Ricardo Abramovay entende que a Rio+20 tem chance de cumprir o que promete. “Mas esta promessa está muito aquém do mínimo necessário para se enfrentar os grandes problemas do século XXI”, critica
“Colocar a economia verde no centro significa convidar os tomadores de decisão econômica a ocupar o centro do debate e convidá-los a alterar a maneira como usam os recursos sobre os quais têm poder”, coloca o economista Ricardo Abramovay, sobre a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento Sustentável, a Rio+20, a ser realizada no próximo ano.
No entanto, alerta que “a economia verde vai se convertendo numa espécie de árvore de Natal, onde se pendura o que for conveniente, algo cuja consistência lógica é capenga e que se exprime na ideia de que só é verde a economia que combate a pobreza e a miséria”.
Na entrevista que aceitou conceder por e-mail para a IHU On-Line, Abramovay questiona: “se o país que vai abrigar a conferência não ousa apontar horizontes inovadores em suas posições, como esperar que a própria reunião desperte entusiasmo proporcional ao que deveria ser sua importância?”.
E constata: “enquanto a luta contra a desigualdade não se vincular ao estabelecimento de limites no uso dos materiais, da energia, da ocupação do espaço carbono ela nada mais será que a expectativa irrealista de melhorar a vida dos pobres sem tocar no padrão de consumo e no poder dos que se encontram no alto da hierarquia social”.
Professor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade – FEA e do Instituto de Relações Internacionais da USP, pesquisador do CNPq e coordenador de Projeto Temático sobre Mudanças Climáticas na Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo – FAPESP, Ricardo Abramovay é mestre em Ciências Políticas, pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Ciências Econômicas, pela Universidade de Campinas – Unicamp.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A Rio+20 conseguirá cumprir o que promete?
Ricardo Abramovay – Do que li até aqui, os documentos que orientam a reunião propõem-se a seguir basicamente no rumo daquilo que vem sendo feito nos últimos vinte anos. Neste sentido, a Rio+20 tem chance de cumprir o que promete. Mas esta promessa está muito aquém do mínimo necessário para se enfrentar os grandes problemas do século XXI.
A economia verde representa um novo paradigma?
Abramovay – Não. A economia verde corresponde a três coisas que já estão sendo feitas (mesmo que possam e devam ser aceleradas, claro): a) incrementar o ritmo de avanço das energias renováveis; b) melhorar o uso desta energia, o uso dos materiais e reduzir drasticamente todas as formas de poluição, a começar pela emissão de gases de efeito estufa; e c) estimular a valorização econômica dos produtos e dos serviços da biodiversidade nos diferentes biomas, mas sobretudo nas florestas tropicais transitando do que Bertha Becker chama de economia da destruição da natureza para a economia do conhecimento da natureza.
Onde entraria a dimensão social neste debate?
Abramovay – Uma rápida consulta à página na internet da Rio+20 mostra imensa preocupação com a miséria e a pobreza em todos os documentos e todas as reuniões preparatórias para a Conferência, o que é positivo, claro. Mas, com isso, a economia verde vai se convertendo numa espécie de árvore de Natal, onde se pendura o que for conveniente, algo cuja consistência lógica é capenga e que se exprime na ideia de que só é verde a economia que combate a pobreza e a miséria.
Ora, isso não é necessariamente verdadeiro: é possível alcançar mais eficiência energética e material e menos poluição em produtos cujo impacto sobre a vida das sociedades não é necessariamente positivo: há empresas de armamentos que possuem selos de qualidade, por exemplo. O Procon acaba de multar o Mc Donald’s por insistir neste absurdo que é atrair o público infantil para o consumo de seus produtos por meio de brindes atrativos para as crianças: é uma prática socialmente nefasta, mesmo que as embalagens sejam menos poluentes que um tempo atrás.
A ecoeficiência não é uma expressão que organicamente conduz, por si só, a melhorias sociais, apesar de toda a sua importância.
Por que a Conferência foi convocada sob o termo economia verde e não sob o termo desenvolvimento sustentável?
Abramovay – Todos insistem que se trata de uma conferência sobre desenvolvimento sustentável. Então por que economia verde? A melhor explicação que eu ouvi é que a escolha deste termo (economia verde) deve-se ao fato de que para se atingir o desenvolvimento sustentável é necessário transformar muito mais do que se conseguiu até aqui a própria economia. Colocar a economia verde no centro significa convidar os tomadores de decisão econômica a ocupar o centro do debate e convidá-los a alterar a maneira como usam os recursos sobre os quais têm poder.
O senhor considera que esta é uma boa tática?
