O economista Benjamim Coriat, na sua reflexão sobre o toyotismo (modelo de organização industrial japonês), utilizou a emblemática frase “pensar pelo avesso” para caracterizá-lo. “Pensar pelo avesso” expressava aí uma visão de mundo (japonesa) e uma via distinta (específica, não antagônica) da organização do capitalismo industrial. O toyotismo era assim o avesso do “fordismo-toyotismo”. Enquanto nos EUA do pós-II Guerra as condições sociais possibilitavam um pensamento direcionado para a produção em massa, no Japão se pensava no “just in time” (produção por encomenda) de pequenas quantidades diversificadas.
Dessa formulação, nos interessa não o conteúdo, mas a metáfora. Indicar que numa mesma conjuntura histórica é possível serem formadas profundas diferenças de visão de mundo e de adaptação às configurações sociais e econômicas. Se isso é verdade para a “economia” é ainda mais válido para a sociedade. Pensar pelo avesso é aqui um exercício de crítica sociológica. Queremos mostrar exatamente como o que é concebido do ponto de vista da “Nação” como desenvolvimento pode ser, do ponto de vista de uma multiplicidade de grupos, o seu avesso.
Os “avessos do desenvolvimento”, no caso do Brasil, expressam como o desenvolvimento pode ser não somente entendido, mas também vivido por ângulos diferentes. Aqui nos colocamos a tarefa de pensar a universalidade do próprio “desenvolvimento econômico” como objetivo e valor. E apresentaremos algumas ideias de como nos conflitos ele se revela seus avessos.
A relação com os povos indígenas foi, em diferentes momentos, um tema delicado. Essa relação sempre foi marcada pelo ideário do evolucionismo e depois claramente pelo desenvolvimentismo. Os povos indígenas foram no século XX entendidos como pertencentes a um polo “subdesenvolvido da história” (em termos culturais, tecnológicos, econômicos) e seriam “demandantes do desenvolvimento” – que viria por meio de pacotes tecnológicos e econômicos, obras de integração e “difusão” da economia nacional.
Nesse mesmo período, os índios foram incorporados ao discurso nacionalista; eles seriam o testamento da antiguidade e legitimidade do Brasil enquanto Nação soberana. Símbolos da soberania enquanto personagens da história, setor “subdesenvolvido” e frequentemente entendido como “obstáculo” ao desenvolvimento – que deveria ser “desenvolvido” ou removido através de diferentes estratégias. Os índios eram celebrados como personagens literários, mas combatidos como seres históricos reais.
O “desenvolvimento” hegemonicamente concebido como acúmulo (de bens culturais, materiais, de produção e produtividade) foi assim o fator de choque entre o Estado e as chamadas frentes de expansão (atividades comandadas por forças econômicas que faziam da aquisição de terras para exploração madeireira, agropecuária e agroindustrial seu motor) e os povos indígenas.
Cabe então qualificá-lo historicamente. Não estamos mais falando de um desenvolvimento qualquer. Existe um desenvolvimento que se pretende “sustentável” – ambientalmente, socialmente – ou seja, que reconciliaria as promessas do “crescimento econômico” com o “bem-estar social”. A “nova” política de desenvolvimento é pensada desde 2003 – do primeiro Governo Lula em diante – a partir de uma dispersão de ações de Estado e políticas públicas (ações como os Programas Fome Zero, Luz para Todos e Bolsa Família, e o Plano de Aceleração do Crescimento/PAC 1 e 2, de 2007 e 2010, respectivamente) e qualificada de “social, sustentável”. O fato é que, desde 2003, foram criados novos instrumentos institucionais e novas formas de discurso. De um lado, intensificação da acumulação de capital e crescimento econômico, de outro, difusão de ações de política social.
Mas esse desenvolvimento tem, no caso dos povos indígenas, avessos visíveis. A disparidade entre o “local” e o “nacional” e a disparidade hierárquica entre as políticas (por exemplo, entre as políticas agrícolas/energéticas e as políticas sociais) são alguns deles. Enquanto no plano nacional certas políticas sociais como o “Fome Zero” são vistas como redutoras de “desigualdades”, em diversos contextos locais elas vão ter efeitos contraditórios.
Em estados como o Mato Grosso do Sul, em que está localizada uma das maiores concentrações demográficas de indígenas do país, essas políticas públicas são inseridas em esquemas de poder regionais e locais. A distribuição de alimentos efetivamente garante aos índios o acesso a uma cesta alimentar. Mas por outro lado ajuda a consolidar uma dependência de abastecimento de alimentos do Estado (através de canais diversos) que se soma (e reforça) ao problema de insuficiência de terras – por exemplo, tomando em consideração apenas os povos Terena e Guarani desse estado, sua população de cerca de 40 mil pessoas assenta-se em áreas indígenas que, na maior parte dos casos, não ultrapassam mil hectares.
Muitos índios veem que o “sacolão” (termo usado em diversas comunidades Terena do MS para designar os auxílios alimentares em espécie) os ajuda, porém tornando-os dependentes num nível em que sempre foram autônomos – o da produção de autoabastecimento alimentar. Ao mesmo tempo essa política se apresenta como concorrente da política de demarcação de terras indígenas – que para muitos índios seria a solução efetiva, exatamente por conjugar a resolução de um problema alimentar com um problema político – a autonomia. E, inclusive, esse problema “alimentar” é exatamente o resultado de longo prazo de políticas de “desenvolvimento” anteriores – que implicaram um movimento de expropriação territorial dos indígenas de Mato Grosso do Sul.
