Trabalhadores nucleares na abalada usina nuclear de Fukushima correram para injetar ácido bórico no reator Nº 2 da usina na madrugada de quarta-feira (2), após elementos radioativos indicativos terem sido encontrados lá, e a proprietária da usina admitiu pela primeira vez que o combustível no interior das três usinas atingidas provavelmente continuam sofrendo fissão.
É extremamente improvável que as reações inesperadas – algo semelhante a uma explosão de chamas após um grande incêndio – sejam um presságio de uma reação nuclear com produção em grande escala de calor e radiação.
Mas elas ameaçam aumentar a quantidade de elementos radioativos perigosos vazando do complexo e complicando os esforços de limpeza, levantando dúvidas perturbadoras sobre quanto permanece incerto na usina, local do pior acidente nuclear do mundo desde Chernobyl. O governo japonês disse que busca colocar os reatores em um estado estável conhecido como “desligamento frio” até o final do ano.
Na quarta-feira, a operadora da usina, a Tokyo Electric Power Company, disse que medições de gás dentro do Reator Nº 2 indicaram a presença de xenônio radioativo e outras substâncias que poderiam ser subproduto de fissão nuclear. A presença de xenônio 135 em particular, que tem uma vida de apenas nove horas, parecia indicar uma ocorrência recente de fissão.
O ministro do Comércio, Yukuo Edano, censurou a agência reguladora nuclear do Japão, a Agência de Segurança Nuclear e Industrial, por ter demorado horas para informar a descoberta ao gabinete do primeiro-ministro, segundo relatos na imprensa local.
O desdobramento aumentou a inquietação a respeito do modo como estão lidando com as informações ligadas ao desastre. Por quase dois meses após o desastre de terremoto e tsunami de 11 de março, tanto representantes da empresa quanto autoridades do governo declararam que era improvável que ocorreria uma fusão do núcleo no complexo nuclear de Fukushima Daichi, finalmente reconhecendo que o combustível de fato vazou e provavelmente escapou das contenções em três reatores.
A quantidade do xenônio detectado foi pequena, e não houve aumento da temperatura, pressão ou níveis de radiação no reator, disse a Tokyo Electric. Os pesquisadores estavam conferindo os dados para assegurar que não houve nenhum erro, disse a empresa. Especialistas concordaram que é possível que a Tokyo Electric tenha apenas cometido um erro simples nas medições.
Mas a injeção urgente de ácido bórico ressaltou que a empresa está agindo com base na suposição de que as medições foram corretas. Um elemento que ocorre naturalmente, o boro absorve os nêutrons emitidos quando um átomo é dividido, para que esses nêutrons não possam dividir outros átomos no processo de fissão. Usinas nucleares exploram a energia liberada na forma de calor para produzir eletricidade.
É impossível determinar exatamente em que estado está o combustível, já que mesmo um reator intacto pode oferecer apenas medições limitadas na forma de leituras de temperatura, pressão e fluxo de nêutrons, mas não observação visual. Essa falta de clareza é uma das principais lições do desastre de Fukushima, onde aqueles que tentavam guiar a resposta e avaliar o risco tiveram que atuar com base em palpites informados.
Em reatores como os utilizados em Fukushima, essa reação em cadeia é normalmente detida quando o operador dá um comando para inserir barras de controle, que se erguem do fundo do núcleo e separam os conjuntos de combustível.
Mas quando ocorreu a fusão nos núcleos dos três reatores de Fukushima, uma grande parte do combustível supostamente formou uma massa amontoada no fundo do receptáculo, e sem uma geometria rígida de grade, as barras de controle não puderam ser inseridas. Parte do combustível escapou do receptáculo, acreditam os especialistas, e está em espaços abaixo, onde não há como usar as barras de controle para interromper o fluxo de nêutrons.
O amontoado de material e as condições pareciam improváveis para produzir uma fissão sustentável, mas há muito se suspeita da ocorrência de pontos críticos intermitentes.
Junichi Matsumoto, um porta-voz da Tokyo Electric, reconheceu episódios de fissão, dizendo em uma coletiva de imprensa: “Há a possibilidade de que certas condições tenham se formado temporariamente e que sejam propícias para uma nova criticalidade”, e que as medições indicaram a ocorrência de fissão em uma taxa ligeiramente maior do que em casos anteriores.
“Não é que não tivemos nenhuma fissão até agora”, disse Matsumoto. “Mas a esta altura, nós não achamos que há uma nova criticalidade em grande escala e autossustentada.”
