Os protestos indígenas que tiveram lugar na Bolívia nas últimas semanas contra o presidente Evo Morales, notabilizados pela marcha contra a estrada que corta o Parque Tipnis (Território Indígena y Parque Nacional Isiboro Sécure), deixaram os setores progressistas do continente latino-americano em situação desconfortável.
Afinal, não há dúvidas de que o presidente Morales sofre pesada resistência da direita e de setores conservadores, internos e externos, em função de seu esboço de um projeto de nação de enfrentamento ao imperialismo.
Para descrever este cenário, o Correio da Cidadania entrevistou o sociólogo Luis Fernando Novoa Garzon, estudioso do território e dos povos amazônicos, professor do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Garzon não traça um quadro otimista para aqueles que têm esperanças na institucionalidade boliviana.
O segundo mandato de Evo tem sido palco indubitável de uma série de concessões ao agronegócio e, na mesma medida, de uma fissura profunda no pacto político que deu sustentação ao governo até o momento.
Diante da incapacidade do presidente em estabelecer canais de comunicação com as comunidades e representações indígenas das terras baixas bolivianas, está em andamento um “processo sistêmico de organização das terras agrárias bolivianas, especialmente as terras baixas, não ocupadas, no sentido de atrair investimentos privados. Há um processo de regularização fundiária em curso que o governo boliviano vem protagonizando, o que significa o enfraquecimento da estruturação comunitária da terra no país. E quando falamos comunitária, falamos de organização indígena tradicional”.
Neste contexto, tem desempenhado um papel preponderante o Brasil, através de seu grande banco de investimento, o BNDES, e também do Itamaraty. Ambos têm se colocado como meras pontas de lança de empresas brasileiras no exterior, uma vez que negligenciam, ou mesmo desprezam, procedimentos de consulta popular efetivos, que levem em conta os interesses de comunidades locais, e também requisitos ambientais e tecnológicos mais apropriados para a promoção do crescimento.
Reproduzem no exterior o mesmo modelo que se pratica internamente, patrocinando grandes grupos econômicos na condução de vultosas obras, que reforçam o caráter primário-exportador das economias latino-americanas e o sentido regressivo de integração do continente.
Garzon chama, finalmente, a atenção para as falsas e sorrateiras vozes salvacionistas que podem aparecer em meio a estes acontecimentos, aquelas precursoras dos famosos ‘selos verdes’ e da tão propalada ‘economia sustentável’. Apropriam-se em parte do sedutor discurso público voltado ao progresso, a ele associando as infinitas possibilidades de medidas ‘conservacionaistas’ para o meio ambiente.
Neste meio de caminho, nada mais fazem do que reforçar “uma agenda tão colonial ou impositiva quanto a agenda do progresso que vem a reboque dos projetos das grandes empresas brasileiras”.
Em face de uma dinâmica nefasta para os povos, estes mesmos têm assumido o protagonismo de suas existências. Como o demonstrou bravamente o povo boliviano, que conseguiu politizar novamente o tema do desenvolvimento, ao sair em massa às ruas para questionar o destino que está sendo imposto ao país.
Leia abaixo entrevista exclusiva.
Correio da Cidadania - A Bolívia, país tão parca e tendenciosamemte divulgado em nossa mídia, está agora no olho do furacão. O que você teria a dizer sobre os intensos protestos de parte dos movimentos indígenas contra o presidente Morales e a orientação dominante do partido de sustentação do governo, o MAS (Movimento ao Socialismo), notabilizados pela marcha contra a estrada que corta o Parque Tipnis?
Luis Fernando Novoa Garzon - Primeiro, é preciso notar que o processo de eclosão social boliviano, a partir das guerras do gás e da água, nos anos 2000, produziu a exaustão do modelo oligárquico, uma reciclagem do velho modelo colonial em tempos neoliberais no continente todo. Houve uma resposta popular especial no país, muito frontal, que produziu, em paralelo, espaços alternativos de poder.
Constituiu-se na Bolívia o horizonte de um poder político diferenciado, de governos que iriam além do carimbo progressista, como no Brasil, Argentina e Uruguai, com elementos políticos novos, extra-institucionais, e que, portanto, recebeu apoio de todos os setores da chamada nova esquerda, os novos movimentos sociais, como espécie de modelo de reconstituição e reconstrução de novas utopias a partir da Bolívia.
Nesse processo, já existiram muitas diferenças e divisões. O próprio MAS, que não é um partido, e sim uma grande federação de movimentos que se organiza momentaneamente como partido para assumir o governo, é atravessado de profundas diferenças políticas e ideológicas, o que vai se agudizando e aprofundando ao longo dos dois mandatos de Evo Morales.
