A vida em sociedade requer regras que ordenem a convivência. A qualificação dessas regras define o que é certo e o que é errado, atribui valor à conduta das pessoas e determina qual é a ética aceita pelo grupo. Um gestor público, por exemplo, não pode usar o cargo em benefício próprio. Um deputado não pode nomear parentes, um juiz não pode julgar em causa própria.
São regras aparentemente simples, mas que no Brasil ainda tem uma enorme dificuldade para serem aplicadas. Vide os recentes os escândalos que estremeceram o governo federal e a esplanada dos ministérios. Ou o caso da desapropriação da ocupação Pinheirinho, em São José dos Campos, que gerou fortes críticas à postura do Tribunal de Justiça de São Paulo e à passividade do governador Geraldo Alckmin, que autorizou a ação violenta da Polícia Militar e se limitou a dizer que cumpria ordens da justiça.
Na história recente do país, cada qual a seu modo, Executivo, Legislativo e Judiciário demonstraram que a conduta ética está longe da ideal. Por outro lado, ministros, parlamentares e juízes perceberam que a sociedade está cada vez mais intolerante com desvios de conduta e principalmente com a corrupção. É só olhar a taxa de aprovação da presidente Dilma Rousseff. Quanto mais caia ministro ao longo do segundo semestre, mais ela conquistava apoio popular, chegando a dezembro com 56% de ótimo/bom, recorde na série histórica da pesquisa CNI/Ibope.
O que é correto?
Um caso emblemático é o do ministro da Integração Nacional, Fernando Bezerra Coelho, que beneficiou o filho deputado, o irmão – presidente de uma estatal – e o tio – nomeado para um cargo dentro do próprio ministério. É quase uma aula do que um gestor não pode fazer à luz da integridade e dos códigos de ética que regem a administração pública.
Responsável pela liberação de 90% das verbas destinadas à prevenção de desastres naturais para Pernambuco, sua base política, Bezerra disse que “não é correto” discriminar Pernambuco apenas por ser o estado do ministro. A postura do ministro representa uma enorme falha no processo de redemocratização do país: queremos olhar para o futuro, mas ainda somos controlados pelas oligarquias do passado.
Para essas oligarquias, “correto” sempre foi usar a máquina pública em benefício próprio. O ministro fez o que seus valores identificaram como o correto a ser feito: usou o cargo e o dinheiro público para beneficiar sua família e seu grupo político.
À luz da Ética, o caso Fernando Bezerra contém os ingredientes típicos da formação política brasileira, ou ao menos os ingredientes que a distorcem enquanto exercício da democracia: privilégios, acertos obscuros, benefício a parentes e amigos, apropriação do público em nome de interesses privados.
Sete ministros foram substituídos ao longo de seis meses, entre junho – quando caiu Palocci – e dezembro, quando caiu Orlando Silva. Os ministros caíram por motivos distintos, mas que se ligam entre si pelas fortes implicações éticas: corrupção, desvio de dinheiro, concessão de privilégios, aumento desproporcional do patrimônio. A exceção ficou por conta de Nelson Jobim, que caiu depois de perder o controle da própria voz. Chamou seus colegas de “idiotas”, de “fraquinhos” e terminou anunciando que votou em José Serra para presidente.
No caso do Poder Legislativo, a ética foi para o espaço há muito tempo. Podemos abrir a lista com o escândalo que deu as boas vindas parlamentares ao ano novo: o caso do deputado federal Fernando Coelho Filho, que beneficiou o tio com verbas do Ministério da Integração Nacional graças a providencial ajuda de seu pai, o ministro.
Podemos também citar a posse natalina do senador Jader Barbalho, que mandou às favas a Lei da Ficha Limpa e levou o filho para mostrar a língua ao país.
A lista segue em formato de roteiro de horrores, escrito ao estilo de minissérie: a absolvição da deputada Jaqueline Roriz, as declarações homofóbicas de Jair Bolsonaro, a viagem oficial dos deputados que foram assistir Real Madrid X Barcelona, as faltas ao trabalho, os benefícios a empresas que superfaturam, a recusa de deputados e senadores a se submeter ao bafômetro quando parados pela polícia, o pagamento de empregados domésticos com dinheiro público, o escândalo das passagens aéreas, superfaturamentos, compras indevidas, concessão de privilégios, tramoias para dividir ministérios como quem retalha um bolo de aniversário.
O Monitor de Escândalos, mantido na Internet pelo jornalista Fernando Rodrigues, listou 94 escândalos apenas em 2011, dando ao Legislativo a medalha de campeão da antiética.
Mudança à vista
Mas apesar de tudo, parece que as coisas estão melhorando. Algo inédito aconteceu: as tramoias estão sendo expostas à sanitizante ação da luz do dia.
Um exemplo é o que aconteceu, por exemplo, no segundo e no terceiro escalão do funcionalismo público. Em 2011, a Polícia Federal afastou 79 policiais envolvidos em corrupção. Em 2010, apenas 17 policiais foram afastados. Outro ponto positivo: segundo levantamento da CGU, 514 servidores públicos foram expulsos em 2011. É um recorde histórico.
Outro exemplo: até 2007, o país recuperava apenas 1% do dinheiro desviado por corruptos. Hoje, são 15%. Em 2016, a Advocacia Geral da União pretende recuperar 25% do dinheiro desviado.
Reforma política, prisão dos corruptos e dos corruptores, reforma do Judiciário, mobilização social, aumento da recuperação de dinheiro desviado, estabelecimento de metas mensuráveis, financiamento público de campanhas, ética na política e na gestão do patrimônio público, imprensa livre, todos iguais perante a lei. É grande a lista de caminhos necessários à construção de um país mais ético.
Com a reforma ministerial, a presidente Dilma Rousseff tem ao seu alcance a possibilidade de associar eficiência administrativa à ética na condução da coisa pública. As escolhas que fizer agora influenciarão os próximos anos da sua gestão. Dependerá da reforma o passo que talvez ainda falte para uma administração pautada pela ética, pela eficiência técnica e pelo uso disciplinado do dinheiro público.
(Por Marques Casara, 24/01/2012)