Entre 2003 e 2010, o ritmo de demarcação das terras indígenas foi reduzido no Brasil, e várias mudanças institucionais estão criando restrições cada vez maiores à sua realização. Entre 2003 e 2011 foram homologados 18.807.577 hectares, ao passo que no período 1990-2002 foram homologados 73.064.558 hectares. Assim podemos identificar outro significativo avesso do desenvolvimento. A terra indígena (instituída pela Lei 6.001/73 e reafirmada como direito pela Constituição Federal de 1988) está no centro das disputas de desenvolvimento. Ela não é só um “direito indígena”. Ela expressa a autoimagem que a sociedade brasileira fez dos direitos sociais e políticos como um todo no final dos anos 1980. Era uma forma de garantir três tipos de direitos: 1) sociais, uma vez que a terra tem uma função econômica; 2) civis, já que implicaria o respeito a diversidade cultural e formas de expressão religiosa, social etc. diferenciadas; 3) políticos, por garantir aos povos uma autonomia relativa dentro do sistema político.
No entanto, os objetivos das políticas de desenvolvimento (mesmo envoltos por conceitos como “sustentabilidade” e “desenvolvimento social”) encontram nas terras indígenas um obstáculo. A aplicação das políticas públicas – econômica, energética e agrícola especialmente – acaba gerando o avesso da função jurídico-política acima. Essas políticas partem de um pensamento de que as terras indígenas (que foram pensadas num contexto anterior como materialização de direitos) são obstáculos ao desenvolvimento e, logo, aos direitos. E esse pensamento é gerado pelas condições concretas do desenvolvimento – baseado na expansão agroindustrial, intensificação de exportação e integração nacional e sul-americana.
Isso se manifesta de forma clara nos casos mais emblemáticos dos últimos anos: a demarcação contígua da Terra Indígena Raposa Serra do Sol e a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte no Parque do Xingu. A demarcação da Raposa Serra do Sol foi caracterizada por um claro movimento: o anúncio da restrição do “usufruto” (contida na decisão do STF) – principal mecanismo de materialização dos direitos indicados acima. A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte faz parte do PAC e materializa a ideia de que expansão da produção de energia é um item fundamental da política de desenvolvimento. Simboliza e realiza a possibilidade de intensificar a produção industrial e o consumo de bens industrializados. E por isso seria interesse “universal”, associado ao “social” (como meio de melhoria das condições de vida globais).
Existem dois focos de conflito estruturados no Brasil envolvendo povos indígenas, Estado e mercado. “Não ter terra” (esse é o principal problema para indígenas em contextos como o do Mato Grosso do Sul e em diversas partes do Nordeste) e “ter terra”. “Ter a terra”, “não ter terra” são duas modalidades que expressam os avessos do desenvolvimento.
A possibilidade de contínua redução da terra indígena, mesmo que não pela expropriação mas pela redução do “usufruto” (como no caso de Raposa Serra do Sol e Belo Monte), é uma forma dessa contradição. Em casos como o do Mato Grosso do Sul, não ter terra é expressão dessa tensão estrutural – já que os povos indígenas estão numa jornada de mais de três décadas de luta pela terra. E aqui a visão de uma mudança – do ponto de vista indígena – se coloca. A mudança aparece para segmentos expressivos desses grupos, como transformação da estrutura fundiária e expansão da sua autonomia política.
Eles não resistem assim ao “desenvolvimento”, mas à subalternização e inversão que o desenvolvimento implica. Lutar pela terra ou para se manter na terra não é apenas uma luta pela reprodução da tradição. É uma forma específica, manifesta ou latente, de entender os direitos e a universalidade dos mesmos.
A ideia contida nas decisões judiciais e políticas públicas citadas acima é a de que o desenvolvimento é “universal”, “nacional”, ao passo que a “terra indígena” e os índios seriam “minoritários”, o “local”, o “particular”. Mas devemos observar que na realidade o que está na base da própria noção de terra indígena (que é uma categoria jurídica e a princípio não indígena) são direitos universais. Ou seja, o “desenvolvimento sustentável e social” está transformando uma forma de universal numa forma de particular para afirmar uma forma particular de desenvolvimento como universal.
Pensar pelo avesso é nesse contexto um imperativo analítico. Para compreender o desenvolvimento (nas suas formas de “nacional-desenvolvimentismo” e “desenvolvimento social e sustentável”) é preciso observar como as condições que ele exige entram em contradição com diferentes modos de vida e organização social, mas também com distintas concepções de universalidade de direitos. Não se trata então do choque de um movimento universal/universalizante (o desenvolvimento) com os interesses “particulares”, mas de como o desenvolvimento se transforma em universal ao desmontar o que tinha sido constituído como universal – os direitos civis, políticos e sociais.
O caso dos povos indígenas é emblemático, mas não é único. Quando olhamos a partir da situação desses povos, podemos ver que o universal do desenvolvimento é particular e que na condição particular de povos indígenas reside uma contradição que aflige toda a sociedade brasileira, logo é universal: ter direitos e não ter o usufruto dos direitos. Esses são alguns dos avessos do desenvolvimento.
(Por Andrey Cordeiro Ferreira (*), Carta Maior, 28/01/2012)
(*) Professor do Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade (CPDA) da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisador do Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA).