"Dilma é uma excelente gerente, entende tudo de metas, mas não entende nada de processos pedagógicos. Para ela, o processo educativo não vale nada.", Roberto Malvezzi da Comissão Pastoral da Terra.
Semiárido e a polêmica das cisternas de plástico
Foi com surpresa e indignação que a população do semiário e a Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA receberam a notícia de que o governo pretende investir em cisternas de plástico em vez de dar continuidade ao projeto de construção de cisternas de placas. Na avaliação de Roberto Malvezzi, a proposta governamental “é um desastre”, porque o governo “não está apenas trocando uma tecnologia por outra, mas desmantelando todo um processo educativo de convivência com o semiárido”.
Segundo ele, a cisterna de placa é o melhor modelo para armazenar água e garantir sua qualidade, porque não há riscos de vazamento e contaminação da água. Desde 2003, cerca de 400 mil famílias já foram beneficiadas com o Programa 1 Milhão de Cisternas, atendendo a 2 milhões de pessoas.
Em entrevista à IHU On-Line, concedida por e-mail, Malvezzi enfatiza que as “oligarquias nordestinas não se conformavam em ver o povo mais autônomo e buscavam um meio de retomar o controle da água sobre essas populações. Talvez conseguirão ao serem os doadores das cisternas de plástico”. E reitera: “O governo está sinalizando na direção de continuar a parceria com a ASA, mas não parece a fim de desistir das cisternas de plástico. Portanto, parece que pensa em levar as duas tecnologias à frente. Logo, se assim for, resgatará o clientelismo eleitoral através da água, que julgávamos definitivamente enterrado”.
Roberto Malvezzi é graduado em Estudos Sociais e em Filosofia pela Faculdade Salesiana de Filosofia Ciências e Letras de Lorena, em São Paulo. Também é graduado em Teologia pelo Instituto Teológico de São Paulo. Atualmente atua na Comissão Pastoral da Terra – CPT. Confira a entrevista...
Como avalia a proposta de o governo federal investir em cisternas de plástico em vez de cisternas de concreto? O que justificaria esta mudança? Como a população do semiárido reagiu a essa notícia?
Roberto Malvezzi – Com indignação profunda. Essa decisão foi uma surpresa total para toda a Articulação no Semiárido Brasileiro – ASA. Afinal, a cisterna de concreto é um trabalho premiado no mundo inteiro, inclusive pelo próprio governo brasileiro. Cerca de 400 mil famílias já foram beneficiadas, atendendo a 2 milhões de pessoas. Aproximadamente 12 mil pedreiros foram capacitados em 10 anos. Então, ninguém entende essa mudança, inclusive integrantes do governo.
Por que é preferível investir nas cisternas de placas?
Roberto Malvezzi – Várias tecnologias para armazenamento da água de chuva já foram testadas. O princípio da coleta da água da chuva remonta aos tempos bíblicos. O problema é a forma adequada de guardá-la. Tentamos usar a cisterna de pedra e cal, mas não deu certo. O Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra tentou uma cisterna de plástico em assentamentos, em Sobradinho e não deu certo.
A única cisterna que comprovadamente funcionou foi a de placas de cimento. Acontece que ela é uma invenção de um pedreiro baiano, chamado Néo, que hoje mora em Sergipe. Ele foi trabalhar em São Paulo e aprendeu a fazer placas de cimento para construção de piscinas. Essa técnica é totalmente voltada para que a água não vaze. Quando voltou ao sertão, ele decidiu fazer um reservatório para guardar a água de chuva utilizando a técnica das placas para fazer piscina. Sem querer, ele descobriu o “ovo de Colombo”. Daí a generalização para todo o semiárido. Os pedreiros aprendem a construí-la, sabem fazer sua manutenção. A de plástico fica totalmente dependente da empresa. Uma vez rachada, vira um pacote de lixo.
Qual é a realidade das populações que vivem no semiáriodo? Quantas pessoas dependem do abastecimento de água das cisternas?
Roberto Malvezzi – Nosso cálculo é que aproximadamente um milhão de famílias precisa dessa tecnologia. Ela – a tecnologia – fez uma revolução no cotidiano das populações. Hoje não se fala mais em migrações intensas na região, em “frentes de emergência”, em tanta mortalidade infantil, em saques. O que mudou? Uma série de políticas que chegam à ponta, na casa das famílias, como o salário mínimo da aposentadoria rural, a energia elétrica, o Bolsa Família, mas, sobretudo, a água para beber.
É bom lembrar que temos outro programa, pouco falado, o P1+2 (Uma terra e duas águas), cuja captação da água de chuva é para a produção. Uma coisa fantástica. Ora, qual empresa vai instalar a cisterna de plástico e ainda fazer o trabalho educativo para a produção agroecológica com água de chuva?
Portanto, o governo não está apenas trocando uma tecnologia por outra, mas desmantelando todo um processo educativo que chamamos de convivência com o semiárido. Essa é a região brasileira que mais avançou nos últimos anos em termos sociais. A migração se inverteu e hoje volta mais gente para o Nordeste do que sai para o Sul. Portanto, em todos os sentidos, a decisão governamental é um desastre.
