, dirige a PacAndes como se fosse um negócio familiar – apesar de ser uma empresa de capital aberto. Seu pai mudou com a família para Hong Kong, e em 1986 começou um negócio de frutos do mar. Hoje em dia, o conselho executivo conta com sua mãe, seus três filhos e uma filha.

“Meu pai dizia que os oceanos são ilimitados”, Ng afirmou em uma entrevista, “mas este era um engano. Nós não queremos degradar os recursos, sermos culpados pelos danos. Eu não acho que os acionistas gostariam disso. Eu não acho que nossos filhos gostariam muito disso”.

Hoje em dia, a PacAndes enfrenta uma crise de relações públicas. Em 2002, uma empresa afiliada foi acusada de pesca ilegal na Antártida. Ng nega qualquer delito ou conexão com os barcos suspeitos. Mas seus críticos são ferozes.

Diplomatas da Nova Zelândia contaram ao ICIJ que um advogado da empresa teria ameaçado a família de um executivo de pesca de Auckland. Perguntando sobre o assunto, Ng diz que nada disso aconteceu.

Forçado a moldar uma imagem melhor, Ng contratou um novo funcionário de responsabilidade social para a empresa e diz querer colocar cientistas em seus navios para ajudar a proteger as reservas de peixes.

Mas ri com desdém quando fala sobre a tentativa de limitar a pesca de cavala do pacífico a 520 mil toneladas. “Baseado em quê? Nisso?”, responde, balançando o dedo molhado no ar como se estivesse checando o vento. “Isto não é ciência! A SPRFMO não possui conhecimento científico”.

Ng diz que o Lafayette ergue uma bandeira russa porque a maneira que ela opera é inspirada na velha concepção soviética. Mas especialistas da indústria suspeitam de outra razão para esta manobra obscura.

Embora Ng diga que o Lafayette não pode pescar, mas apenas acompanha outros barcos segurando um lado de uma rede de arrastão, enquanto o navio menor iça a carga, uma inspeção francesa em janeiro de 2010 não achou equipamentos de pesca abordo do megapesqueiro.

Rússia e Peru declararam claramente as mesmas 40 mil toneladas de pesca de cavala. Os russos dizem que o Lafayette estava pescando e possui bandeira russa. Já os peruanos dizem que os pesqueiros de arrastão capturaram peixes sob sua bandeira.

Jogadas políticas no Chile
A crise da cavala do Pacífico atinge mais fortemente no Chile, onde autoridades e a própria indústria admitem excessos no que eles chamam de “corrida olímpica”. Só em 1995, os chilenos pescaram mais de quatro milhões de toneladas – oito vezes mais do que os cientistas da SPRFMO consideram sustentável. De 2000 a 2010, o Chile pescou 72% de toda cavala do Pacífico sul.

Juan Vilches, “patrón de pesca”, que trabalha para uma grande empresa, é também biólogo marinho. Vilches treme quando lembra os velhos tempos. “A matança era tremenda, inacreditável”, diz.

“Ninguém tinha nenhuma ideia de limites. Centenas de toneladas eram jogadas fora se as redes subissem cheias demais para o porão. Navios vinham tão carregados que os peixes eram amontoados. O sangue ficava quente até eles cozinharem”.

A situação é melhor hoje em dia. Mesmo assim, o International Consortium of Investigative Journalists, junto com o centro investigativo chileno CIPER, descobriram que oito grupos empresariais chilenos pressionam o governo a determinar cotas além das recomendações científicas. Juntos, esses grupos têm direito a 87% da captura de cavala do Pacífico.

Roberto Angelini, de 63 anos, é conhecido como “O Herdeiro”. Angelini sucede seu tio, Anacleto, apontado pela revista Forbes como o homem mais rico da América do Sul em 2007, ano em que morreu.

Anacleto veio da Itália em 1948. Em 1976, a pesca entrou para o rol de seu império, que hoje inclui a maior empresa de combustível do Chile, minas, florestas e outros negócios. As duas empresas de pesca de Angelini detêm 29,3% da cota de cavala do Pacífico estabelecida pelo governo chileno.

Um relatório do governo do Chile mostra que cerca de 70% da cavala do Pacífico capturada entre 1998 e 2011 no feudo de Angelini, no norte do país, estava abaixo do tamanho mínimo permitido.

Mas funcionários do governo dizem que capturas no norte chileno recaem na categoria especial de “pesquisa”, sendo isentas de regulações quanto ao tamanho dos peixes. Angelini não quis comentar essa história.

Na Universidade de Concepción, o tom de voz gentil do biólogo Eduardo Tarifeño muda quando o assunto é a pilhagem do oceano.

Ele diz hoje em dia o Chile só tem sardinhas em abundância. “Não temos mais cavala, merluza ou anchoveta. Reservas que produziam milhões ou mais de toneladas por ano simplesmente se esgotarame por causa da sobrepesca”.

Tarifeño é um dos dois cientistas no conselho nacional chileno de pesca, montado para recomendar as cotas. O voto é por maioria, mas 60% dos membros são representantes da indústria.

