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grilagem de terra cr almeida amazônia
2012-02-16 | Mariano

Em novembro do ano passado anunciei, nesta coluna, que “a maior propriedade rural do mundo deixou de existir legalmente”. O anúncio se baseava na decisão do juiz Hugo Gama Filho, da 9ª vara da justiça federal de Belém. O juiz mandara cancelar o registro imobiliário da Fazenda Curuá, que consta dos assentamentos do cartório de Altamira, no Pará. O imóvel foi inscrito nos livros de propriedade como tendo nada menos do que 4,7 milhões de hectares.

Seu suposto dono, o empresário Cecílio do Rego Almeida, podia se considerar o proprietário da 21ª maior unidade federativa do Brasil, com tamanho superior ao dos Estados do Rio de Janeiro, Alagoas, Sergipe, Espírito Santo e Distrito Federal.

Reunindo outros imóveis sob seu controle cartorial à Fazenda Curuá, seus domínios fundiários excediam essas dimensões. Poderiam alcançar 7 milhões de hectares, duas vezes e meia o tamanho da Bélgica, país onde vivem mais de 10 milhões de pessoas. Passaria a ser o 19º Estado brasileiro, ultrapassando ainda a Paraíba e o Rio Grande do Norte.

Ao saberem que fui condenado por denunciar essa grilagem de terras, desfeita pela 1ª instância da mais acredita das justiças do país, várias pessoas me telefonaram perplexas. Como podia ser?

Enquanto a justiça federal desfazia o estelionato fundiário, praticado sobre terras que, na verdade, pertenciam ao poder público, como é que justamente o judiciário do Pará, com jurisdição sobre esse território, que também lhe incumbe defender de crimes e ilicitudes, me condenava a indenizar o grileiro?

A ação remonta a 2000, quando a grilagem do dono da Construtora C. R. Almeida, do Paraná, já era considerada o caso mais escabroso de apropriação ilícita de terras públicas do país. Tanto por suas dimensões quanto pela forma ardilosa adotada.

O empreiteiro comprara o controle de uma pequena empresa local, quase desativada. O ativo da Incenxil incluía registros de terras, que tinham origem em contratos de arrendamento do Estado para a exploração de seringais.

O extrativismo vegetal para a produção de borracha era então, entre os anos 1920 e 1940, a principal atividade econômica da região. Os contratos, por prazo certo, não estavam mais em vigor. E as transcrições imobiliárias não tinham sustentação em qualquer forma de título válido. Não houve, portanto, transferência das terras do Estado para o particular.

A fraude era evidente. Em 1996 o Iterpa (Instituto de Terras do Pará) obteve sentença favorável do juiz de Altamira para que, à margem do registro, fosse anotada a advertência de que aquele imóvel estava sub-judice até a decisão final sobre a ação de anulação e cancelamento ajuizada pelo Estado.

O registro, porém, permaneceu de pé por longos 15 anos porque o grileiro conseguiu que a justiça estadual, através de dois desembargadores (João Alberto Paiva e Maria do Céu Cabral Duarte), o favorecessem com seus despachos. Denunciei a ambos. Fui processado pelos dois. Paiva teve um grande patrono, um ex-ministro do Tribunal Superior Eleitoral, Eduardo Alckmin, também advogado da C. R. Almeida (e, nos últimos tempos, do senador ficha suja Jader Barbalho).

A sentença do juiz federal começou a mudar essa situação, ao dar validade à primeira e única decisão contrária aos interesses do grileiro, da lavra do juiz de Altamira. Mas a justiça paraense continuou na contramão do direito e da verdade, indiferente a todas as provas juntadas no curso da instrução dos processos instaurados pelo empreiteiro contra mim.

Em 2006 o juiz Amílcar Guimarães, ao ocupar interinamente, por um único dia, uma das varas cíveis de Belém, me condenou a indenizar o grileiro em oito mil reais, “por dano moral”, em valor da época. A causa do ilícito: eu o chamara de “pirata fundiário”. Como deve ser chamado quem toma como seu o que não lhe pertence, e se esse bem é de propriedade pública?

“Gente boa”, talvez, como uma propaganda comercial de ampla veiculação denomina os que portam seu cartão de crédito. Ao menos no entendimento dos doutros desembargadores do tribunal do Pará, que mantiveram a sentença em 2º grau, rejeitando minha apelação. E negaram todos os meus recursos, praticando atos que não encontram guarida nas normas processuais do direito.

Até que, exaustos e desesperançados, por desatenção típica do estresse, cometemos — minha advogada-prima e eu, que trabalhamos juntos — pequenos erros formais no preparo do recurso que, finalmente, levaria o meu “caso” à consideração dos tribunais superiores em Brasília: faltou a cópia de um recibo postal ou a cópia de um acórdão não foi de inteiro teor. Esses documentos não podem ser repostos. A rejeição é fulminante.

Assim, o presidente do Superior Tribunal de Justiça negou seguimento ao meu recurso, que não pôde ser apreciado pela corte. O que me resta agora é uma ação rescisória, mas eu teria que me submeter novamente ao tribunal do Pará. Ele me condenou por um ato político, que o definiu, ao menos nesse contencioso. Voltará atrás, reconhecendo que agiu fora da lei? Submeterá ao Conselho Nacional de Justiça algum “bandido de toga”, na expressão da corregedora Eliana Calmon?

Durante dois anos a ação contra mim prosseguiu, apesar das minhas advertências de que o autor do processo estava morto desde maio de 2008. Contra todas as razões de direito, o defunto permaneceu como vivo dentro dos autos, nos quais sua procuradora, mesmo sem procuração válida continuou também a atuar.

Executando-se a sentença, da qual me recuso a apelar para magistrados que foram meus algozes e para uma instituição já sem credibilidade, indenizarei os herdeiros de Cecílio do Rego Almeida, que conseguiram se habilitar a suceder o pai na demanda graças à conivência dos desembargadores. Conivência com a qual não contaram na 10ª vara criminal do mesmo judiciário paraense.

Lá, a juíza Maria Betânia Rodrigues constatou que a ação estava deserta e declarou a extinção da minha punibilidade, pondo fim ao outro processo que o empreiteiro instaurou. Tudo simples, claro e correto, como o ato do juiz federal.

Quando a sentença que me condenou for executada, depois do trânsito em julgado do processo, todos saberão que no Pará os piratas fundiários não apenas se apropriam do patrimônio público como são indenizados por ofensa moral que sofrem quando alguém ousa dizer que o rei está nu. Ao dar esse direito ao pirata, a justiça do Pará se desnudou de vez.

(Por Lúcio Flávio Pinto, Cartas da Amazônia / Todos com Lúcio Flávio, 15/02/2012)


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