A crise global tem lá suas virtudes. Entre as raras, lançou os economistas nas hostes da defesa do ecúmeno. Em alguns casos, leio e vejo o tema tratado com respeito. Respeito e sem despeito pelo sujeito que realmente interessa na relação economia–sociedade-natureza, o cidadão e suas condições de vida.
Kenneth Rogoff publicou um artigo implacável sobre o tema, sem flutuar nas indefinições convenientes que opõem genericamente o progresso econômico à preservação ambiental. Progresso e econômico são nominações sem conceito e se prestam a tergiversações ideológicas e álibis interessados. Nessas caixas aconcentuais cabem quaisquer contrabandos, como, por exemplo, o consumismo desaçaimado, introduzido na história como um deus ex machina.
Em seu artigo, Rogoff revela algumas inclinações perigosas num mundo que se acoita nas paliçadas do politicamente correto. Uma delas é dar o nome e endereço dos processos que desataram a agressão ao ecúmeno e à vida civilizada no planeta. “A sistemática e ampla falha regulatória é o elefante enfiado na sala do capitalismo ocidental.” Rogoff diz que a dinâmica político-financeira levou ao ataque cardíaco da economia em 2008, mas está interessado em ir além e investigar as mazelas constitutivas, estruturais, do dito capitalismo ocidental. Cuida da indústria de alimentos e de sua influência “maligna nos padrões de nutrição e na saúde dos cidadãos”. O Centro de Controle e Prevenção de Doenças constatou que um terço dos adultos americanos é de obesos. Ainda mais chocante: entre seis crianças, uma é obesa. Os custos da obesidade não se restringem aos danos causados aos indivíduos, mas pesam no bolso da sociedade sob a forma de maiores gastos com saúde.
Rogoff não foge das perguntas inconvenientes. Os americanos são naturalmente inclinados a comer porcarias, junk food, ou a indústria de alimentos forra o caixa vendendo a gororoba com aditivos químicos destinados a criar hábitos irresistíveis de consumo? Resposta: os cientistas são pagos para combinar sal, açúcar e aditivos químicos de modo a tornar os últimos instantes da refeição mais atraentes e viciosos; as agências de propaganda são pagas para dominar as preferências dos consumidores e, no fim da linha, a indústria privada da saúde faz fortuna ao tratar das doenças provocadas pelo consumo de venenos. O “capitalismo coronariano”, conclui Rogoff, faz sucesso nas bolsas de valores que negociam diariamente as ações das processadoras de alimentos.
O capitalismo, essa formidável máquina de eliminação da escassez e de controle, libertou o homem moderno dos caprichos da natureza, da fome provocada pela má colheita, das pestes devastadoras. Mas o aprisiona em estruturas técnico-econômicas autorreferenciais e maníacas, governadas por relações de poder que agem sobre o destino dos protagonistas da vida social como forças naturais, fora do controle da ação humana. Estranho paradoxo, a desumanização da natureza, isto é, a degradação do ecúmeno ameaça a vida do homem e ao mesmo tempo impõe a naturalização das relações sociais.
O consumismo é apresentado como um vício moral originário da tentação que expulsou Adão e Eva do Paraíso. Mas essa patranha moralista e inconsequente esconde a deformação do desejo promovida por um sistema social e econômico que se encarrega de “criar” necessidades e de ajustá-las ao impulso incontrolável de ampliar o espaço em que se realiza o desejo maior, a acumulação de riqueza abstrata.
A forma moderna e capitalista do consumo de massa começa a se definir nos Estados Unidos entre o fim do século XIX e a primeira metade do século XX. Os consumidores estavam abrigados em grandes concentrações nas metrópoles criadas pela Segunda Revolução Industrial do motor a combustão, da eletricidade e das megaempresas. As novas classes médias se deslocaram para os subúrbios das cidades e levaram consigo a difusão dos duráveis. O desenvolvimento do crédito e as técnicas de propaganda inerentes à concorrência monopolista transformaram o consumo e o consumismo em um componente dinâmico da demanda efetiva. No pós-guerra, os desatinos e desperdícios desse “vício sistêmico” foram turbinados pelas novas modalidades de financiamento (cartões de crédito, por exemplo) e, mais recentemente, no mundo da finança desregrada, pela valorização do estoque de riqueza ao longo dos ciclos de crédito, o que desvincula crescentemente o consumo do comportamento da renda corrente.
A valorização do patrimônio líquido das famílias facilita o crédito barato para financiamento do gasto que alimenta a acumulação de lucros e liquidez pela grande empresa. O consumo final e intermediário da economia se abastece dos bens gerados a preços cadentes nas usinas de produtividade dos trabalhadores asiáticos, com ganhos reais para os consumidores e as empresas.
(Por Luiz Gonzaga Belluzzo, Carta Capital, 13/02/2012)