A cada ano, o instituto oficial de pesquisa chileno, Ifop, recomenda uma cota à Subpesca, a unidade do ministério da Economia responsável pelo setor, que então propõe sua própria estimativa. Se o CNP rejeitar, o novo limite é estabelecido em 80% da cota do ano anterior.

Em 2009, o Ifop propôs um corte agudo para 750 mil toneladas, de acordo com a ONG Oceana. A Subpesca subiu para 1,4 milhões de toneladas. A CNP aprovou. Enquanto as reservas de cavala do Pacífico despencam, membros do governo e executivos da indústria culpam uns aos outros por não terem tomado as medidas certas no passado.

Mas Tarifeño insiste que agora é tarde para qualquer medida que não seja drástica. “Se nós não salvarmos a cavala do Pacífico hoje, não poderemos fazer isto depois. Precisamos proibir a pesca por pelo menos cinco anos”.

No secretariado de Pesca em Valparaiso, Italo Campodónico reflete sobre isto. “Como um biólogo marinho, eu tenho que concordar”, diz. “Devemos ter uma moratória de cinco anos. Mas como funcionário público, tenho que ser realista. Por razões econômicas e sociais, isto não acontecerá. Estrangeiros podem pescar em outras águas. Nós não.”

A anchoveta desaparece do Peru
O Peru é a segunda maior nação pesqueira do mundo, depois da China. Apenas o  dilapidado porto de Chimbote – o maior do país – recebe mais peixe do que toda frota espanhola.

Aqui, o problema não é apenas a sobrepesca da cavala do Pacífico, mas também da anchoveta. Este é um peixe que parece uma sardinha do tamanho de uma anchova, uma fonte vital de farinha de pescado para a piscicultura.

A anchoveta do Peru é a maior pesca do mundo. Enquanto a exportação de farinha de pescado rende 535 milhões de dólares anualmente no Chile, no Peru a atividade é três vezes maior: 1,6 bilhões de dólares por ano.

Sente-se o cheiro do porto de Chimbote de longe, bem antes de avistá-lo. Uma nuvem oleosa de fumaça escura é lançada de uma fileira de chaminés. Barcos artesanais boiam em todas as direções ao redor do cais.

As leis peruanas estabelecem normas de procedimento para embarcações que atracam com peixe. Mas, perguntados quando viram inspetores pela última vez, alguns velhos pescadores caíram na risada.

O ICIJ, junto com o grupo de reportagem investigativa IDL-Reporteros em Lima, obteve documentos oficiais que mostram a extensão das fraudes dentro dos portões das fábricas.

Uma análise das pesagens entre 2009 e o primeiro semestre de 2011 – totalizando mais de 100 mil pesagens – mostra que a maioria das empresas peruanas de farinha de pescado sabotou sistematicamente metade dos embarques, declarando, em alguns casos, 50% a menos do que foi capturado.

Esta fraude permite que empresas peguem peixes além da cota, economizem impostos e taxas sobre pesagem, além de pagarem menos aos pescadores que ganham uma percentagem sobre o que é pescado.

No total, pelo menos 630 mil toneladas de anchoveta – o equivalente a 200 milhões de dólares em farinha de pescado – “desapareceram” no processo de pesagem em dois anos e meio. O peixe simplesmente não foi contado.

Os maiores contraventores são peruanos, mas o ranking também inclui a China Fishery Group da PacAndes e outras três empresas de capital norueguês.

O vice-ministro de Pesca do Peru, Jaime Reyes Miranda, diz estar ciente que existem “problemas graves” com balanças em usinas de farinha de pescado, e afirma que o governo está tentando achar uma solução.

Richard Inurritegui, presidente da Sociedade Nacional de Pescaria, minimizou os números e responsabilizou as estimativas a olho nu feitas pelos capitães dos barcos pela diferenças entre o peixe declarado nas embarcações e o peixe pesado nas usinas. A China Fishery Group não quis comentar.

Patricia Majluf, vice-presidente do Imarpe, o prestigioso instituto oceânico do Peru, descreveu várias maneiras com que pescadores e usinas de farinha de pescado sabotam pesagens, evadem impostos e burlam as leis. Se pegas em flagrante, as empresas podem adiar as penas por quatro anos e acabar somente com uma parte das multas.

Apesar de sua reputação sólida, as recomendações do Imarpe para um decréscimo monitorado na pesca continuam a ser ignoradas.

Salvar os peixes ou a indústria?
Roberto Cesari, representante da União Europeia junto à SPFRMO, diz esperar que as ratificações só aconteçam em 2013. Ou seja: sete anos depois da redução drástica da cavala do Pacífico.

A organização recomendou uma redução voluntária nas cotas de pesca em 40% para 2011. Mas a China e outros países rejeitaram. Pequim acabou concordando com uma redução de 30%.

Segundo Cesari, a UE tenta pressionar para atingir o consenso necessário, mas sua influência é limitada. “Temos expressado nosso desapontamento oficialmente à China e Rússia, mas eles não são pequenos agentes no mundo… são gigantes”.

