Atento aos efeitos colaterais dos conflitos urbanos em ano eleitoral, o Palácio do Planalto desencadeou uma operação para detectar as áreas "quentes" espalhadas pelo País e se aproximar das lideranças comunitárias locais. O mapeamento lista 192 pontos de disputa por moradias, mas o foco está ajustado para três Estados comandados pela oposição e que têm petistas ou integrantes do PC do B à frente dos movimentos populares: São Paulo, Minas e Goiás.
Todo o arsenal de informações sobre as zonas de conflito potencial em poder do Planalto coincide com o rastilho do "março vermelho", uma radicalização das ocupações programada pelos movimentos. O estudo, que só chegou à Presidência após a reintegração do Pinheirinho, terreno invadido por famílias que a Justiça mandou ser desocupado em São José dos Campos, inclui áreas que estão prestes a se tornarem novos focos de tensão, segundo os técnicos.
O Estado teve acesso à lista, produzida pela Coordenação de Prevenção e Mediação de Conflitos Fundiários e levada ao Planalto pela petista Inês Magalhães, secretária nacional de Habitação.
O relatório foi apresentado à Secretaria-Geral da Presidência, chefiada pelo ministro Gilberto Carvalho e responsável pela interlocução com os movimentos sociais. Internamente, o Planalto diz acompanhar à distância os conflitos para evitar discussões políticas. Mas o propósito do governo é atuar em tempo real com os movimentos.
Dados
O governo encomendou um quadro com o perfil das famílias, lideranças sociais e a situação fundiária dos locais das invasões. Também foram feitas análises sobre cada ocupação e as possibilidades de intervenção.
Uma das áreas mais críticas da lista está em Minas, com 14 casos de conflitos fundiários urbanos registrados. A ocupação da comunidade Dandara, em Belo Horizonte, completa três anos em abril e ainda não teve uma solução definitiva. Hoje, 956 famílias dividem uma área de 313 mil metros quadrados, pleiteada por uma construtora. A Justiça estadual concedeu a reintegração de posse, mas a decisão foi suspensa e uma audiência de conciliação, marcada para abril.
"Estamos preocupados com a barbárie que aconteceu com o Pinheirinho. Lá é governo do PSDB, Minas também. A Dandara é um pouco menor, mas o povo está muito organizado. Melhor morrer na luta do que abrir mão", diz uma das lideranças da comunidade, o frei Gilvander Moreira, deixando transparecer o tom político que marcaria eventuais conflitos. "Grande parte do PT quer candidatura própria (em Belo Horizonte) e apoia a comunidade. Dandara poderá ser o fiel da balança na eleição de Minas."
O frei, da Ordem dos Carmelitas, é assessor da Comissão Pastoral da Terra, do MST e professor de teologia. Segundo ele, foi pedida uma reunião com Gilberto Carvalho para discutir movimentações dos moradores. "Mas já conversamos pessoalmente com a presidente Dilma sobre a Dandara. Foram 25 minutos, e ela referendou o que já tínhamos: que o governo federal tem dinheiro para fazer a urbanização. O prefeito Márcio Lacerda e o governador Antonio Anastasia precisam é desapropriar a área."
Desgaste
Em São Paulo, palco do mais recente embate entre os governos estadual e federal, foram catalogados pelo menos 32 casos de conflitos urbanos de alta voltagem. Desses, seis ficam em São José dos Campos.
Desde a desocupação do Pinheirinho em 22 de janeiro, o PT usa o episódio para desgastar o PSDB, afirmando que a ação de despejo teria violado os direitos humanos e contrariado negociações políticas. Na capital, foram listados pontos como Cidade Tiradentes, Vila Moinho, Favela do Sapo, Comunidade da Caixa D'água e Vila Monumento.
Outro problema grave identificado pelos técnicos está relacionado às desapropriações de áreas ocupadas para obras da Copa de 2014. Manaus registra o pior cenário: os 11 casos de conflitos são considerados graves. A disputa envolve governo federal, estadual, iniciativa privada e movimentos sociais.
Movimentos por moradia já reúnem 200 mil filiados
Os principais movimentos urbanos em defesa da moradia já conseguiram recrutar, segundo estimativas das próprias lideranças, um contingente que pode chegar a 200 mil filiados. Dentro do governo, quatro entidades ganharam representatividade no Conselho das Cidades, órgão vinculado ao Ministério das Cidades responsável por discutir a política de habitação do País.
Além de famílias de sem-teto, o Movimento Nacional de Luta pela Moradia, a União Nacional por Moradia Popular, a Central de Movimentos Populares e a Confederação Nacional de Associações de Moradores (Conam) reúnem uma legião de filiados a partidos políticos de esquerda abrigados na base governista.