Acho que vemos agora o amadurecimento de uma clivagem político-ideológica dentro do próprio governo Evo e do próprio partido hegemônico, o que evidentemente passa pelo movimento indígena e camponês boliviano. Acho que essa marcha desequilibrou um processo de alianças internas, que já vinha desgastado, a respeito de qual rumo deve adotar o governo boliviano.
A segunda avaliação que faço é que, neste segundo mandato do Evo, têm sido feitas muito mais concessões que no primeiro. Um exemplo é aprovação da lei dos transgênicos. A soja transgênica está legalizada, apesar de formalmente proibida. A lei só proíbe variedades locais, e, como a soja não é desenvolvida na Bolívia, permite-se seu cultivo transgênico.
Mas não é só: há um processo sistêmico de organização das terras agrárias bolivianas, especialmente as terras baixas, não ocupadas, no sentido de atrair investimentos privados. Há um processo de regularização fundiária em curso que o governo boliviano vem protagonizando, que está enfraquecendo a estruturação comunitária da terra no país. E quando falamos comunitária, falamos de organização indígena tradicional.
A estrada, portanto, representa uma espécie de ruptura com as conquistas e com o patamar de lutas alcançado pelos movimentos populares indígenas bolivianos em defesa de seus territórios, direitos e autonomias. Ao mesmo tempo, faz enormes concessões ao bloco inimigo, ao agronegócio, ao imperialismo, que são beneficiários diretos da estrada, que ligará a Amazônia boliviana a Cochabamba, e esta a Santa Cruz. Ou seja, estende-se o corredor sojeiro. E também o corredor cocaleiro.
Dessa forma, temos a vulnerabilização dos povos e territórios indígenas em função de acordos que o governo vem fazendo com o agronegócio, e também com sua base social mais imediata, cocaleira, visto que a coca é tradicionalmente produzida no país e tem representação sindical. E há ainda os chamados colonizadores, frentes migratórias estimuladas por tais empreendimentos, especialmente de transportes, que vão ocupando suas bordas e margens, e utilizam a coca como primeira atividade mais rentável.
Em uma analogia com o Brasil, aquilo que em nosso país acontece com o gado, na pecuária extensiva, que abre o caminho para a soja a partir da devastação da floresta, acontece na Bolívia com a coca. Portanto, a estrada traz dentro de si, no seu percurso, esse conjunto de conflitos, choque e entrechoques a respeito de qual caminho a Bolívia deve seguir.
Agora vivemos o impasse. O cancelamento da obra simboliza um impasse de forças e uma revelação do lado para o qual está pendendo o governo Evo no momento, e também como fica o horizonte político boliviano para o próximo mandato. Apostava-se bastante no vice Garcia Linera, mas é notória sua relação muito próxima com as grandes empresas que tocam os projetos da IIRSA (Iniciativa de Integração da Infra-estrutura Regional Sul-americana), uma continuidade do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento).
E sabemos que há uma diplomacia empresarial brasileira muito forte ali, com a Petrobras e as construtoras muito presentes. Há um diálogo muito estreito entre essas empresas e o gabinete presidencial, especificamente o do vice-presidente.
Para os setores à esquerda do espectro político, soa um tanto aflitiva essa ‘duplicidade’ do governo Morales. Afinal, não há dúvidas de que o presidente Morales sofre pesada resistência da direita e de setores conservadores, internos e externos, em função de seu esboço de um projeto de nação de enfrentamento ao imperialismo, com maior proximidade ao bolivarianismo de Chávez.
Neste sentido, há vozes que já destacam que parte das conflagrações atuais estaria sendo manietadas pelos setores mais conservadores que não digeriram Morales. O que pensa disto?
Garzon - O engraçado é que o agronegócio de Santa Cruz foi contra a marcha desde o início. E se há um setor sabotador e conservador dentro do espectro político boliviano, inevitavelmente, é o setor separatista da burguesia agrária de Santa Cruz. Basta ouvir as declarações desse grupo, seus políticos, seus jornais, para saber que desde agosto se faz um bombardeio incessante contra a marcha, evidenciando a concessão feita por Evo no caso da estrada do parque Tipnis. É o primeiro ponto.