Bill Mansfield, um advogado da Nova Zelândia que presidiu a SPRFMO a partir de 2006, diz que restrições voluntárias não têm protegido as reservas de pesca, e é hora de colocar a convenção em vigor.

Ele disse que o encontro de Santiago deve limitar a captura para 2012 a 390 mil toneladas ou menos. “A realidade é que todo mundo precisa dar um grande passo na restrição, para esta espécie poder se recuperar”. Mansfeld não quis dar o nome de países que se recusam a adotar reduções drásticas.

Lobos do mar
Enquanto agentes públicos evitam dar nome aos bois, dois excêntricos ex-marinheiros meditam sobre computadores em pequenas ilhas em opostos extremos do globo – um não conhece o outro – denunciando as grandes frotas de navios pesqueiros.

Gunnar Album, perto de Bodø, situado no Círculo Ártico na Noruega, dirige a TM Foundation, que faz consultoria para a The Pew Charitable Trusts. Ele usa dados de satélites para rastrear embarcações pesqueiras.

Album diz que o apoio governamental criou uma capacidade tal que os superpesqueiros têm que pescar a todo vapor para que o investimento dê retorno. “Estas embarcações navegam os oceanos em busca de qualquer peixe disponível, causando sobrepesca e pressões enormes sobre os governos que tentam gerenciar recursos”.

Martini Gotje, um holandês expatriado que estava abordo do lendário navio Rainbow Warrior, do Greenpeace, quando agentes franceses o afundaram na Nova Zelândia em 1985, faz a mesma coisa mesmo a partir da idílica ilha de Waiheke, perto da capital neozelandesa.

Gotje organiza uma lista negra para o Greenpeace, que ajuda ativistas e autoridades. Mas, como Album, ele culpa principalmente a sobrecarga legal pela devastação.

Para ele, a prioridade deve ser salvar os peixes e não a indústria pesqueira. “O Lafayette levou o jogo a um padrão incrível e a Holanda está muito envolvida. Existem muitos barcos, simplesmente muitos barcos”.

O oceanógrafo Pauly argumenta que esta tendência global não mudará a menos que um poder maior – a União Europeia ou os Estados Unidos – tomem ações firmes. “Alguém tem que elevar os padrões e outros seguirão”.

Duncan Currie, advogado ambiental na Nova Zelândia, vê a cavala do pacífico como um caso clássico, porque elas nadam em um raio bem definido e são relativamente poucos e fáceis de identificar os navios que os pescam. “Se nós não podemos salvar este peixe, o que podemos salvar?”

Chile: Os senhores da pesca
São 10h30 da manhã de um domingo de agosto, sete milhas do porto Corral e a tripulação do barco Santa María II ergue a rede depois de meia hora na água. O capitão Eduardo Marzán  assiste à operação da ponte com uma feição carrancuda. À sua esquerda, outros 14 navios repetem as manobras feitas pelo  Santa María II há 4 dias, numa busca infrutífera por sardinhas.

O governo do Chile divulgou em 2010 que as sardinhas ainda eram abundantes em águas chilenas enquanto o carapau encabeçava a lista de 13 espécies que estavam ameçadas. Hoje, até as sardinhas estão escassas.

O Santa María II pertence à Lota Protein, empresa do Koppernaes Group da Noruega que há 21 meses trava uma batalha legal com oito grupos que possuem direito a 87% do carapau em águas chilenas, além da maioria das sardinhas, anchovas e merluza. A Lota Protein afirma que um leilão pelas cotas proporcionaria uma parcela justa a outros.

Famílias chilenas poderosas dominam esses grupos. Eles são, essencialmente, os senhores dos peixes do Chile.

Uma análise pelo International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ), com o centro investigativo chileno CIPER, revela que, ao longo da última década, os governos permitiram sistematicamente que estas famílias obtivessem cotas de pescado altamente irrealistas diante das constatações científicas sobre a situação dos mares. Isto contribuiu significativamente para uma dramática queda da cavala no Pacífico Sul, que já foi um dos campos de pesca mais ricos.

O Santa María II procura em vão. Finalmente, o sonar aponta um cardume e a tripulação joga a rede de pesca em sua perseguição por quatro vezes. Menos de 40 toneladas entram nos tanques que suportam 850. O capitão Marzán abandona seu otimismo de costume. O resguardo de dois meses para proteger as sardinhas foi adiantado pelas autoridades e começa à meia-noite, em algumas horas.

O sonar não capta nenhum sinal e Marzán ordena que sua embarcação retorne para casa. Eu pergunto se ele iria voltar para pescar cavala e ele suspira pesado. Até alguns anos atrás, ele responde, ele poderia ter rumado para La Feria, um pequeno setor a 30 milhas da costa onde os barcos eram tão numerosos em noites boas que suas luzes pareciam uma cidade flutuante. Mas, aqueles dias vão longe.

Pelo rádio, muitos capitães que estão em águas abertas, além da zona exclusiva do Chile, contam a Marzán que eles passaram 15 dias pescando e seus compartimentos estão praticamente vazios.

