O conceito de decrescimento surge “diante do desafio da mudança nos rumos da civilização ocidental”, esclarece o pesquisador Carlos Pereira à IHU On-Line. Para ele, a superação do modelo desenvolvimentista ocidental está imbricada na incorporação do “princípio de responsabilidade”. Pensar outro modelo de desenvolvimento econômico, social e político requer transformações de hábitos adquiridos há séculos e intensificados desde o surgimento do capitalismo.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Pereira argumenta que a lógica do desenvolvimento é “essencialmente errada porque em seu interior está contida a insensata promessa de continuidade do crescimento econômico num mundo em que as riquezas naturais são finitas”.
Entretanto, enfatiza, a origem da compreensão de que o homem é o centro do universo e que deve explorar os demais seres vivos “está estampada na narrativa judaico-cristã sobre a criação do universo na qual, conforme o relato bíblico, Deus teria ordenado ao homem: ‘enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra’”.
Defensor da premissa ecoantropocêntrica, o pesquisador ressalta a necessidade de enxergarmos a “Terra e os outros seres vivos também como centro do mundo. A partir daí, ao interiorizarmos essa premissa ecoantropocêntrica, veremos que a nossa espécie é integrante de uma ampla comunidade de vida e terminaremos por concluir que o mundo não nos pertence”.
O decrescimento faz parte das discussões do Ciclo de Palestras: Economia de Baixo Carbono. Limites e Possibilidades, que é promovido pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU. Na próxima terça-feira, 22-11-2011, o professor de Economia na Universidade de Paris XI - Sceaux/Orsay, Serge Latouche, ministrará a palestra Por outro modo de consumir: descrição de algumas experiências alternativas. Latouche estará na Unisinos até o dia 25-11-2011.
Carlos Alberto Pereira Silva é graduado em História pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, mestre em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília – UnB e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia e Coordenador do Laboratório Transdisciplinar de Estudos em Complexidade.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na audiência sobre “Decrescimento: Por que e como construir”, realizada no início do mês de setembro na Subcomissão Permanente de Acompanhamento da Rio+20 e do Regime Internacional sobre Mudanças Climáticas da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional – CRE, o senhor condenou o desenvolvimentismo que leva a um consumo de recursos naturais acima da capacidade do planeta. Que alternativas encontra e sugere para o consumo moderado dos recursos naturais ou até mesmo do reaproveitamento de recursos já utilizados?
Carlos Alberto Pereira Silva – Diante da crise civilizatória multidimensional, potencializada pela expansão do desenvolvimento, as alternativas para a emergência de um consumo parcimonioso das riquezas naturais estão vinculadas à superação da insensata aposta no crescimento econômico ilimitado. Para que haja a propagação de modos de vida frugais, faz-se necessário que ocorra o questionamento do desenvolvimento predatório, excludente e consumista. Para isso precisamos nos livrar da palavra desenvolvimento, mesmo que ela venha acompanhada do adjetivo sustentável.
Portanto, a superação do consumismo desenfreado existente em nossa época, na qual quase tudo é efêmero, supérfluo e descartável, exige uma profunda mudança nos valores, ideias e atitudes ainda predominantes na cultura ocidental. E isso exige uma verdadeira metamorfose cultural.
Podemos iniciar essa metamorfose insurgindo contra os estímulos ditados pelas grandes corporações desenvolvimentistas, que são indutoras da compulsiva conjugação dos verbos modernizar, desenvolver, competir, lucrar, consumir, crescer, ostentar, aparecer, acumular, substituir e descartar.
Na mesma audiência, o senhor discutiu formas de conduzir a humanidade a um padrão de redução de crescimento. Que padrão seria esse e qual a sua viabilização? Quais benefícios trariam para nossa sociedade?
Silva – Acredito que, na busca da superação do desenvolvimento, não devemos tentar estabelecer matematicamente um “padrão de redução do crescimento” para que possamos construir um mundo melhor. Para além do estabelecimento de qualquer padrão, é fundamental que incorporemos o “princípio responsabilidade”, esboçado por Hans Jonas, que diz: “aja de modo que os efeitos de sua ação sejam compatíveis com a permanência de uma vida autenticamente humana na Terra”. Assim, diante do desafio da mudança nos rumos da civilização ocidental, é que surge o decrescimento.
Descortinado como uma utopia concreta, o decrescimento, que não é nem receita nem fórmula, apresenta-se como um caminho necessário e viável para a construção de uma melhor e mais harmoniosa convivência, nunca isenta de conflitos, entre os homens, as mulheres, os outros seres vivos e a terra. Para que possamos sair da lógica ditada pelo crescimento econômico e entrarmos na era da civilização do decrescimento, a luta contra a indigna situação social a que estão submetidos incontáveis seres humanos assume particular importância. Com o questionamento da crença no crescimento econômico ilimitado, que tem transformado milhões de homens, mulheres e crianças em seres descartáveis, a aposta na erradicação da pobreza adquire relevância.