Em segundo lugar, é preciso diferenciar as representações dos povos indígenas, especialmente no parque Tipnis, que tem mais de 65 comunidades dentro de seu território, ONGs que procuram aproveitar o momento de impasse e falta de diálogo interno do governo com tais grupos - um diálogo que sempre foi bom, mas que veio se azedando e se deteriorando nos últimos anos. Algumas ONGs tentam se aproximar das bases sociais não ouvidas ou relegadas na discussão de tais projetos políticos, apresentando alternativas mais alinhadas à chamada economia verde. Outras, como o Fobomade, são mais espaços de articulação que de direção dessas lutas.
Já as ONGs ‘conservacionistas’ fazem um discurso a reboque, apresentando uma economia alternativa que não precise sacrificar os parques florestais bolivianos. Só que essa agenda está sendo colonizada também. Não é menos colonial ou impositiva que a agenda do progresso que vem a reboque dos projetos das grandes empresas brasileiras, nos quais o governo Evo vem tentando pegar carona ao apresentá-los como saída e solução para o atraso histórico desses povos e regiões.
Portanto, há uma disputa de agendas, o que certamente denota a incapacidade política do governo Evo em estabelecer canais de comunicação com as comunidades e representações indígenas das terras baixas bolivianas. Se está bem articulado com os cocaleiros e os povos aymaras mais próximos de La Paz, está claro que, com os povos das terras baixas, o governo tem tido muito pouca penetração. E a marcha demonstra isso. Um ministro foi tentar uma intermediação e praticamente se sentiu seqüestrado, quando devia ser o elo. A marcha era pacífica, por que não devia prosseguir?
Enviar um ministro numa situação de polarização, que não consegue fazer uma intermediação entre as partes, e logo depois se emite uma ordem de repressão geral e irrestrita, da forma como foi feita, lembrando os governos ditatoriais de direita ou as milícias dos empresários, não cabe num governo que tem uma base, uma constituição e uma história de luta, com tanto empenho dos movimentos populares.
Esse domingo sangrento não cabe na história do atual governo. Isso só se explica em função de acordos e interesses empresariais interpenetrados no governo, que permitiram a manutenção da polarização até o limite. Até o último dia antes da marcha o governo dizia não ver hipótese alguma de suspender a obra para iniciar o processo de diálogo. E tínhamos conhecimento de que a empresa (OAS) já construía bases para a estrada e suas pontes em Cochabamba, nos limites do território do parque. O segundo trecho seria iniciado, e nem mesmo havia cronograma para a consulta prometida.
Ou seja, a obra seguia irregularmente. Assim, não é admissível, aceitável, a repressão a uma marcha pacífica contra uma obra que não estava totalmente regulamentada! Uma obra que, na prática, se insinua como fato consumado, com governo e empresa armando e construindo tudo ao redor da obra principal e deixando o trecho final, dentro do parque, como última parte a ser feita. Uma espécie de cerco, encurralada. “A Bolívia inteira contra o parque” foi a estratégia de licenciamento e implementação da obra, com vistas a isolar os indígenas e fazer seus interesses parecerem meramente particularistas.
Só que a coisa se inverteu. A capacidade de mobilização desses povos e agregação de interesses em torno de qual modelo de desenvolvimento a Bolívia terá, com que atores e beneficiários, politizou a questão novamente. Esse cenário chega agora a La Paz, após os protestos há uma aliança nova, um repúdio generalizado de grande parte das forças de esquerda e centro da Bolívia contra essa repressão, o que culminou na queda de ministros e vice-ministros.
De sua fala, fica claro que se abriram fissuras profundas no pacto político do governo boliviano. Bem maiores do que parecem para aqueles que não estão vivendo aquela realidade de perto e que têm na Bolívia uma referência de governo que trilha um caminho mais autenticamente progressista e que, por isto mesmo, sofre pesados boicotes.
Garzon - Sim, e com a contribuição de governo e empresas do Brasil. Esse é o maior problema em relação ao governo brasileiro.
Alguns analistas, você entre eles, têm realmente destacado, já há algum tempo, a IIRSA como um conjunto de obras que, ao contrário do que se divulga, possui interconexão predominante com interesses externos e agro-exportadores, cujas conseqüências serão nefastas para a economia, sociedade, meio ambiente e a autodeterminação do continente latino-americano.
Como o Brasil, via BNDES, vem atuando mais especificamente como um dos maiores propulsores da IIRSA na América Latina?
Garzon - Essa interpenetração e articulação de interesses empresariais no governo Evo tem basicamente a ver com os capitais brasileiros. Governo e capitais, empresas privadas e estatais do Brasil. Trata-se de uma situação que pode se replicar em vários locais, como já ocorreu na usina San Salvador, no Equador, com envolvimento da Odebrecht. Seria interessante fazer este tipo de avaliação para a América do Sul.