Mario Ulloa, que pilota o Santa María II, relembra os dias de glória: “Nós apenas manejávamos e recolhiamos a rede. Enchíamos o compartimento em uma única coleta e retornávamos ao porto com uma carga completa de cavala. Saíamos, duas, três vezes por dia. Havia bastante peixe, mas ninguém sabia como cuidar dos estoques”.

Controle frouxo, estoques sumindo
A lei de pesca máxima, um dos dois códigos pesqueiros do Chile, data de 2001. Durante os anos 1990, os chilenos pescaram mais de 28 milhões de toneladas de cavala e o governo baixou medidas de controle. Os pescadores artesanais – são mais de 80 mil deles hoje – ganharam acesso exclusivo à cavala dentro de cinco milhas a partir da costa e 5% da cota total. As indústrias ficaram com o resto.

Logo após da promulgação da lei, porém, o peixe grande comeu os menores. As principais companhias compraram os competidores, contratando pescadores artesanais para adquirirem cotas. Juntos, eles operam um trust pesqueiro informal, uma rede intrincada onde uns possuem a parcela que estão no nome de outros. E agem em conjunto para defender seus interesses.

O governo não cobra pelas cotas. Companhias pagam apenas uma pequena taxa sobre a tonelagem bruta de suas embarcações, cerca de 2% de seus ganhos com exportações, que correspondem a 30 milhões de dólares no ano. O governo pretende adotar uma política de royalties a partir de 2013, reconhecendo a pesca, como a mineração, como um recurso natural de extrativismo. A indústria tenta impedir isto.

Os chilenos pegaram 72% da cavala pescada no Pacífico Sul de 2000 a  2010, mas a competição se intensificou depois de 2005. Um grupo de nações formaram a South Pacific Regional Fisheries Manegement Organization (SPREMO), e as maiores embarcações pesqueiras do mundo pescam com redes de arrastão além das águas chilenas.

A população real de peixes em águas chilenas está tão baixa que os navios não atingem suas cotas desde 2007. Em 2010, o limite de cavala era de 1,3 milhões de toneladas; as redes pegaram menos de 465 mil. Lota Protein tem 1,4% da cota de cavala. A empresa não pescou o suficiente em 2011 para atingir estes níveis.

A lei que regula a quantidade máxima de pescado no Chile foi criada para durar dois anos, mas, através de um lobby pesado, os senhores da pesca a mantiveram em vigor. Uma nova medida, aguardada para ser aprovada em 2012, não traz grandes mudanças. Ela permite a pesca da cavala quando abundante e maior acesso a outras espécies.

Autoridades chilenas propõem cotas baseadas no conselho da Ifop, o instituto governamental de pesca. Estas informações são repassadas ao Conselho Pesqueiro Nacional, o CNP, formado por funcionários, líderes sindicais, um advogado, dois engenheiros e dois biólogos marinhos. Mas 60% dos membros do CNP são da indústria e a maioria comanda.

Se o CNP rejeitar a proposta, a nova cota será automaticamente ajustada para o correspondente de 80% da que está em vigor. Em 2009, enquanto as reservas de cavala despencavam, o Ifop aconselhou o teto de 750 mil toneladas. O governo propôs 1,4 milhões de toneladas – quase o dobro – e o CNP aceitou.

O biólogo marinho Eduardo Tarifeño, da Universidade de Concepción, é membro do CNP e diz que o órgão tem um pequeno impacto nas decisões. “Tudo é combinado antes que cheguemos às sessões”, ele contou ao ICIJ. “A indústria conversa com o secretário de pesca e pergunta quanto o governo pretende propor. Então, eles dizem ao governo que precisam de mais toneladas para manter a indústria trabalhando”.

Em 2010, o governo adotou medidas de proteção mais fortes depois que cientistas do Ifop que estimaram aproximadamente seis milhões de toneladas em águas chilenas em 2001 acharam nenhuma em 2009. O governo ordenou um corte de 76% nas cotas, resultando em um teto de 315 mil toneladas em 2011. O CNP aprovou a quantidade.

Mas essa atitude promissora não durou. Em 20 de dezembro do último ano, o CNP se reuniu sem Tarifeño (que estava ocupado em uma aula) e rejeitou um corte significativo para 2012.

Ainda que se espere uma mudança no papel do CNP, em 2013, decorrente da nova legislação, limitando a influência da indústria, as perspectivas não são boas. Tarifeño defende que seria necessário proibir a pesca da cavala durante cinco anos para salvar as reservas.

Jogadas políticas e privilégios
Enquanto a crise piora, oficiais do governo e líderes da indústria trocam acusações, cada lado culpando o outro pela diminuição dos peixes.

Pablo Galitea, sub-secretário de pesca, culpa as grandes companhias – e governos anteriores que eles manipularam – por capturar peixes demais.  Ele disse ao jornal El Mercurio em dezembro: “Pesqueiros foram administrados com uma visão de curto prazo, que provocou um dano irreparável aos recursos”.

