Há cinco meses da cúpula da ONU sobre desenvolvimento sustentável, a já famosa Rio+20, informações que circulam nos meios oficiais e virtuais apontam para mais uma crise. Desta vez cunho conceitual, imperceptível talvez, mas nem por isso desimportante.
A crise agora é a da própria idéia de sustentabilidade, seu significado e objetivos. Um sinal disso é que ela vem pouco a pouco desaparecendo da pauta do debate. Ultimamente só é usada para validar ações de marketing e relatórios empresariais.
Assim como o desenvolvimento sustentável, seu primo mais velho, a sustentabilidade parece subjugada pela economia. Uma prova foi dada em Agosto do ano passado pelo coordenador executivo da Rio+20, o francês Brice Lalonde. Em visita ao Brasil para "tratar dos preparativos" da conferência, ele disse à Agência Brasil: "Precisamos da liderança brasileira especialmente porque podemos ver o sucesso brasileiro em diferentes áreas como economia, solidariedade social e, espero, em proteção do ambiente”.
É inegável que o país anfitrião do evento avançou quantitativamente no terreno econômico. Contudo, em termos de "solidariedade social" e "proteção ambiental" o Brasil ainda não serve como exemplo.
Objetivos do milênio
Mas não só o Brasil. Quando o tema é meio ambiente, no sentido amplo da palavra, o mundo como um todo anda para trás. Os Objetivos do Milênio são o parâmetro ideal no caso.
O sétimo dos oito objetivos trata justamente da sustentabilidade ambiental. Mesmo sem questionar as manobras semânticas e a parcialidade da assessoria de comunicação das Nações Unidas, dá para medir ali o abismo que nos separa de uma sustentabilidade de fato. Entre os pontos mais relevantes vale destacar:
- A taxa de deflorestamento mostra sinais de redução, mas ainda é alarmante;
- Ainda falta uma resposta urgente e decisiva à mudança climática;
- As metas de conservação da biodiversidade continuam longe de serem atingidas;
- Habitats de espécies ameaçadas não vêm sendo protegidos adequadamente;
- O número de espécies em extinção cresce dia após dia, especialmente em países em desenvolvimento;
- A superexploração dos recursos marinhos estabilizou, mas ainda há enormes desafios para garantir sua sustentabilidade;
- O abastecimento de água potável continua um desafio em muitas partes do mundo;
- Com metade da população de regiões em desenvolvimento sem saneamento, o prazo até 2015 está fora do alcance;
- Disparidades entre saneamento rural e urbano continuam absurdas;
- Melhorias em saneamento estão deixando os pobres de lado;
- Melhorias na urbanização de favelas não têm acompanhado o crescimento da pobreza urbana;
- Conflitos violentos tendem a intensificar o fenômeno da favelização.
Circo climático
A questão da mudança climática é também um bom parâmetro para analisar o problema da crise da sustentabilidade. O ecaminhamento dado até agora, através do circo internacional das Conferências das Partes (COP), demonstra a inépsia de um processo desenhado para falhar.
"Trata-se da convergência de interesses entre políticas ambientais e indústria energética", acusa James Lovelock em seu livro "The Vanishing Face of Gaia" (pg. 226). Na obra publicada em 2009, o criador da teoria de Gaia se refere às inúmeras campanhas dos últimos anos para "salvar o planeta".
Ele critica não só as negociações da COP, mas todas as ações que se pretendem ambientalmente corretas. "A conjunção dos interesses da ciência, da mídia, do lobby ambientalista e dos organismos do Estado" (pg. 224). Segundo ele, tais iniciativas acabam sempre manipuladas, servindo apenas para "santificar a hipocrisia" e continuar com os negócios como usualmente. Ou seja, sem mudar nada.
O assunto parece altamente teórico. Embora possa ser pragmático. Afinal, mudar práticas requer um mínimo de reflexão: que mudança buscamos? e onde queremos chegar com ela? Mas num mundo cada vez mais acostumado a cultivar mentiras, a idéia de sustentabilidade está se tornando mais uma delas. Quando muito, ainda não passa de pura retórica.
Conceito indefinido
A falta de uma idéia clara do que significa sustentabilidade simboliza o estado das coisas. O texto "Sustentabilidade: tentativa de definição", de Leonardo Boff é talvez uma das melhores propostas até o momento. Usando a idéia de Gaia criada por Lovelock, ele diz: "Sustentabilidade é toda ação destinada a manter as condições energéticas, informacionais, físico-químicas que sustentam todos os seres, especialmente a Terra viva, a comunidade de vida e a vida humana, visando a sua continuidade e ainda a atender as necessidades da geração presente e das futuras de tal forma que o capital natural seja mantido e enriquecido em sua capacidade de regeneração, reprodução, e coevolução".