Abramovay – Acho que sim. Dirigir-se aos gestores econômicos e ampliar a participação pública (governamental e não governamental) em suas decisões é fundamental. E felizmente isso vem acontecendo cada vez mais. Mas se é assim, a ênfase não poderia se limitar fundamentalmente a melhorar a ecoeficiência e a ampliar as políticas de combate à miséria e à pobreza. A ecoeficiência melhorou muito nas últimas décadas. Em 1980 para produzir um dólar do PIB mundial emitia-se uma tonelada de gases de efeito estufa. Hoje isso caiu para 770 gramas.
Entre 1975 e 2000 cai pela metade o uso de recursos físicos (materiais de construção, biomassa, minérios e combustíveis fósseis) com o qual se produz cada unidade de riqueza. Ao mesmo tempo, a expansão de uma nova classe média mundial (150 milhões de novos consumidores por ano, nos próximos vinte anos, segundo documento recente da McKinsey) é uma excelente notícia. Os principais documentos da Rio+20 têm como ênfase o seguinte: vamos continuar por aí e superar a crise de 2008 apostando fundamentalmente neste caminho.
Como o documento de contribuição brasileira à conferência Rio+20 se coloca diante disso?
Abramovay – O documento brasileiro inova, no plano internacional, à medida que foi elaborado a partir de uma consulta bastante ampla a organizações privadas e da sociedade civil. Apesar disso, é uma verdadeira apologia à maneira habitual de se conduzir os negócios, o chamado business as usual. Sempre se pode alegar que apontar horizontes inovadores não é a vocação de textos oficiais, mesmo se redigidos com participação social.
Mas se é assim, se o país que vai abrigar a conferência não ousa apontar horizontes inovadores em suas posições, como esperar que a própria reunião desperte entusiasmo proporcional ao que deveria ser sua importância?
Quais as principais novidades contidas no documento brasileiro?
Abramovay – As três maiores novidades contidas no documento são basicamente: a) imprimir caráter global a políticas, bem sucedidas no Brasil, de combate à pobreza (transferência de renda, eletrificação para os mais pobres e bolsa verde, voltada à manutenção de biomas ameaçados); b) transformar o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas em Conselho de Desenvolvimento Sustentável e fortalecimento do PNUMA; c) apoiar iniciativas já em curso do setor privado de rastrear e certificar práticas empresariais voltadas a indicar os impactos socioambientais da oferta de bens e serviços.
Se é assim, então por que dizer que o documento brasileiro também vai no sentido do business as usual?
Abramovay – O documento preconiza basicamente que o crescimento econômico mundial abra caminho à redução da pobreza, seja por meio da elevação de empregos formais, seja por meio de políticas públicas para melhorar as condições dos mais pobres. Este crescimento deveria apoiar-se em mudanças tecnológicas que reduzissem seus impactos sobre os ecossistemas, o que permitiria também a geração de empregos verdes. Isso no contexto de políticas para a proteção das florestas, da água, da biodiversidade, para a redução das desigualdades de sexo e de raça.
É necessário também, prossegue o texto, promover convergência de políticas internacionais, sobretudo no que se refere aos aportes de recursos financeiros por parte dos países desenvolvidos e ao que o documento chama de transferência de tecnologias para as nações em desenvolvimento. A esmagadora maioria das propostas contidas no documento no que se refere ao combate à pobreza e à ecoeficiência já está em curso em praticamente todo o mundo.
Monitorar tais avanços e aprofundá-los por meio do crescimento econômico generalizado e da intensificação da inovação tecnológica é insuficiente para enfrentar os grandes desafios do século XXI.
O que seria uma abordagem inovadora vinda de um país com a ambição de liderar a emergência de uma economia voltada ao desenvolvimento sustentável?
Abramovay – A meu ver ela deveria contemplar ao menos três pontos ausentes ou marginais no documento. O primeiro é a drástica redução da desigualdade. Nas poucas vezes em que o tema é mencionado, a abordagem é no sentido de melhorar a condição dos mais pobres e nunca de limitar o poder dos que estão no topo da pirâmide social. Não se trata apenas de um preceito ético, mas de uma premissa decisiva para que os recursos materiais e energéticos oferecidos pelos ecossistemas possam, de fato, preencher as necessidades humanas sem as quais o desenvolvimento não poderá florescer.
São limitados os materiais e a energia indispensáveis para que, num mundo de 10 bilhões de pessoas (2050), todos tenham acesso à saúde, à educação, ao lazer e a uma vida que vale a pena ser vivida. Por mais que avance a inovação tecnológica (a economia verde), ela não suprime esses limites e tal é o ponto central para uma nova governança (que é outro termo da Rio+20).