Luis Felipe Moncada, presidente da Asipes, uma das duas maiores associações industriais, disse ao ICIJ que a culpa é das autoridades, e não do CNP. Se o governo quisesse proteger os peixes, ele disse, teria gradualmente imposto cotas menores.

Ele disse que o governo abusou do uso de uma polêmica categoria conhecida como “pesca de investigación”, pesca de pesquisa científica, que permite às empresas burlar limites como os de tamanho mínimo do pescado. E disse que o problema começa no norte do Chile, onde o influente empresário Roberto Angelini controla 75% da cota de cavala em uma área crucial para a reprodução. A captura de peixes menores ou muito jovens está colocando os recursos naturais em risco, disse Moncada.

O Chile reserva mais de 3% das cotas para pesquisa, sem limite de tamanho do peixe. Cientistas usam apenas uma fração dessa pesca; o resto vai para a indústria. Mas autoridades chilenas confirmaram ao ICIJ que por anos esta exceção tem sido aplicada à cavala. Em 2011, isso teria significado uma fatia de 17% do total das cotas para “pesquisa”, o equivalente a cerca de 48 mil toneladas.

Agravando a situação, novas regras abaixaram o limite mínimo de tamanho da cavala, no norte do Chile, de 26 centímetros para 22. O limite no Peru, por exemplo, é de 31 centímetros.

Os herdeiros
Além da pesca, o império de Roberto Angelini inclui a maior empresa de petróleo do Chile com 620 postos de combustível. Ele é presidente da Copec S.A., um conglomerado que abrange madeireiras, produção de celulose, minas, energia elétrica, lojas de varejo e revendas de automóveis. A família possui 60% do capital da empresa.

Os chilenos chamam Angelini, 63, de “o herdeiro”. Ele recebeu o império de seu tio Anacleto, que emigrou da Itália em 1948 e casou com uma chilena. No ano em que Anacleto morreu, 2007, a revista Forbes o colocou como o homem mais rico da América do Sul, com uma fortuna estimada em 6 bilhões de dólares.

Quando Roberto era adolescente, seus pais o mandaram viver com o tio. Ele estudou na Verbo Divino, a escola católica favorita da elite do Chile – o presidente Sebastian Piñera estudou lá. Depois de formar-se na Universidade Católica, abriu seu próprio caminho. Em dois anos, entrou nos negócios da família em um de seus principais segmentos: pescaria. Em alguns anos, Anacleto o acolheu como seu sucessor.

Hoje, as duas empresas pesqueiras de Angelini, Orizon e Corpesca, controlam 29,3% de toda cota da pesca da cavala. Juntas, estas companhias abastecem 5,5% do mercado de pescado no mundo.

Reservado, Angelini evita entrevistas e câmeras. Também não quis se pronunciar nessa reportagem. Um punhado de fotos o mostram grisalho, atlético e desenvolto, geralmente com uma gravata vermelho escura. Quando a Itália o homenageou com a Ordem do Mérito, ele se comunicou apenas com alguns seletos convidados na embaixada em Santiago.

Roberto Sarquis é outra figura pivô. Sua fortuna vem exclusivamente da pesca. O avô de Sarquis começou uma pequena empresa em 1961. Nos anos recentes, sua companhia comprou várias pequenas firmas de pesca e em 2011 fundiu-se com um competidor para criar a Blumar S.A. O grupo tem a maior cota individual da pesca de cavala, 18,6%. Sarquis é presidente da maior associação industrial, Sonapesca. Até dezembro de 2010, ele era membro na CNP, o influente conselho nacional de pesqueiros.

Roberto Izquierdo Menéndez, 71, assumiu o cargo de Sarquis na CNP. Sua família possui duas empresas pesqueiras, Alimar e Sopesa, e ele comanda um conglomerado com parte na maior companhia de telecomunicações do Chile, o jornal financeiro mais importante do país, uma grande indústria de papel, uma fábrica de polipropileno e, desde 2010, uma usina termoelétrica.

Jorge Fernández e os irmãos Jan e Klaus Stengel, antigos rivais, fundiram a maior parte de suas operações de pesca em 2011. Juntos eles controlam 17,2% da cota de pesca de cavala. Ambas as famílias têm sólidos negócios separadamente, incluindo fazendas de salmão no sul do Chile.

Francisco Javier Errázuriz, 69, tem uma pequena cota de pesca mas é um membro de destaque no grupo. Conhecido como “Fra-Fra”, ele foi um candidato a presidente em 1989, representando a centro direita, e depois eleito senador. Quando esteve no Congresso, foi multado e suspenso por sequestro e agressão em uma disputa por água.

Recentemente, Errázuriz foi acusado de tráfico humano pela importação ilegal de pelo menos 150 paraguaios para trabalhar em suas terras. Em outubro de 2011, logo depois de ser formalmente acusado pelo promotor, Errázuriz teve um derrame e não saiu mais do hospital. Ele permanece no hospital. Sua empresa não respondeu ao pedido de comentário do ICJF. Seu filho Francisco Javier tem se encarregado de negar publicamente as acusações de tráfico humano contra o pai.