Resumindo, o artigo defende que para alcançar a sustentabilidade de verdade, a civilização precisa livrar-se do antropocentrismo. Ou seja, tirar o homem do centro do universo e colocá-lo como parte integrante do todo. Uma parte com mais responsabilidades que privilégios, especialmente do ponto de vista material.
A única coisa que destoa no discurso é a palavra "capital", ainda que aliada, no caso, à conotação ecológica (capital natural). De maneira geral, esta é só mais uma versão de um conceito criado dentro da lógica da exploração, seja dos trabalhadores ou dos ecosistemas. Portanto, em descompasso com o real compromisso que uma verdadeira sustentabilidade deve ter.
Independente dos conflitos entre as possíveis interpretações sobre o que é sustentabilidade, o fato é que hoje ela serve quase que exclusivamente aos interesses da geração de bens materiais, e não como parâmetro para a busca de equilíbrio com o meio que nos sustenta.
Distorção corriqueira
Um bom exemplo da forma como hoje se usa a idéia de sustentabilidade é dada em matéria reproduzida pelo site Mercado Ético do portal Terra. "Sustentabilidade passa por desaceleração em empresas", traz o título da notícia sobre o relatório "The State of Green Business 2011" publicado há quase um ano.
Em seu argumento, o texto relativiza o fato negativo sobre o desempenho das empresas. O relatório é claro: investimentos na economia verde sofreram um retrocesso. Por que? Não se sabe, mas parece que há uma ligação com a crise financeira. Trata-se de uma "ressaca da recessão".
O artigo (e o relatório provavelmente também) não menciona nenhuma informação sobre os impactos dos investimentos até hoje feitos em sustentabilidade. O tal tripé que define o conceito "oficial" de sustentabilidade: Econômica, Social e Ambiental.
Em seguida, a "lista de tendências de crescimento para 2012" deixa claro que o foco é apenas a economia:
Consumo sustentável: "...companhias estão promovendo um consumo inteligente..."
Pergunta: O que é consumo inteligente? Quando podemos dizer que um consumo é sustentável? Quando as pessoas só compram o que podem pagar?
Green Gamification: "companhias estão usando o poder dos jogos para premiar clientes e empregados e enfatizar práticas verdes;"
Comentário: Estratégias para aumentar as vendas (consumo)... educação sustentável, quando existe nessas iniciativas, é apenas um efeito colateral.
Tecnologia limpa: "prevê-se que investimentos em tecnologia limpa devam aumentar..."
Comentário: A tecnologia como salvadora... É a mentalidade da Technopoly... parece mesmo que as máquinas já pensam sozinhas... nos tornamos dispensáveis, assim como a real necessidade de sermos (re)educados.
Eficiência energética: "projetos de eficiência energética de alto nível têm demonstrado grandes economias;"
Comentário: verdade, é talvez o melhor a ser feito no momento... pena que comparativamente os investimentos continuem pífios.
"Grandes dados": "tsunamis de informação associados com uma ‘rede de coisas’ podem criar percepções e melhorar a eficiência tecnológica;"
Comentário: "tsunamis de informação" tendem a nos confundir... há inclusive doenças psicosociais relacionadas ao excesso de informação com que uma pessoa lida rotineiramente. Também pode ser usado como estratégia para desviar atenção de aspectos importantes.
Cidades sustentáveis: "cidades estão estabelecendo metas de sustentabilidade e investindo em infraestrutura e tecnologia verde;"
Comentário: parece piada... mas é mais uma vez o tal viés político-econômico. Se dependermos de iniciativas do Estado as cidades nunca serão sustentáveis... como as conhecemos hoje estão condenadas a serem dependentes de quem as alimente, forneça água, eletricidade... infraestrutura e tecnologia não são sinônimos de sustentabilidade.
Não ter notícias é uma boa notícia: "a sustentabilidade se tornou menos noticiosa à medida que está se integrando ao cenário de negócios tradicionais."
Comentário: olha a pérola! Pior mesmo é a explicação. Parece que a sustentabilidade como conceito ou palavra já cumpriu o seu papel, e portanto pode ser dispensada...
(Por Mariano Senna, Ambiente JÁ, 26/01/2012)