Porque, enquanto não tivermos espaço na Unasul com condições de debater a implantação dos projetos de infra-estrutura, com critérios sociais e ambientais e mecanismos de consulta muito bem definidos, o país vai ficar exposto a esse tipo de conflito. E o Brasil aparecerá como país imperialista para as outras nações, pois estará viabilizando interesses de grupos poderosos e pisoteando grupos mais vulneráveis.
Além disso, o Brasil deveria ter regras internas em suas instituições financeiras, como o BNDES, que tornassem tais premissas indispensáveis para aprovação de empréstimo. O próprio órgão financiador deveria antes pavimentar o caminho do melhor acordo possível para as partes, ou seja, exigindo consultas, envolvimento de fato das partes, elementos de verificação, em que os distintos grupos e atores atingidos sejam contemplados. Esse mecanismo de consulta precisa ser requisito prévio de aprovação de financiamento, especialmente quando envolve países vizinhos.
O BNDES não pode simplesmente declarar que se trata de projeto de integração regional se não temos mecanismos que possam tornar verificáveis as vantagens e condições desse processo de integração e se estão sendo efetivos, o que só se faz através de consultas, referendos.
O Itamaraty também deveria se posicionar de forma mais isenta, majestática, no sentido de não se colocar como ponta de lança das empresas brasileiras no exterior, o que tem sido o papel das embaixadas brasileiras. Eu conheço esse cenário de perto e posso falar: a agenda da embaixada brasileira na Bolívia é a da Petrobras e das grandes construtoras. Não temos uma política externa sul-americana em construção e discussão nas embaixadas. O Itamaraty apenas reforça a somatória de fragmentos de iniciativas de expansão empresarial brasileira ao longo do continente.
Não há um projeto maior que balize as iniciativas pontuais de expansão das empresas brasileiras. Por exemplo, não se pensa que tipos de complementaridades econômicas são possíveis entre Bolívia e Brasil, e, a partir daí, que projetos podem potencializá-las. No caso do agronegócio, podia se pensar em como, por exemplo, agregar valor e incrementar setores com maior intensidade tecnológica, utilizar a mineração rica dos dois lados, processar mais essas matérias primas dentro do próprio território, qualificar mais a mão de obra...
Esses deveriam ser os requisitos de uma integração regional de verdade, mas não estão colocados em pauta quando vemos os projetos existentes de integração de infra-estrutura. Trata-se apenas de criar corredores de escoamento de matérias primas.
O Brasil e o BNDES não deveriam jogar suas fichas apenas na criação de corredores que proporcionem o aumento de escala de produções primário-exportadoras – soja, pecuária, madeira, gás, mineração... Isso é cristalizar a posição boliviana no degrau mais rebaixado possível. E acaba também desperdiçando o papel suplementar do Brasil, que dispõe de capital, tecnologia, empresas mais avançadas, no sentido de criar parques industriais e tecnológicos de fato. E existem áreas e áreas, certo? Certamente não é na Amazônia boliviana, em cima de um parque indígena, que devemos implementar tais atividades.
Vejo uma inversão de prioridades, uma integração que interessa aos próprios atores econômicos que já dominam a região e querem mais territórios. E o governo boliviano vem cedendo, paulatinamente enfraquecendo as legislações favoráveis às comunidades campesinas e indígenas, fortalecendo o agronegócio e as grandes empresas mineradoras e petrolíferas.
Infelizmente, a correlação de forças tem imposto ao governo Evo esse recuo, mas o povo boliviano tem se mantido firme, o que a marcha demonstrou. Se o governo recua, o povo não. Se alguém tiver de cair, não será o povo boliviano, que continuará de pé e em luta. Por isso, abre-se um horizonte de muita imprevisibilidade para as próximas eleições bolivianas.
Ou seja, o Brasil reforça o caráter deletério e perverso da IIRSA, e agora com a anuência de Morales.
Garzon - Exatamente. O Brasil viabiliza a lógica da IIRSA, uma dinâmica pensada para as cadeias internacionais de negócios. A IIRSA é uma espécie de marco lógico, no qual os projetos se espelham. Eles precisam ser intermodais, ter saídas oceânicas, larga escala e voltados à exportação. Isso é o carimbo IIRSA. E são estes os projetos que o BNDES vem financiando fora do Brasil, seguindo exatamente esses requisitos.
Ou seja, o Brasil favorece uma lógica de transnacionalização dos territórios, em benefício dos grandes grupos monopolistas e oligopolistas de cada um dos setores já instalados no continente e que tendem a se expandir com recursos públicos. E a questão é essa também, por isso podemos nos meter mais na história: são recursos públicos.