Uma criticalidade poderia produzir energia que rearranjaria o combustível em uma configuração que não mais sustentaria fissão, mas gradualmente o material poderia se reunir em uma forma que suportaria uma nova ocorrência de fissão. Esse foi o caso em chamadas criticalidades involuntárias anteriores em outros acidentes.
Ele disse que medições detalhadas ainda não foram realizadas em dois outros reatores seriamente danificados em Fukushima, mas reconheceu a possibilidade de episódios de fissão ali também.
O complexo de Fukushima, a cerca de 260 km de Tóquio, foi atingido por um terremoto e tsunami devastadores em 11 de março, que desativaram sistemas vitais de resfriamento e fizeram o combustível nuclear em três dos seis reatores da usina derreter, com vazamento de radiação e emissões cujos danos ainda estão sendo calculados. Uma zona de exclusão de 19 quilômetros ainda está em vigor ao redor da usina. Mais de 80 mil lares foram desocupados.
Os três reatores – juntamente com as barras de combustível usadas em um quarto reator danificado – estão vazando material radioativo desde o desastre inicial, e novos episódios de fissão apenas aumentariam os riscos.
“Uma nova criticalidade produziria mais material radioativo prejudicial, e como os reatores estão danificados, haveria risco de vazamento”, disse Hiroaki Koide, professor assistente do Instituto de Pesquisa de Reator da Universidade de Kyoto, cujos alertas prescientes sobre a segurança nuclear lhe renderam respeito no Japão.
Koide argumenta que o combustível nuclear nos três reatores provavelmente derreteu pelas contenções e entrou no solo, aumentando a possibilidade de contaminação do lençol freático.
Se muito combustível de fato estivesse no solo no início da crise, a estratégia de “alimentação e sangramento” adotada pela Tokyo Electric – na qual os trabalhadores injetaram água para esfriar os reatores, produzindo centenas de toneladas de escoamento radioativo – teria impedido o combustível ainda no reator de ferver até secar e derreter, mas não teria feito nada para reduzir o risco do combustível já no solo – se ele chegou tão longe.
Os trabalhadores agora instalaram um sistema de refrigeração circulatório, que recicla a água, o que resulta em menos escoamento.
A Tokyo Electric não nega a possibilidade de que o combustível possa ter se infiltrado no solo, mas seus representantes dizem que “grande parte” do combustível provavelmente permanece dentro do reator, apesar de espalhado no fundo em uma massa derretida.
Mas mesmo em suas avaliações mais pessimistas, alguns especialistas não esperavam a reocorrência de criticalidade, porque era improvável que o combustível derreteria do modo correto – e que o outro ingrediente, a água, estaria presente na quantidade certa – para permitir qualquer reação nuclear.
Se episódios de fissão em Fukushima forem confirmados, disse Koide, “todo nosso entendimento de segurança nuclear viraria de cabeça para baixo”.
Alguns especialistas nucleares debatem há meses se as reações nucleares poderiam continuar, seja no combustível dentro dos reatores ou nas piscinas de combustível gasto na usina. Eles apontaram, por exemplo, para a continuidade dos relatos de presença de iodo na piscina de combustível gasto do Reator Nº 3.
Um ex-engenheiro nuclear com três décadas de experiência em uma grande empresa de engenharia, por sua vez, disse que a nova criticalidade sustentada permanece altamente improvável. Mas sua maior preocupação é com o fato das autoridades não conseguirem determinar a localização exata do combustível nuclear –o que complicaria enormemente a limpeza.
O engenheiro, que trabalhou em todos os três complexos de energia nuclear operados pela Tokyo Electric, falou sob a condição de anonimato por não desejar ser identificado por seu antigo empregador. Ele disse que pelotas minúsculas de combustível poderiam ter sido levadas para diferentes partes da usina, como os espaços sob o reator, durante as tentativas de resfriá-los nos primeiros dias. Isso explicaria os vários casos de leituras de radiação letalmente altas encontrados fora dos núcleos do reator.
“Se o combustível ainda está dentro do núcleo do reator, isso é uma coisa”, ele disse. “Mas se o combustível tiver sido dispersado mais amplamente, então nós estamos longe de qualquer desligamento estável.”
(Por Hiroko Tabuchi*, com tradução de George El Khouri Andolfato, The New York Times / UOL, 03/11/2011)
*Matthew L. Wald, em Washington (EUA), e Kantaro Suzuki, em Tóquio, contribuíram com a reportagem.