Num mundo no qual a opulência de poucos entra em contraste com a miséria de muitos, é plenamente possível que os bens essenciais à vida, completamente distintos dos bens fúteis propagandeados através do rentável, poluidor e barulhento mercado publicitário, sejam acessíveis a todos. Nessa agenda, preenchida pela desafiadora tarefa da garantia de redistribuição dos bens socialmente produzidos, a redução da jornada de trabalho sobressai como uma imperiosa necessidade, porque a meta do decrescimento, como destaca Serge Latouche, “é uma sociedade em que se viverá melhor trabalhando menos”.
A aposta na construção de vivências baseadas no ideal da simplicidade voluntária compatibiliza-se também com a necessidade da redução do padrão de crescimento. Se, como já dizia Henry Thoreau no século XIX, “a maioria dos luxos e dos chamados confortos da vida não são só dispensáveis como também constitui até obstáculo à elevação da humanidade”, é vital, que haja contraposição à lógica da acumulação de bens materiais incitada pela cultura do desenvolvimento, geradora de um ilusório bem-estar.
Por distinguir-se da moderna noção de riqueza, que define quem é rico pela posse de bens materiais, a simplicidade voluntária aponta para a possibilidade da construção de uma civilização na qual o ser prepondere sobre o ter.
Em sua opinião, a lógica desenvolvimentista da nossa cultura está assumindo uma posição errada? Por quê? Que pontos deveriam sofrer modificações?
Silva – A lógica apontada pelo desenvolvimento é essencialmente errada porque em seu interior está contida a insensata promessa de continuidade do crescimento econômico num mundo em que as riquezas naturais são finitas. Para iniciarmos uma mudança de rumos, compatível com os limites impostos pela biosfera, devemos descolonizar o nosso imaginário, ainda dominado pela crença nos supostos benefícios gerados pelo desenvolvimento. Para isso é necessário introjetarmos a ideia de que uma vida melhor independe do aumento da produção e do consumo de bens materiais.
Certamente, ao interiorizarmos essa ideia, questionaremos as bases fundamentais do desenvolvimento e passaremos a adotar práticas socioambientais convergentes como os verbos redistribuir, reduzir, desmercadorizar, diminuir, reciclar, reutilizar, desmercantilizar, redistribuir, perenizar, reaprender e reencantar.
O senhor defende uma ética “ecoantropocêntrica”, lembrando que as pessoas fazem parte de uma comunidade de vida mais ampla e dividem espaço com muitas espécies. O senhor também defende que falta um “egoísmo inteligente”, no qual o cuidado com outras espécies seja visto como defesa da própria espécie humana. Explique mais esse conceito.
Silva – Nós ainda estamos vivendo em conformidade com a ética antropocêntrica que, ao afirmar a premissa de ser o homem o centro de tudo o que existe, contribui para arraigar a convicção de que o mundo foi feito para a espécie humana. A origem dessa compreensão está estampada na narrativa judaico-cristã sobre a criação do universo na qual, conforme o relato bíblico, Deus teria ordenado ao homem: “enchei a terra e sujeitai-a; dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra”.
Acolhida entusiasticamente pela cultura ocidental, essa sentença foi incorporada ao conhecimento científico moderno através das palavras de Francis Bacon que, que em nome da ciência, deixou como legado este conselho: “devemos subjugar a natureza, pressioná-la para entregar seus segredos, amarrá-la a nosso serviço e fazê-la nossa escrava”. Diante dessa antiga crença, se o nosso descentramento parece algo impossível de acontecer, é fundamental então que passemos a enxergar a terra e os outros seres vivos também como centro do mundo.
A partir daí, ao interiorizarmos essa premissa ecoantropocêntrica, veremos que a nossa espécie é integrante de uma ampla comunidade de vida e terminaremos por concluir que o mundo não nos pertence.
Eu penso que, em razão dos humanos serem tributários de uma história anterior ao seu surgimento, as convicções que atestam a capacidade de destruição da Terra e o extermínio da vida nela existente por parte da espécie humana revelam-se falsas. Para mim, por sermos apenas “um punhado de mar”, a afirmação, largamente difundida nos dias atuais, de que devemos proteger a natureza porque o futuro do planeta está em nossas mãos é completamente ingênua e presunçosa.
Portanto, mesmo que essa afirmação esteja fundada em preocupações com a situação do planeta, os seus defensores não reconhecem a grandiosidade, nem tampouco a capacidade de resiliência que a Terra possui frente às agressões empreendidas pelos humanos. Assim sendo, se reconhecermos que estamos apenas maltratando a Terra e não a destruindo, acredito que iremos implementar ações preenchidas pelo egoísmo inteligente que alicerça-se no sincero princípio de que o cuidado com Terra e os outros seres vivos significa uma tentativa, quiçá vã, de cuidarmos de nós mesmos.
O senhor aposta na valorização dos saberes das populações indígenas e iletradas como alternativa à lógica desenvolvimentista, que pode estar ligada ao culto, ao corpo e à violência. De que maneira podemos criar políticas públicas que deem conta desta alternativa?