Portanto, exige-se debate público a respeito de tudo, utilização de critérios democráticos, de equidade, ambientais, porque não podemos aceitar que esse processo todo de privatização e monopolização dos territórios e recursos naturais se consolide, aprofunde, com cada vez mais exportação e controle das transnacionais, tudo feito com recursos públicos do BNDES e, ainda por cima, com o discurso de integração do Itamaraty.
Dessa forma, apenas se transfere ao exterior o mesmo modelo regressivo que se pratica internamente, onde estão em andamento vultosas obras e investimentos, das quais Belo Monte e a Transposição do São Francisco são somente as partes mais visíveis, com a participação de grandes grupos econômicos, sob patrocínio estatal, via BNDES.
Garzon - Exato. É a reprimarização. Estamos contribuindo para isso na Bolívia. No caso deles, uma primarização da primarização. Nós também nos reprimarizamos mais um pouco, especialmente em algumas regiões, onde se esculpem vocações eternas por conta de vantagens comparativas. Assim, em áreas de muito gás e petróleo, ou agricultáveis, para a soja, por exemplo, cria-se toda a estrutura para que se viabilize apenas um determinado produto. Qualquer alternativa é esmagada e eliminada do mapa.
Trata-se de talhar o futuro em pedra, de forma que econômica e espacialmente não haja viabilidade de outra forma de geração de renda. E é exatamente contra isso que protestam os indígenas e campesinos bolivianos. O que ocorre aqui também, com os ribeirinhos do São Francisco, ribeirinhos e indígenas da Amazônia, camponeses, que mostram que há economias de pequena escala, comunitárias, não mercantis, que geram muita renda, riqueza e sócio-diversidade.
Para não falar, como já mencionado, da questão da biodiversidade e dos conservacionistas, que na verdade apenas conformam mais um mercado que se acopla muito bem ao mercado explorador de recursos naturais, criando corredores de exportação, reservas de capital verde e se dando muito bem, reciprocamente. As mesmas empresas que investem na devastação de algumas áreas vão investir na preservação de outras, a fim de transformá-las em áreas de exploração da economia verde.
Portanto, essas duas propostas aparentemente opostas, em choque na Bolívia e outras regiões, se compatibilizam. Prova disso é que a Rio + 20 tende a conciliar a forma intensiva de exploração de recursos naturais, que o Brasil vem adotando, com mecanismos marginais de potencialização da chamada economia verde, como os créditos de carbono, através dos monocultivos reflorestáveis, do etanol, de hidrelétricas a qualquer custo...
Ou seja, o modelo capitalista de acumulação intensiva de recursos naturais se concilia perfeitamente com esse outro modelo mais inteligente que se vale de economia verde, informação, marketing e da financeirização da natureza.
Na crise financeira, cria-se um novo mercado, que possa andar paralelamente ao mercado convencional de exploração de recursos naturais. O Brasil procura se especializar nisso, e vem exportando tal modelo, através de suas empresas e do BNDES. Na maior parte dos países em que o Brasil atua, pode-se conferir esse fato.
Mas o país não faz aquilo que os europeus tentaram quando ainda “eram Europa”, agrupando-se para uma política industrial comum, com política espacial, tecnológica, estrutural, um projeto de Europa social e econômica, que agora desabou. Aquilo que era modelo de integração há 20, 30 anos, nunca aplicamos no continente, e nem queremos aplicar agora.
Esse discurso é vazio e esconde uma política de cartelização dos territórios do continente. O Brasil sempre foi um país com várias fronteiras a serem incorporadas, liquidadas. Agora chegou a vez do continente.
Fica então claro que tal modelo de expansão capitalista continua em pleno triunfo, mesmo em tempos de crise financeira, encontrando guarida em todos os governos da região, inclusive aqueles ditos progressistas?
Garzon - É por isso que fico elucubrando sobre os vínculos entre essa expansão diferenciada e a crise. A idéia do Brasil e dos países da periferia, que de certa forma se beneficiaram do boom das commodities, é aprofundar o acesso dos capitais aos territórios que comportam tais commodities, e que ainda continuarão valendo muito, mesmo durante a crise. Uma espécie de “seguro contra a crise”, portanto, é atropelar todas as legislações que condicionam a exploração de recursos naturais. Fazendo isso, aumenta-se, de forma objetiva, o grau de investimento.
No passado, a confiança que governos neoliberais, como de FHC, Menem, precisavam obter era muito mais dos investidores financeiros, os chamados investidores não institucionais, como os fundos de pensão. Talvez por isso a macroeconomia fosse muito mais importante do que hoje.
