Sobreviventes dizem que tragédia na base brasileira na Antártida gerou ambiente de união entre civis e militares. Tenente conta que vento piorou incêndio; almirante já fala na construção de uma base mais moderna
"Vamos que vai dar, vamos que vai dar." Era assim que o primeiro-sargento Roberto Lopes dos Santos encorajava os colegas na tentativa de apagar o fogo que praticamente destruiu a Estação Antártica Comandante Ferraz, base brasileira na Antártida, na madrugada de sábado.
Santos morreu, mas o servidor da Marinha Vicente de Paiva, que estava perto dele, ainda lembra das palavras do companheiro. Sem dormir há duas noites, ele contou à Folha, no hotel onde os 44 resgatados da base foram abrigados, em Punta Arenas, Chile, que a tragédia gerou um ambiente de união entre militares, técnicos e cientistas.
"Os dois são heróis, não vão sair da minha memória." Além de Santos, foi morto o suboficial Carlos Alberto Vieira Figueiredo. Não há previsão para os corpos serem levados para o Brasil. O primeiro-sargento Luciano Gomes Medeiros saiu ferido e foi internado em Punta Arenas.
No domingo pela manhã, o clima no hotel Diego de Almagro era de alívio e tristeza. Muitos dos sobreviventes não quiserem falar com a imprensa. "Não tenho nada a acrescentar, foi uma tragédia da qual nunca vou me esquecer. Perdemos dois companheiros, isso não tem preço", disse o técnico José Brito. Outros, cabisbaixos, nem respondiam aos pedidos. Também consternado, o embaixador do Brasil no Chile, Frederico Cezar de Araújo, informava sobre as providências com lágrimas nos olhos.
"Não é hora de contabilizar o quanto perdemos em números. Todos tínhamos imensa ligação afetiva e orgulho daquele lugar. E, agora, nosso orgulho está queimado", disse o almirante Marcos José de Carvalho Ferreira. O momento agora, disse, é de pensar na nova base. "Temos de usar elementos modernos, não construí-la direto sobre o chão como esta. Há muito para melhorar."
Oficiais da Marinha eram os mais elétricos. Tentavam organizar os horários e o transporte para o aeroporto. Pareciam tentar contagiar os civis, mais desanimados.
A maioria conta que estava dormindo quando o fogo começou. Um grupo que estava acordado conversando percebeu o problema e deu o alerta, golpeando as portas para acordar os colegas.
"Separamos os civis de um lado e passamos a enfrentar o fogo", conta o tenente Pablo Tinoco. "Mas o vento piorava tudo." Ele relata que foram usados tratores para atravessar o fogo e tentar chegar ao lugar onde haviam desaparecido os dois oficiais.
O pesquisador de hidrografia da UFRJ, Caio Cipro, estava em sua quinta visita à Antártida. Ele não ouviu o chamado dos companheiros e continuou dormindo. Só quando foi feita a contagem do grupo, deram pela falta dele. "Quando acordei, o cenário era ainda mais grave."
Recuperado do susto, Cipro ajudou no resgate do sargento Medeiros, que, além das queimaduras, sofreu hipotermia e foi levado à base polonesa, onde foi inicialmente atendido.
No começo da tarde de ontem, o grupo embarcou para o Brasil num avião da FAB, com chegada prevista no Rio de Janeiro para 1h desta segunda-feira.
Destruição deve acelerar reformulação de programa
A destruição de 70% das instalações da estação Comandante Ferraz deve precipitar a reformulação do Proantar (Programa Antártico Brasileiro) pelo governo. O ministério já havia encomendado a um comitê de cientistas um plano para orientar as pesquisas na região no período 2012-2021.
"Vamos ter de acelerar isso agora", disse o secretário de Programas de Pesquisa do Ministério de Ciência e Tecnologia, Carlos Nobre.
Pesquisadores do comitê ouvidos pela Folha afirmam que a tragédia traz também a oportunidade de reconstruir o programa -e a base- de forma diferente.
"O Proantar nos últimos anos tomou um rumo de diversificação", diz o biofísico Heitor Evangelista, da UFRJ, um dos primeiros brasileiros a pesquisar na Antártida. "A pesquisa não fica só na estação; temos navio, acampamentos e trabalhos no interior do continente."
Segundo ele, uma das ideias é montar uma "estrutura mínima" em Ferraz e avaliar a possibilidade de bases em outros lugares.
O Proantar foi criado em 1982 com fins diplomáticos: o Brasil precisava ter um programa para poder ser parte do Tratado da Antártida, o clube de nações que gerencia o continente. Em 1984, para apoiar a ciência, foi instalada a Estação Antártica Comandante Ferraz, na ilha Rei George.
