O maior trem do mundo
Leva minha terra
para Alemanha
leva a minha terra
para o Canadá
leva a minha terra
para o Japão.
O maior trem do mundo puxado por cinco locomotivas à óleo diesel
engatadas geminadas desembestadas
leva o meu tempo, minha infância, minha vida
triturada em 163 vagões de minério e destruição.
O maior trem do mundo
transporta a coisa mínima do mundo
meu coração itabirano.
Lá vai o maior trem do mundo
Vai serpenteando, vai sumindo
E um dia, eu sei, não voltará
Pois nem terra, nem coração existem mais.
(Carlos Drummond de Andrade)
Janeiro terminou mal para a maior empresa privada da América Latina. Pelo menos do ponto de vista moral. Parceira preferencial de governos e acionistas, a Vale, antiga estatal Companhia Vale do Rio Doce, recebeu semana passada o prêmio Public Eye Award, como a pior empresa do mundo.
À primeira vista parece mais um daqueles prêmios alternativos, sem muita credibilidade e repercussão. Mas olhando os promotores do prêmio e o método de escolha dos agraciados é impossível ignorar sua importância e seriedade.
Criado em 2000 como um contraponto ao Fórum Econômico de Davos, o Public Eye Award tem como principal organizador "A Declaração de Berna", uma ONG Suíça com 40 anos e mais de 20 mil membros. Este ano, o prêmio também foi bancado pela Greenpeace, que assumiu o lugar da Amigos da Terra (Friends of Earth), engajada na premiação desde sua criação.
A forma de escolha dos vencedores é por voto aberto na Internet. Das 88 mil pessoas que votaram, mais de 25 mil escolheram a Vale como a pior de todas. Atrás dela ficaram irresponsáveis notórias como a japonesa Tepco pelo gerenciamento criminoso do desastre nuclear de Fukushima; a sul coreana Samsung por sua postura negligente frente a doenças ocupacionais e degenerativas de seus funcionários; o banco britânico Barclays por suas práticas de especulação com preços de alimentos no mercado financeiro; a suíça Syngenta pela insistente sacanagem de vender a países pobres e em desenvolvimento os agrotóxicos proíbidos nos países ricos.
Vale esclarece
A resposta da campeã veio em duas formas. Uma carta enviada ao Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos de Londres e um website. Tanto na carta quanto no site, a companhia nega todas as acusações, fazendo entender que tudo não passa de uma injustiça.
No website há uma abordagem completa do problema. Chama "Vale Esclarece" e apresenta 10 acusações na forma de "o que dizem sobre a Vale" X "fatos reais sobre a Vale". Logo no primeiro ítem a questão da participação da maior exportadora de minério de ferro do mundo no projeto da hidrelétrica de Belo Monte, responsável pela escolha indicação dela na premiação.
Sobre os "fatos reais" a empresa explica: "A aquisição de participação no projeto Belo Monte (9%) é consistente com a estratégia de crescimento da empresa". E esse é o grande fato. A empresa tem que crescer, tem que continuar dando lucro. O que oferece em troca, sejam empregos, sejam compensações sócioambientais, nem sempre está de acordo com o princípio da sustentabilidade, muito menos com o interesse de comunidades que de uma hora para outra têm sua vida virada do avesso.
Para compensar os passivos morais que se acumulam, a empresa lançou em 2009 um Guia de Direitos Humanos. Com 36 páginas o documento resume os princípios básicos de uma questão que ganhou mundo nos últimos anos. Mas tudo na teoria. O guia peca ao não citar nem um exemplo prático ou estudos independentes comprovando que ela avançou nesse terreno.
Centenas de processos
Nos dois últimos ítens da lista com "fatos", os esclarecimentos são protocolares. Sobre os 114 milhões de metros cúbicos de efluentes despejados anualmente em rios e oceanos, a empresa responde que tem investido na redução e que, acima de tudo, "cumpre a lei". Da compensação pela poluição e os danos já causados, nem uma palavra.
O "retorno" pela exploração e degradação é tratado no último ítem, a respeito dos 267 processos legais envolvendo a multinacional em 2010. Mas nesse assunto a Vale é curta e grossa. Em apenas oito linhas ela esclarece: "A empresa é transparente em relação aos processos legais". De fato mesmo, informa também que a mineradora não pagou nenhuma multa ou indenização em 2010, e que, de todos os processos, 69 questionam a legalidade da privatização da empresa, ocorrida em 1997.
Vale ressaltar que o texto desse ítem abre com a seguinte frase: "A Vale entende que o sistema jurídico é um dos pilares mais importantes de uma sociedade democrática." Interessante dizer isso justamente num momento em que o Brasil inteiro se levanta contra a corrupção e a impunidade no judiciário.
Lucro verde
Mês passado a Amigos da Terra lançou a terceira parte do documento "Como as corporações governam". O estudo de caso dessa vez trata justamente da exploração de carvão em Moçambique empreendida pela vencedora do Public Eye Award. "Vale – liderando o lobby corporativo para facilitar compensações e outras falsas soluções “verdes", diz o título da publicação.
Em poucas palavras, o documento desmascara a "estratégia sustentável" da empresa, mostrando inclusive como ela se envolveu nas negociações do clima visando garantir negócios futuros apenas em nome da sua lucratividade. A conclusão do texto afirma: "A estratégia climática de dupla abordagem da Vale, desenvolvendo negócios extrativistas mundiais, juntamente com iniciativas lucrativas de compensação em seu país - respaldada por sua estreita relação com o governo brasileiro - tem permitido a ela lucrar com falsas soluções para a crise climática – e ao mesmo tempo lucrar ao exacerbar o problema climático através de suas atividades mineradoras.... A Vale também esteve na COP 17 em Durban para assegurar que as coisas continuem assim".
Para fechar o mérito ao prêmio, a Articulação Internacional dos Atingidos pela Vale lançou em abril de 2010 o Dossiê dos Impactos e Violações da Vale no Mundo. Em 80 páginas, a publicação fala dos passivos no berço mineiro, no Carajás de Pará e Maranhão, no Ferro Liga do Pantanal/MS, nas siderúrgicas da Baía de Sepetiba/RJ e do Pecem/CE. No exterior, a lista passa por Chile, Argentina, Peru, Canadá, Moçambique e Indonésia.
Mesmo que a grande imprensa brasileira tenha praticamente ignorado a notícia do prêmio, a Vale é agora uma vitrine dos horrores para o governo brasileiro na Rio+20. É também um sinal para que o Brasil se prepare para discutir de sustentabilidade, muito além da perspectiva econômico-financeira.
Outras matérias sobre o assunto:
Mesmo comemorado, prêmio de pior empresa dado à Vale não traz mudança no ES (Século Diário, 01/02/2012)
Companhia brasileira ganha o prêmio de pior empresa do mundo (Blog SuperInteressante, 31/01/2012)
Public Eye award singles out mining company Vale, Barclays (The Guardian, 27/01/2012)
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 03/02/2012)