Atualmente, na minha avaliação, a maleabilidade institucional do aparato que regula e dá acesso aos recursos naturais é muito mais importante para se obter confiança dos investidores do que antes. Isso quer dizer que uma forma de você se vacinar, ou adiar sua crise, dar saltos adiante, é oferecer territórios com as menores imposições de condicionalidades ou interposições legais, comunitárias, que se coloquem entre a decisão do investidor, sua operação e seu recolhimento. É fazer o capital girar o mais rápido possível, oferecendo matérias primas, territórios, populações. E a fórmula clássica: super-exploração da força de trabalho.
Nessas áreas de fronteira, podem-se utilizar custos de fronteira. Nos momentos de crise, tais áreas são muito valorizadas, significando o lugar de afluxo de novos capitais, em momento em que todos os países precisam se segurar, além de acumular perspectiva de investimentos, não só poupança, o que vale muito em um momento sem horizonte algum.
Assim, apresenta-se um projeto de 10, 15 anos, com acesso a tantos hectares de terras, num território que também possui gás e petróleo, bastando apenas realizar consultas (que nós sabemos como são “feitas”). Uma estrada automaticamente significa pensar ‘tantos lotes a mais de gás, tantos lotes a mais de petróleo, mais gasodutos, a serem feitos pelas construtoras’, todo um pacote de investimentos que se embute em cada grande obra dessas, que o banco financia, criando a perspectiva de investimentos cumulativos.
A grande questão é que daí se reforça a lógica monopolista, concentradora, expropriadora, em prejuízo de qualquer modelo alternativo, em prejuízo de nossas organizações comunitárias e indígenas.
Uma lógica que, ressalte-se, a cada crise, se coloca de forma ainda mais bárbara.
Garzon - Exatamente, como vimos na repressão à marcha. E em outros massacres, como em Bágua, no Peru, quando se resistia a uma lei aprovada pelo Alan Garcia, de aprovação automática das concessões petrolíferas, sem consultas ou nenhum tipo de prestação de contas aos povos indígenas. Isso gerou um massacre com dezenas de mortos.
A questão é essa: o modelo vai se entronizar à custa de quanto sangue? Qual o custo que estão dispostos a pagar governos e empresas, em termos políticos, para entronizar seu modelo de desenvolvimento? E qual a permeabilidade que terão para aceitar esses interlocutores, abrindo a mesa de fato, sem fazer descer os projetos goela abaixo, como Belo Monte, Madeira e outras grandes obras, nos quais atuam, no máximo, como bombeiros em momentos de crise e rebelião?
Temos de pensar bem nisso, porque se trata de algo que ocorre em escala cada vez mais continental, não só no Brasil. E num momento de fragilidade internacional, em vez de buscarmos fatores de unidade, em longo prazo, que nos dêem alternativas de desenvolvimento, apostamos num processo muito perigoso e temerário de concentração de poder e decisão política em poucos atores, colocando em risco qualquer processo de integração regional mais refinado.
Resultam claros dessa conversa dois pólos no continente latino-americano, um deles representando o sub-imperialismo, onde se destaca o Brasil, e o outro representado pela união dos povos em favor de novos parâmetros de integração e desenvolvimento, para o que a Unasul seria um importante canal.
Neste sentido, e considerando as atuais circunstâncias históricas, qual é a sua expectativa para o continente latino-americano no que se refere à sua inserção neste modelo de desenvolvimento, ditado por interesses externos e agro-exportadores? Enxerga alguma possibilidade de reversão à vista neste rumo?
Garzon - Acho que existem duas integrações, de dupla velocidade. Uma empresarial, automática. Na Europa se dizia isso, que havia a integração das empresas e a dos governos nacionais, em velocidades diferentes.
No caso do Brasil e da Bolívia, da América do Sul, especialmente na era Lula, o que se esperava? Que esse processo político de integração avançasse. E que o processo econômico de integração seguisse os passos do processo político. Ou seja, as instituições construídas democraticamente, com isonomia, critérios sociais, ambientais, étnicos, deveriam vir pelo menos em paralelo a tais processos.
Mas o que vemos é o contrário. A Unasul se tornou uma espécie de redoma, sendo exemplo da dupla velocidade nos processos políticos e econômicos. A IIRSA, que era um projeto paralelo, que nem o BID acreditava inserir de fato na agenda de integração sul-americana, contou com sua incorporação por parte da Unasul. E de forma voluntária, com o Brasil como principal propositor, a Unasul converteu a IIRSA na agenda de integração física da América do Sul.