Sarquis, Fernández e Izquierdo Menéndez também não responderam aos pedidos de entrevista.

O mar é dos homens de negócio
No Santa María II, Jaime Araneda fala sobre sua família de pescadores, lembrando seu avô. Ele trabalhou por 11 anos em navios de grandes empresas. Agora, teme o futuro.

Quando Araneda começou a pescar, barcos voltavam depois de três ou quatro dias, sempre cheios de cavalas. Hoje, ele vai para o alto-mar além das águas chilenas por no mínimo 12 dias. Os barcos voltam quase vazios.

“O mar não pertence mais aos chilenos”, diz Araneda. “Ele pertence aos homens de negócio. Se as coisas continuarem assim, em um ou dois anos não compensará pescar no Chile”.

Peru: O peixe sumiu
Este porto em Chambote no norte peruano, cheira a peixe o ano todo. Mas quando a temporada da anchoveta começa, no final de novembro, as fábricas expelem colunas de uma nauseante fumaça que impregna o ambiente, atingindo locais a quilômetros do porto.

“Este é o cheiro do dinheiro”, diz o sorridente taxista aos visitantes que franzem os narizes à medida que se aproximam da zona industrial 27 de Octubre, onde mais de 20 fábricas trabalham a pleno vapor.

O Peru é a segundo maior nação pesqueira (depois da China) e 85% do pescado é a anchoveta. Tem gosto de anchova só que é pouco menos salgada, e algumas pessoas comem como se fossem sardinhas. Quase tudo é cozido para virar farinha de pescado, um alimento para peixes de fazenda e porcos. O Peru exportou mais de um milhão de toneladas dessa farinha em 2010, no valor de 1,6 bilhões de dólares, principalmente para a Ásia.

Todo ano mais de 6 milhões de toneladas de anchoveta chegam às docas, provenientes de mais de 100 usinas de farinha de pescado, e de plantas industriais que enlatam a farinha e aproveitam outros subprodutos. O que acontece dentro destas fábricas é conhecido somente pelos funcionários e inspetores contratados pelos empresários.

Penetrando nestas fábricas, O ICIJ, descobriu que pelo menos 630 mil toneladas de pescado desapareceu nos últimos dois anos e meio no percurso entre o navios e as balanças das fábricas. Quantidade maior de pescado que os navios britânicos descarregam em um ano.

O Ministério de Produção, que regula a pesca, negou acesso ao banco de dados que controla a atividade. Mas o ICIJ, trabalhando com o grupo peruano de reportagem investigativa IDL-Reporteros, obteve e analisou dados desde 2009 de mais de 100 mil cargas de anchoveta nos portos do norte e do centro do Peru, destinos de 90% dos peixes.

O resultado é assustador: 52% dos desembarques entre 2009 e a primeira metade de 2011 tiveram discrepâncias de mais de 10% entre a pesca declarada pelos navios e a pesca pesada na fábrica.

Essas 630 mil toneladas de anchovetas “sumidas” – valendo cerca de 200 milhões de dólares como farinha de pescado – simplesmente não foram contabilizadas. Peixes fantasmas não pagam impostos e as empresas evitam a taxa de direitos de pesca, cobrada por tonelada pesada. Pescadores, pagos pelo peso do que pescam, tem seus ganhos roubados.

O banco de dados registra apenas dados referentes à anchoveta. Para cavala, uma espécie exaustivamente pescada em águas próximas, dificilmente existe controle. A investigação do ICIJ descobriu que nos últimos quatro anos, as cotas foram excedidas praticamente metade das vezes. Embarcações também desembarcaram grandes porcentagens de peixes que estavam abaixo do limite de peso permitido.

Estas descobertas encaixam-se num panorama de sobrepesca e controle escasso no Pacífico Sul. Em duas décadas, a cavala declinou de uma reserva de cerca de 30 milhões de toneladas para menos de 3 milhões. Navios asiáticos e europeus que esgotaram outros oceanos agoram rumam para o sul, em direção ao Peru e Chile.

Trapaça nas balança
Indelesio Velásquez pesca anchoveta há 40 anos, 25 deles como mestre pesqueiro. Ele controla o tempo todo a quantidade de peixe: o porão de carga é calibrado de acordo com as especificações da Guarda Costeira.

“Quando o mestre olha dentro do porão de carga, ele sabe quanto peixe ele está levando”, Velásquez disse. “Você não vai trapaceá-lo”.

Enquanto um barco atraca no desembarcadouro da fábrica, seu mestre repassa seus cálculos para um inspetor. A anchoveta é então transportada para uma balança enorme que pesa várias toneladas de uma só vez. Os peixes não podem escapar no trajeto, e mesmo assim o ICIJ descobriu que às vezes até 50% da carga se perde.

Uma ampla gama de especialistas consultados – executivos, pescadores e inspetores – disseram que a margem de erro numa estimativa de um mestre pesqueiro é de 10%. Acima disso, é suspeito.