Para Yocie Yoneshigue, coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Pesquisas Ambientais, a estrutura terá de ser revista. "Se fossem blocos separados, talvez o fogo não se alastrasse", diz.
A microbióloga Vivian Pellizzari, da USP, concorda. "Seria a oportunidade de reavaliar a estrutura em contêineres." Segundo ela, a concepção de Ferraz é antiga e os sistemas de energia e de hidráulica são ruins. "Todo ano a água no nosso módulo congela."
Ela reivindica a participação dos cientistas no processo, já que, apesar de ser uma estação de pesquisas, quem decide é a Marinha.
O incêndio também traz preocupações científicas mais imediatas. Vários grupos de pesquisa -especialmente os de biologia, cujos laboratórios ficavam dentro do complexo principal- perderam tudo: equipamentos, amostras, dados. "Sem energia não tem congelamento e não há como conservar o material", conta Pellizzari.
Neusa Paes Leme, pesquisadora do Inpe que estuda o buraco na camada de ozônio sobre a Antártida, não perdeu equipamentos nem dados colhidos, repassados via on-line para o Brasil. A preocupação, diz, é com a retomada da energia.
O ministro da Defesa, Celso Amorim, disse ontem que o programa brasileiro na Antártida está mantido e que a estação deverá ser reconstruída dentro de nove meses. "O programa é importante não apenas para o Brasil como para a própria humanidade", afirmou ele.
Na avaliação do ministro, enquanto o local estiver sendo reconstruído, pesquisadores poderão prosseguir paralelamente com seus trabalhos.
60% dos estudos estão preservados, afirma cientista
Diretor do Centro Polar e Climático da UFRGS (Universidade Federal do RS) e cientista-sênior do programa antártico, Jefferson Cardia Simões relativiza o impacto do incêndio.
"Hoje, 60% das pesquisas são realizadas fora da estação, em acampamentos, navios." Segundo Simões, os estudos mais afetados são os de biodiversidade, fisiologia animal e impacto humano na Antártica. Pesquisas em geologia, oceanografia e geofísica pouco sofreram.
Coordenadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia Antártico de Pesquisas Ambientais, Yocie Yoneshigue afirma que parte do material pesquisado nos últimos meses já estava embarcado num navio da Marinha.
Verba para programa antártico é a mais baixa dos últimos anos
O orçamento deste ano do programa brasileiro na Antártida, o Proantar (Programa Antártico Brasileiro), é o menor dos últimos sete anos.
O Proantar recebe quase todo recurso dos ministérios da Defesa e da Ciência e Tecnologia. Os recursos da Ciência e Tecnologia são em sua maioria para bolsas de pesquisa. Já os da Defesa são usados para bancar o funcionamento e ampliação da estação Comandante Ferraz e do navio de transporte.
Mas a área de pesquisa da base e a estação brasileira Comandante Ferraz recebem investimentos de outras maneiras que não são registradas no orçamento da União.
A previsão de recursos do Proantar para 2012 era a menor desde 2006. O valor para 2012 é 42% abaixo do orçamento do ano passado, caindo de R$ 18,3 milhões para R$ 10,7 milhões. O valor desse ano é praticamente o mesmo de 2005 corrigido. Os orçamentos de 2004 a 2002 eram menores.
A redução acompanha um decréscimo de gastos efetivos de recursos do orçamento federal no programa. Em 2010, o Proantar gastou R$ 28,8 milhões em ciência e logística. Em 2011, teve gastos de R$ 11,2 milhões, apenas 40% do dispêndio do ano anterior e o menor gasto desde 2007.
O ministro Marco Antonio Raupp (Ciência e Tecnologia) diz que o ministério gastou R$ 138 milhões com atividades na Antártida de 2007 para cá, o que inclui ações dentro do Proantar e fora dele.
"Sou um realista, sei que você só pode investir e gastar aquilo que está dentro do seu orçamento. Para tudo no Brasil precisa de mais [recursos]. Tem que ir vendo o que é mais necessário no momento."
O ministério da Defesa e a Marinha, responsável pela base, informaram que não teriam condições de comentar os números ontem.
Em 2007, a Defesa gastou R$ 20,2 milhões na base em valores corrigidos. Em 2008, o valor foi quase o mesmo, caindo para R$ 6,5 milhões em 2009. O gasto subiu em 2010 para R$ 17,3 milhões e no ano passado caiu para R$ 9,7 milhões.
(Por Sylvia Colombo, Dimmi Amora, Johanna Nublat, Simone Iglesias, Claudio Angelo e Eliane Cantanhêde, Folha de S. Paulo, 27/02/2012)