Ou seja, incorporou o projeto, tomou para si a tarefa, sem mais necessidade alguma de conferir os requisitos ou certificados de conectividade internacional e territorial.
É como se o território virasse uma commodity em si. Porque a commodity precisa de especificações do comprador, daquele que vai intercambiar e utilizar os insumos, e de certificação internacional. E o território vai virando commodity nesse mesmo sentido, na medida em que as grandes empreiteiras, mineradoras, empresas elétricas vão ordenando-o em função do uso mais lucrativo possível, em todas as áreas: no uso da água, energia, terra, minérios, transporte... E as populações que originariamente vivem e conhecem tais territórios não cabem mais neles, precisam ser arrancadas desses lugares.
São projetos absolutamente impermeáveis ao modo de vida dessas populações, pois exigem sua exclusão e não oferecem formas de recomposição em outras áreas, uma vez que as áreas remanescentes são cada vez mais diminutas, inviabilizando remanejamentos de larga escala.
É preciso partir dessa posição dos movimentos, de definir limites. Onde houver capacidade de enfrentamento, é preciso cerrar fileiras e dizer que ali o capital não vai entrar. E acho que essa foi a grande posição de coragem dos povos indígenas de Beni e Pando, que ganharam adesão e mostraram a possibilidade de se quebrarem as alianças, muitas vezes frágeis e oportunistas, do bloco de poder.
Uma outra unidade, ainda que pontual e isolada, mas que expressou um potencial de união muito maior, reverberando na própria formação dos últimos levantes populares bolivianos, de repente ganhou uma dimensão simbólica impressionante e passou a falar a todo o país.
“Todos somos Tipnis”, é o grito que percorre toda a Bolívia, por todos os movimentos sociais. Foi isso que colocou o Evo na parede, obrigando-o a cancelar a obra momentaneamente. E certamente cancelará em definitivo, porque houve uma lição muito grande, uma vitória política enorme, que serve de exemplo e contamina positivamente as lutas do continente, mostrando que a luta direta contra o capital, contra os governos que o viabilizam, assessoram, sustentam, com suporte creditício e regulamentar, essa luta consegue vitórias. É nisso que apostamos há algum tempo.
Esse episódio também dá ânimo e fôlego aos povos indígenas do Peru, que atualmente se defrontam com projetos hidrelétricos absolutamente inaceitáveis ao país, aos povos atingidos e às regiões, no sentido de impedir desde já tudo aquilo que o governo boliviano fez desde o início: começou uma obra, fez a política do fato consumado, procurou isolar a população local e agora colhe os frutos da arrogância, da soberba, da falta de consideração à sua própria trajetória e história política.
Mediante as concessões de Evo na Bolívia, quais países teriam, a seu ver, condições de encampar uma saída via um rumo mais progressista? Acredita ainda no trio Bolívia, Venezuela e Equador, países que, a despeito de fortes contradições internas que carregam em suas sociedades, são corriqueiramente citados como os únicos que partiram para minimamente enfrentar o main stream?
Garzon - Acho que eles sustentam posições progressistas importantes, que foram fruto de anos de luta dos movimentos e populações desses países, diversos levantes e rebeliões. E se sustentam sobre a retórica de tais conquistas. De certa forma estão sentados sobre, digamos, esse tesouro social, a boa herança e patamar não desprezível de conquistas sociais.
Porém, não são capazes de reproduzir os talentos. Não são capazes de multiplicar e fertilizar essa herança com iniciativas ousadas, que abram novos caminhos de enfrentamento e atuação. Parece que esses governos procuram preservar as posições obtidas e, num momento de refluxo e recuo, fazem concessões gradativas para manter as posições anteriores.
Não abrem novos horizontes estratégicos de luta, quando teriam justamente de fortalecer as fronteiras não mercantilizadas, os povos não monopolizados, a pequena agricultura, as pequenas economias, populações tradicionais. Essas seriam as fronteiras do não-capital, dos espaços ainda não incorporados. E tais governos deveriam, o que foi toda a nossa aposta, fortalecer esse pólo de oposição social ao capital.
Porém, o que vemos é um processo conflituoso, no qual justamente esses grupos são os primeiros sacrificados. Em nome de que, de quais projetos? Estão sacrificando riquíssimas regiões, entregando-as de forma absolutamente incondicional às grandes empresas. Não vemos nenhum projeto estruturante que envolva as populações e povos de tais países.