Que cidades da região mais sofrem com a falta d’água?
Roberto Malvezzi – Debatemos sobre isso desde que o governo decidiu transpor o São Francisco. Segundo a Agência Nacional de Águas – ANA, cerca de 1800 municípios nordestinos precisarão de algum serviço de abastecimento de água até 2025, para não entrar em colapso hídrico. Vai o governo esperar isso acontecer antes de implantar as adutoras e serviços de água?
Nosso trabalho de cisternas é mais dedicado ao meio rural, onde está a grande maioria da população rural brasileira. O meio rural do semiárido é o mais povoado no Brasil e no mundo.
Que avaliação o senhor faz do Programa Água Para Todos, do governo federal? Quais são os avanços e os limites deste programa?
Roberto Malvezzi – A iniciativa em si é fantástica; é a ampliação em nível nacional de uma iniciativa do governo da Bahia. Qualquer um que está nessa luta há décadas, como eu, fica imensamente feliz quando um governo decide abordar essa questão com uma política pública. Mas, veja o paradoxo: o governo, ao investir em uma política pública, começa desmantelando a única iniciativa que deu certo em séculos no semiárido. O argumento é a aceleração do programa. Mas que adianta fazer algo mal feito, substituindo e até cancelando o que estava perto da perfeição? A velocidade não é tudo. Fazer bem feito é fundamental, sob pena de termos que refazer tudo.
Criado em 2003, o Programa 1 Milhão de Cisternas tinha a meta de construir um milhão de cisternas em cinco anos, mas, sete anos depois, ainda não conseguiu atingir a meta. O que dificulta a construção dessas cisternas?
Roberto Malvezzi – É aí que o governo se apega para propor suas cisternas de plástico, isto é, diz que estamos indo muito devagar. As cisternas de plástico acelerariam o atendimento das famílias. Sempre argumentamos que não somos uma empreiteira: há um trabalho pedagógico com as famílias, caso contrário o trabalho se perde. Este é o limite da presidente Dilma: ela é uma excelente gerente, entende tudo de metas, mas não entende nada de processos pedagógicos. Para ela, o processo educativo não vale nada. Para nós ele é essencial. E, vendo por outro ângulo, nós conseguimos fazer em 10 anos o que todos os governos não fizeram em 500 anos. Então, porque somos acusados de lentidão?
Como acontece o acompanhamento para garantir a qualidade da água das cisternas?
Roberto Malvezzi – Sem a preparação da comunidade, as pessoas não sabem o que fazer com a cisterna, não sabem cuidar, a água fica contaminada, nem acreditam que chova o suficiente para encher a cisterna. Um educador vai até a comunidade para ministrar o curso de gerenciamento de recursos hídricos. Essa é a dimensão essencial, que chamamos de educação contextualizada, que o atual governo ignora, mas que é fundamental para a funcionalidade correta da captação de água da chuva e de toda a lógica da convivência com o semiárido.
Como avalia a autonomia da população em relação à gestão do uso da água através das cisternas construídas até o momento?
Roberto Malvezzi – A autonomia muda profundamente. Mais independência, mais saúde familiar, menos peso sobre as mulheres e crianças, os responsáveis para pôr água em casa. Portanto, melhora também a questão de gênero.
Aliás, as oligarquias nordestinas não se conformavam em ver o povo mais autônomo e buscavam um meio de retomar o controle da água sobre essas populações. Talvez conseguirão ao serem os doadores das cisternas de plástico. Voltaremos ao clientelismo pela água, arma histórica da coronelada sobre as populações. Claro que estamos em outra época, já não é tão simples, mas ainda pode funcionar muito bem.
Em que consistiria uma política pública eficiente para garantir o acesso à água para a população do semiárido? Quantas cisternas são necessárias para atender à população do semiárido?
Roberto Malvezzi – Seria necessário, no mínimo, um milhão para consumo humano (Programa 1 milhão de cisternas) e, no mínimo, um milhão para a produção (Programa Uma Terra e Duas Águas), pressupondo a reforma agrária, ou a conquista das terras pelos quilombolas, indígenas, sem terra, etc. A segunda questão essencial, em termos de abastecimento humano, é a aplicação do Atlas do Nordeste ao meio urbano.
Como estão as negociações entre a ASA e o governo brasileiro?
Roberto Malvezzi – Depois da manifestação em Juazeiro/Petrolina, dia 20 de dezembro, já houve duas reuniões com o governo. O governo está sinalizando na direção de continuar a parceria com a ASA, mas não parece a fim de desistir das cisternas de plástico. Portanto, parece que pensa em levar as duas tecnologias à frente. Logo, se assim for, resgatará o clientelismo eleitoral através da água, que julgávamos definitivamente enterrado.
(IHU On-Line / EcoAgência, 09/01/2012)