Silva – Para construirmos sociedades possibilitadoras da emergência de uma vida autêntica, precisamos ter a humildade de aprender com muitas populações iletradas que são portadoras de saberes indispensáveis a uma vida melhor. Temos que reconhecer, como diz a pesquisadora dos “saberes da tradição”, Maria da Conceição de Almeida, que além da ciência “existem outras formas de conhecer que se perdem no tempo e no anonimato porque não encontram espaços e oportunidade de expressão”.
Daí porque, para que possamos lutar pela implementação de políticas públicas que contemplem os legítimos anseios das populações que ainda não foram tocadas pela uniformização avassaladora do desenvolvimento ocidental, necessitamos primeiramente reconhecer a pertinência dos múltiplos saberes ancestrais. Reconhecendo a pertinência dos saberes das populações iletradas, certamente contribuiremos com o fortalecimento das lutas em prol da demarcação de terras indígenas e da valorização do saber/fazer de seringueiros, pescadores e roceiros.
Ao constatar que o desenvolvimento possui a capacidade de transformar quase tudo em bens consumíveis, percebo que a incansável busca do corpo perfeito também está vinculada à reprodução da sociedade do crescimento fundada no ter sobre o ser. No atual contexto, onde o desejo do corpo perfeito tornou-se uma nova utopia, a indústria da beleza e da “boa forma” tem aumentado a sua riqueza com a manutenção da pobreza espiritual das consumidoras e consumidores dos seus produtos.
Concomitantemente à disseminação da corpolatria, a existência de vínculos entre a lógica desenvolvimentista e o crescimento da violência física e simbólica em nossas sociedades explicita-se quando verificamos que, em nome do desenvolvimento, o valor das pessoas é medido pelo que elas possuem e não pelo o que elas são. Assim, assentado na concorrência e no individualismo, o desenvolvimento cinde as sociedades através da imposição do lema “salve-se quem puder”, contribuindo decisivamente para a propagação da cultura da violência.
O padrão de consumo deve ser reduzido nos países ricos, por quê?
Silva – O padrão de consumo existente nos países materialmente desenvolvidos deve ser reduzido porque, além de não ser capaz de garantir uma autêntica satisfação para os indivíduos, o consumismo constitui-se num fator que tem gerado drásticas alterações nos ecossistemas. Ao incorporarem o consumo excessivo como dimensão vital da existência, parcelas significativas das sociedades ocidentais, na desenfreada busca dos recursos naturais, tornam-se responsáveis pelos desmatamentos, poluições, assoreamento dos rios, envenenamento dos mares e degradação do ambiente urbano.
Conforme a publicação “O Estado do Mundo”, os 16% mais ricos do mundo são responsáveis por cerca de 80% do consumo mundial. Considerando que os países materialmente ricos são grandes consumidores de energia, ao discutirmos o problema da superpopulação, possivelmente iremos concluir, como sugeriu Paul Elrich, que há “um número demasiado grande de pessoas ricas” e que são eles que superpovoam a terra.
O automóvel foi considerado “irracionalidade completa” pelo professor João Luís Homem de Carvalho, da Universidade de Brasília (UnB), que correlacionou a ineficiência crescente do transporte individual ao aumento do efeito estufa. O senhor concorda com essa afirmação? Por quê?
Silva – Inquestionavelmente, a poluição atmosférica gerada pela queima de combustíveis fósseis, necessária à manutenção da civilização do automóvel, contribui sobremaneira para o aumento do efeito estufa. Podemos dizer que a aposta no automóvel é uma “irracionalidade completa” porque, além de potencializar o aquecimento global do planeta, a expansão do seu uso é multidimensionalmente insustentável. Para constatarmos essa irracionalidade, basta que sintamos as diversas consequências da intensa presença dos carros em nossas cidades.
Com mais automóveis, nossas cidades tornaram-se barulhentas e propícias ao aumento das doenças respiratórias e dos males psicofísicos entre os indivíduos. Além disso, o culto ao automóvel, compatível com a lógica do desenvolvimento que se ancora no aumento do PIB, tem arruinado muito lares com as incontáveis mortes e mutilações geradas pela guerra no trânsito.
A relocação da produção de alimentos, visando torná-los mais próximos dos consumidores, é uma alternativa sustentável? Por quê?
Silva – A aposta na relocalização da produção é algo fundamental para que possamos sair da sociedade do crescimento. Como diz Latouche, “se as ideias devem ignorar fronteiras, os movimentos de mercadorias e de capitais devem, ao contrário, limitar-se ao indispensável”. Produzir localmente alimentos e outros bens destinados ao atendimento das necessidades das comunidades contribui para a redução dos vultuosos gastos destinados ao transporte das mercadorias.
Certamente, além de contribuir para redução da poluição gerada pelos grandes deslocamentos terrestres, aéreos e marítimos, a relocalização da produção possibilitará o aumento da geração de empregos locais e estimulará o sentimento de pertencimento entre os indivíduos de cada localidade.
(IHU On-Line, 16/11/2011)