O que podemos esperar é que, nas sucessões desses governos, consigamos manter o patamar de conquistas e avançar. Sem ignorar o papel que tiveram de contraponto, de demarcação do que foi a luta contra o neoliberalismo em nossos países. Espelham o fracasso dos governos neoliberais netamente assumidos, mas ao mesmo tempo não significaram um novo processo de criação de sujeitos políticos. Não houve a renovação dos sujeitos políticos e nem a criação de um novo horizonte estratégico.
Não basta só falar do socialismo do século 21, é preciso constituir uma dualidade de poderes e organização social e econômica em que tal horizonte se materialize. E a partir de episódios como os aqui tratados, vemos um afastamento desse horizonte.
Finalmente, a Bolívia é um país miserável, com precaríssima infra-estrutura econômica e social, do que advêm dificuldades até mesmo de locomoção interna para a população boliviana. Sob este ângulo, o que você responderia àqueles que advogam serem defensáveis algumas das obras de um projeto cuja intenção seria desenvolver minimamente as infra-estruturas básicas do país?
Garzon - A denúncia de superfaturamento dessa obra é de 415 milhões de dólares, o que dá US$ 1,3 milhão por quilômetro. Dessa forma, avaliamos que, se fosse feito um desvio do parque, sem esse superfaturamento, se gastaria pouco mais, mantendo-se a relação com os povos indígenas do local, algo mais valioso do que qualquer coisa.
Creio que o Evo esteja muito arrependido de não ter visto isso antes. É o descompasso entre a agenda desenvolvimentista do governo e a vida real das comunidades indígenas da Bolívia. E esse é o preço do descompasso: as rebeliões.
Se o governo não fizer uma moratória dos projetos, não suspendê-los e rediscuti-los um a um, teremos uma série de revoltas como essa. O que compromete a própria estabilidade do Evo, pois ele também está ali, antes de tudo, como aquele que consegue expressar a rebelião boliviana contida institucionalmente, digamos, uma rebelião involucrada, a revolução que fica ali discursivamente se afirmando em potência, mas não nos atos. Nos atos, estamos indo de concessão em concessão.
Até que ponto o governo Evo não depende de um mínimo de legitimidade das populações indígenas para que os investimentos tenham alguma segurança? Até para os investidores é complicado ter um governo fragilizado de tal forma diante de suas bases indígenas.
Mas a questão principal é: não se trata de não se fazer estrada ou qualquer obra de infra-estrutura (ferrovias são menos impactantes), mas de como se discutem tais alternativas, inclusive os modais e os locais, e de como se conduz o processo de implementação. Não houve no governo Evo algo que se esperaria de um governo “hermano” dos indígenas: o diálogo e participação das comunidades envolvidas.
A integração feita dessa forma acaba revelando de forma muito explícita os verdadeiros tomadores de decisão do país, e que passam por cima das comunidades indígenas, que em tese são a base desse governo. Assim, o governo fica suspenso por um fio, porque as empresas e o governo brasileiros não vão conseguir deter rebelião boliviana alguma, de forma que é preciso fazer uma recostura política.
E da parte do governo brasileiro, se é que se importa com integração, precisaria avançar na construção de instituições regionais de fato, representativas e democráticas, não só dos governos, mas também das regiões e dos povos, que temos de respeitar. Assim como a constituição boliviana respeita as autonomias indígenas, o que deveria estar sendo observado pelo governo Evo, o governo brasileiro deve respeitar a constituição boliviana, que preza e zela pelas autonomias territoriais indígenas.
Isso deveria significar que o Brasil só participa e financia obras em que tais critérios estejam muito bem observados: participação, salvaguardas ambientais, respeito às autonomias... Mas para isso, como disse, é preciso consolidar os espaços de integração e decisão regionais, no mínimo de forma bilateral. Se não temos instâncias às quais apelar no caso de controvérsia, é preciso, então, criar instâncias bilaterais. E elas não podem ser somente intergovernamentais.
Diante de toda a tradição brasileira e boliviana, com todas as questões e conhecimentos regionais, e sabemos muito bem da importância das mediações regionais e étnicas, as comunidades e povos locais devem ser considerados em qualquer processo decisório. Caso contrário, não será consistente, fidedigno. Não será negociação, contrato.
E se não é contrato, do ponto de vista da efetividade das relações sociais, sem isonomia, ninguém pode dizer que a população indígena está quebrando a lei, descumprindo regras. Está defendendo a sua legalidade, a sua institucionalidade, em grande parte inscrita na última constituição boliviana.
(Por Valéria Nader e Gabriel Brito, Correio da Cidadania, 18/10/2011)