O governo peruano tem os arquivos de pescados declarados e pesados desde 2004. Além de rastrear fraudes, o processo tem um propósito vital: prevenir a sobrepesca. Pesquisadores da Universidade Cayetano Heredia calculam que se as 100 usinas de farinha de pescado do Peru trabalharem constantemente – 9 mil toneladas por hora – eles podem processar 30 vezes mais anchoveta que a cota anual estabelecida pelo governo.

Mas o controle não adianta se as balanças registram o peso errado. Em agosto de 2009, uma auditoria ministerial analisou balanças de sete empresas. Foram descobertas evidências de manipulações graves em 31% delas. Incluindo mudanças de senhas não autorizadas nos painéis de controle e alteração em programas.

Rolando Urban, gerente da Cerper, a empresa de inspeção que conduziu a auditoria, disse que os fiscais acharam softwares que não constam do monitoramento da Cerper. O resultado não foi publicado e o governo não melhorou a segurança eletrônica.

Críticos dizem que os inspetores são pressionados por conflitos de interesse. Cerper e SGS, a outra empresa contratada, são pagas pelas mesmas usinas de farinha de pescado que auditam. Em Chimbote, e depois em Lima, oficiais da SGS se negaram a falar “on the record”. Reservadamente, supervisores de ambas empresas admitiram ao ICIJ que o sistema é falho.

Mas alguns inspetores discutem abertamente as irregularidades que veem.

Na cidade de Coishco, no norte, Úrsula Gutiérrez, uma inspetora da Cerper, disse ao ICIJ que seus colegas têm visto selos de segurança quebrados nos painéis de controle que gravam pesagens nas usinas. Isto indica que pode haver manipulação dos pesos registrados.

Gutiérrez mostrou o diário escrito à mão onde ela arquiva as pesagens oficiais. “O último barco declarou 400 toneladas”, ela disse, “e aqui diz haver 303 toneladas. Então há uma diferença de 100 toneladas”. Mas, ela observa, seu trabalho é apenas tomar nota dos números e mandá-los ao ministério.

O controle é particularmente falho no sul do Peru e seu pequenos portos como La Planchada. Os moradores, 300 famílias, têm eletricidade por apenas cinco horas por dia. Geralmente, o peixe chega no escuro.

Três inspetores jogavam futebol perto da maior das duas processadoras de farinha de pescado de La Planchada: China Fishery Group, uma subsidiária do império de produtos marinhos Pacific Andes International Holdings, com sede em Hong Kong. Eles dizem que colegas fiscalizaram dentro, mas não há como confirmar isto. Uma cerca robusta impede a entrada na usina.

Análises do ICIJ apontam as indústrias líderes entre as piores contraventoras. As dez maiores empresas possuem mais de 60% dos direitos peruanos sobre a pesca de anchoveta. Destas, pelo menos oito apresentam repetidamente diferenças entre a quantidade de peixe declarada e a quantidade pesada: quatro são peruanas, uma de Hong Konk e três outras com investimento norueguês.

Duas empresas peruanas, Humacare e Exalmar, destacam-se nesse quesito. Na Humacare, 90% das descargas têm irregularidades, com diferenças de mais de 10% entre as quantidades registradas. Para a Exalmar, o resultado foi 88%. Às vezes, metade do que é declarado some assim que sai das balanças.

Raúl Briceño, gerente de operações na Exalmar, a maior das duas, atribui as disparidades a erros de cálculo de mestres pesqueiros, que se valem de estimativas visuais. Ele disse que 45% do peixe processado pela Exalmar vem de pescadores independentes, que procurariam outros compradores se achassem que estavam sendo passados pra trás. Também disse, por escrito, que as diferenças ocorrem porque o pescado perde líquido – logo, peso – ao serem transferidos da embarcação para a fábrica.

A Humacare não respondeu aos pedidos de entrevista.
Richard Inurritegui, presidente da Sociedade Nacional de Pesqueiros, o principal grupo da indústria, minimizou as revelações da investigação do ICIJ. Ele disse que as estimativas de mestres pesqueiros não podem ser comparadas ao que a balança mostra. Nenhuma das companhias consultadas admitiu ter conhecimento de qualquer irregularidade.

Buracos Negros
Logo que o presidente Ollanta Humala subiu ao poder, em julho passado, a nova vice-ministra de Pesca, Rocío Barrios, disse que alguns de seus assistentes escondem dela os relatórios que mostram as discrepâncias nas capturas de anchoveta. E demitiu vários funcionários públicos, além de tomar medidas legais para reduzir as irregularidades.

Kurt Burneo, o ex-ministro de Pesca, denunciou publicamente a “cumplicidade” entre os funcionários que supervisionam o desembarque das cargas e as firmas de inspeção contratadas.

Além de discrepâncias na pesagem, disse, o governo também encontrou falhas sistemáticas nos relatórios de inspeção, que impediram a imposição de multas. Ele disse também que funcionários retiraram arquivos do ministério.

Em 2009, uma nova lei determinou cotas vinculando-as a cada embarcação, o que foi anunciado como medida para limitar a sobrepesca e a corrupção. Seis das empresas que mostraram grandes irregularidades na análise do ICIJ financiaram consultores que ajudaram o governo a elaborar a lei.