No aparelhamento, PT e PC do B predominam. Algumas dessas lideranças já se apresentam como candidatos às Câmaras Municipais e às prefeituras.
"Não vinculamos nossa plataforma para apoiar alguma candidatura. Cada um trabalha dentro do seu partido, faz as campanhas", destaca Bartíria Perpétua Lima, integrante da Direção Nacional do PC do B e presidente da Conam.
Além dela, outros seis representantes da confederação no Conselho estão ligados a um partido. Segundo Bartíria, a situação da habitação popular não está calma e novas ocupações dependem das conjunturas. "O caso Pinheirinho ultrapassou os limites. Foi uma anormalidade. Hoje temos um governo (federal) mais democrático, mas ao mesmo tempo você vê governos retroagindo e que, como em São Paulo, não aplicam o Estatuto das Cidades", alega.
O ConCidades, vinculado ao Ministério das Cidades, volta a se reunir na quarta-feira. O encontro segue até 2 de março. A desocupação do Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ainda não foi discutida no âmbito do colegiado. Na pauta está o Rio+20. Segundo a assessoria de imprensa do Ministério das Cidades, a filiação partidária dos conselheiros é desconhecida e a participação do cidadão independe de partido político.
Em MG, três ocupações em sinal de alerta
"Nós não invadimos. Ocupamos. Sabíamos desde o início que não ia ser fácil, mas não vamos desistir." É com este sentimento que a dona de casa Rosimar Ione Santos Silva resume a situação atual das 956 famílias que vivem na comunidade Dandara, na região da Pampulha, em Belo Horizonte.
A ocupação, formada hoje por centenas de casas de alvenaria sem acabamento e construídas em ruas de terra batida, tornou-se, junto com as ocupações Camilo Torres e Irmã Dorothy, no Barreiro, um símbolo de luta dos sem-teto na capital mineira e um imbróglio para o poder público.
Com as imagens da desocupação de Pinheirinho, em São José dos Campos (SP), ainda na mente, Rosimar afirmou que os moradores de Dandara se mobilizam para evitar "outra covardia como aquela", mas admitiu que o local pode se tornar palco de novo embate. Isso porque, em meio a uma disputa judicial, os moradores afirmam que não vão deixar a área.
Uma das coordenadoras da ocupação, Rosimar afirma, porém, que a comunidade ainda tem esperança de resolver pacificamente a questão. Para os moradores, isso significa obter a titularidade das propriedades ou ao menos a inclusão em programas como o Minha Casa, Minha Vida para a aquisição de imóveis que porventura venham ser construídos no local.
"A gente quer pagar pelas nossas casas. Mas nem prefeitura nem governo estadual querem ajudar e dizem que o problema é entre a gente e a construtora", declarou. Ela se refere à Construtora Modelo, proprietária da área de 315 mil metros quadrados onde foi erguida a comunidade e que luta na Justiça pela reintegração de posse do terreno.
No ano passado, a Justiça chegou a deferir liminar determinando a desocupação da área, mas a medida foi suspensa pelo próprio Judiciário. Situação semelhante é a das comunidades Camilo Torres e Irmã Dorothy, também alvo de disputas judiciais.
Apoio
Nos quase três anos desde o início da ocupação, Dandara ganhou destaque nacional e apoio de diversas entidades e instituições, como a Universidade Federal de Minas Gerais e a Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG), de onde saíram os arquitetos que projetaram o zoneamento da área. Hoje, a comunidade recebe visitas frequentes de estudantes de diversas escolas da capital e universitários de Florianópolis (SC) já passaram temporadas morando com as famílias.
Representantes dos moradores também já tiveram reuniões no Ministério das Cidades, na Secretaria-Geral da Presidência e até com a própria presidente Dilma Rousseff. "A presidente viu as fotos e considerou que já é um bairro e que casas não podem ser derrubadas. Nos deu garantia de que o governo federal tem recursos para investir, mas precisa que a prefeitura faça a desapropriação", conta o frei Gilvander Moreira, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), que participou do encontro com Dilma.
No entanto, o impasse parece estar longe de ser resolvido. Por meio de sua assessoria, a prefeitura informou que não pode adotar nenhuma medida enquanto não houver uma decisão judicial. Na Justiça, todas as tentativas de acordo fracassaram e uma nova audiência para tentativa de conciliação foi marcada pela 6.ª Vara da Fazenda Pública Estadual do Fórum Lafayette para o começo de abril.
A reportagem tentou entrar em contato com a Construtora Modelo, mas não teve resposta.
(Por Alana Rizzo e Marcelo Portela, O Estado de S. Paulo / IHU On-Line, 26/02/2012)