O desafio desta nova governança não é o que dominou o mundo desde a Revolução Industrial e que consistia em acreditar que o segredo do bem-estar estava em produzir cada vez mais. Enquanto a luta contra a desigualdade não se vincular ao estabelecimento de limites no uso dos materiais, da energia, da ocupação do espaço carbono, ela nada mais será que a expectativa irrealista de melhorar a vida dos pobres sem tocar no padrão de consumo e no poder dos que se encontram no alto da hierarquia social.
E como entra nesta discussão o segundo termo da conferência, a governança?
Abramovay – Este é o segundo ponto do que poderia ser uma abordagem inovadora. A governança do desenvolvimento sustentável não pode deixar de entrar no mérito daquilo que se faz com os recursos disponíveis, sejam estes recursos públicos ou privados. Não é consistente constatar, como faz o documento brasileiro, o estrangulamento generalizado da mobilidade metropolitana e nada propor para que seja revertido o papel do automóvel individual no sistema de transportes, no planejamento das cidades e na própria estratégia de organização da vida econômica. Cidades sustentáveis não combinam com o “carrocentrismo” da civilização contemporânea.
Mas a omissão não é só brasileira. O boletim oficial da conferência Rio+20 Making it happen dedica seu número de novembro ao tema “Urbanização rápida e cidades sustentáveis”. Nem uma linha sobre automóveis. Uma conferência voltada a colocar a economia a serviço do desenvolvimento tem que partir da constatação de que o automóvel individual é o meio mais ineficiente e menos benéfico socialmente para garantir a mobilidade urbana.
E, no entanto, a indústria automobilística, se fosse um país, corresponderia à sexta economia mundial. Isso, sem contar o petróleo! Apoiar o crescimento na expansão dos carros não é uma decisão simplesmente privada, pois tem efeitos globais sobre o clima, sobre a organização urbana e sobre o uso de materiais e isso tem que ser objeto de discussão pública.
O desenvolvimento sustentável é incompatível com a perpetuação deste poder. A transição para cidades humanas, que se organizem em função dos potenciais dos territórios, do fortalecimento das comunidades e da qualidade de vida das pessoas, isso não combina com a maneira como se usam o ferro, o vidro, o plástico, os combustíveis fósseis, no sentido de produzir carros cada vez mais pesados, mais rápidos e que ficam parados nos congestionamentos.
A maior dificuldade dos dias de hoje não é lidar com as carências e sim com os excessos da vida econômica e, mais uma vez, esta não é a inspiração do documento brasileiro, nem, pelo que vi até aqui, da conferência como um todo.
Como a dimensão tecnológica aparece nesta discussão?
Abramovay – Aqui entra o terceiro ponto: o desenvolvimento sustentável supõe uma verdadeira economia do conhecimento e isso exige uma nova divisão internacional do uso dos recursos ecossistêmicos. A África e a América Latina, continentes cuja biocapacidade é superior a sua pegada ecológica, são os únicos em que o desmatamento ainda avança, mesmo que a um ritmo inferior que há dez anos.
Ao mesmo tempo, na América Latina, a importância da oferta de energia, de commodities agrícolas e minerais traz a contrapartida macroeconômica de desestimular indústrias mais intensivas em conhecimento em benefício daquelas cujo potencial contaminante é maior e cuja base tecnológica é menos avançada.
A Rio+20 deveria propor sistemas de inovação voltados para a sustentabilidade e par uma ampla cooperação tecnológica, com base no princípio de que o conhecimento é um bem comum à espécie humana e que permitisse acelerar a transição para o melhor uso dos recursos dos quais depende a oferta de bens e serviços.
E qual o papel do comércio internacional?
Abramovay – É preocupante que em vez de preconizar rígidos critérios socioambientais na exploração de energia, commodities agrícolas e minerais, o documento brasileiro (mas isso aparece também em outros textos da conferência) insista no temor de que estes critérios possam ser usados, no comércio internacional, como barreiras não tarifárias.
O Brasil tem todo o interesse em liderar um movimento que faça da manutenção dos serviços ecossistêmicos dos quais dependem as sociedades humanas uma condição básica para a produção de bens e serviços.
Assim como não se aceitam hoje produtos oriundos de trabalho escravo ou infantil, não se podem aceitar bens que se apoiem na destruição da biodiversidade, a menos que haja acordos internacionais no sentido de autorizar, por exemplo, emissões de gases de efeito estufa, mas para finalidades que devem ser socialmente relevantes e não, insisto, para o uso em carros de três toneladas conduzindo um passageiro em seu trajeto.
Em vários círculos de negócios e organizações da sociedade civil já se discute a necessidade de se colocar a vida econômica a serviço do desenvolvimento sustentável. Esse, a meu ver, deveria ser o eixo estratégico da Rio+20.
(Por Graziela Wolfart, IHU On-Line / EcoDebate, 20/12/2011)