O ICIJ obteve registros que sugerem que o novo sistema não proporciona um controle melhor do que o antigo. Uma amostragem de 2008 revela que metade dos desembarques de seis portos possuem discrepâncias acima de 10%. A situação não parece melhorar depois que a nova lei foi aprovada. As trapaças continuam as mesmas e a situação tende a se agravar nas próximas temporada.

Em dezembro de 2011, o ministério foi reformulado. O vice-ministro de Pesca, Jaime Reyes Miranda, declarou, em entrevista ao ICIJ, estar ciente de que há “problemas sérios” com as balanças nas usinas de farinha de pescado e afirmou que o governo está procurando uma solução para impedir a manipulação dos números referentes à pesca de anchovetas.

Vista grossa
Não há praticamente nenhum controle para a pesca da cavala. O governo conta apenas com a declaração de captura de pescado dos proprietários das embarcações.

Em 2002, o Peru baniu o uso da cavala para farinha de pescado, reservando-a apenas para consumo humano. Mas não é fácil fazer como que essa medida se realize na prática.

Em 2008, as cargas de cavala que chegaram aos portos ultrapassaram em 26% as cotas, de acordo com documentos da Imarpe, o instituto governamental de pesquisa. Nos dois anos seguintes, a pesca foi tão escassa que as cotas não foram atingidas. Em 2011, a cavala voltou a abundar nos mares e as empresas ultrapassaram as cotas em pelo menos 2%, provavelmente mais.

Em alguns casos, o Ministro da Produção determina cotas que são maiores que as recomendadas pelo Imarpe. De acordo com documentos do instituto de pesquisa obtidos pelo ICIJ, em fevereiro de 2008, o então ministro Rafael Rey fixou uma cota mensal de 38 mil toneladas para fevereiro e março – mais de 8 mil além do prescrito pelos cientistas.

Em 2011, o governo estimulou a pesca através de uma campanha, feita em conjunto com as seis maiores empresas de cavala, para vender peixe a preços reduzidos em bairros pobres.

Jorge Villasante, então ministro da Produção, disse que apenas mil toneladas de peixe foram vendidos a preços baixos na metade do ano. Esta quantidade compreende apenas 0,5% de cerca de 200 mil toneladas que as companhias capturaram naquele ano, incluindo as seis que participaram da campanha do governo. O resto foi vendido a preço de mercado.

Dados do governo mostram que as redes peruanas agora capturam muitos peixes abaixo do peso limite para pesca, ameaçando a reprodução.

“Tudo que vemos agora são cavalas pequenas”, Úrsula Amesquita disse no seu restaurante perto da China Fishery em La Planchada. Pescadores artesãos confirmam que a maioria dos peixes que eles veem no cais têm menos de 15 centímetros.

A lei demanda que a quantidade de cavala menor que 31 centímetros não pode ultrapassar 30% de um carregamento. Mas isto é difícil de ser monitorado.

O Imarpe não torna públicos seus relatórios sobre captura de cavalas jovens, nem publica as recomendações de cotas enviadas ao ministério.

O ICIJ obteve um relatório que mostra que quase 60%  de mais de 26 mil toneladas capturadas em 2009 estavam abaixo do tamanho mínimo. Em janeiro e fevereiro de 2011, os meses em que a maioria dos peixes recentemente desovou, 91% das cavalas eram muito pequenas.

Na maioria dos casos, o ministério aprova concessões excepcionais para permitir um aumento do volume de pesca de cavalas menores.

A vice-ministra de Pesca, Reyes Miranda, acompanhada por cientistas do Imarpe, assegurou, em uma entrevista ao ICIJ, que governos passados permitiram pesca de cavalas jovens, colocando as reservas em risco.

“Isto é errado”, disse a bióloga Gladys Cárdenas, cientista chefe do Imarpe, explicando que os peixes jovens são responsáveis pela renovação das reservas. “Se eles são pegos muito jovens, não têm tempo para amadurecer e reproduzir. Limites mínimos de tamanho devem ser sempre respeitados”.

O ICIJ também constatou que a corrupção continua a prevalecer no setor. As fraudes no peso também prejudicam conferir se o tamanho mínimo do pescado está sendo respeitado.

Em La Planchada, o engenheiro de pesca Wilfredo Lévano, um agente da Imarpe, disse ao ICIJ: “Existe sempre roubo nas balanças – aqui menos, ali mais. No fim, todos fazem isso”.

De volta a Chimbote, Javier Castro, líder sindical, diz que não vê vontade política para proteger as águas lucrativas do Peru. “Eu não tenho fé há décadas!”, ele diz. “Nada muda!”.

(Por Milagros Salazar - Peru, Juan Pablo Figueroa Lasch - Chile, Joop Bouma - Holanda, Irene Jay Liu - Hong Kong, Nicky Hager - Nova Zelândia, Roman Anin - Rússia e Kate Willson - EUA, International Federation of Investigative Journalism / Pública, 17/02/2012)


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