No acampamento, a noite parece mais longa. A tensão pelas ameaças de ataques de homens armados a serviço dos fazendeiros torna o sono leve e entrecortado por pequenos sustos com os barulhos vindos da mata. O fogo só é aceso em caso de extrema necessidade. Os homens se revezam para fazer guarda. Os assobios entre os vigias que circulam pela mata são captados pelos ouvidos atentos das mulheres que ninam seus filhos e, quando sinalizam que a área está tranquila, chegam como um alento passageiro.
Luzes ou sons distantes na mata cumprem o papel de deixar claro que o grupo está cercado e na mira. Os latidos dos cachorros, qualquer barulho, estalido, deixam as mulheres em estado de alerta. “Se eles vierem, vão chegar atirando lá de baixo. Então corremos para dentro da mata com as crianças até cansar. E ficamos deitados em silêncio esperando o dia nascer. É assim que fazemos”, conta uma delas. “Eles não costumam entrar dentro da mata, porque sabem que lá temos mais força e têm receio”, explica.
Quando o pior ocorre, a comunidade sai da mata só no dia seguinte e, aos poucos, as pessoas se reencontram para conferir se não está faltando ninguém. Os que desaparecem quase nunca voltam.
Manter o clima de terror, como o que se descreve a partir dos depoimentos dos indígenas, faz parte da estratégia de quem quer tornar insuportáveis as vidas das dezenas de grupos guarani-kaiowá que, desde os anos 80, organizam ações para recuperar parte de suas terras tradicionalmente ocupadas, no sul do Mato Grosso do Sul.
O estado tem a segunda maior população indígena do país; só da etnia Guarani-Kaiowá são 45 mil pessoas, divididas em dezenas de pequenas áreas, totalizando aproximadamente 42 mil hectares. As que têm demarcação oficial desde o início do século XX estão superlotadas e assoladas pela violência e a miséria.
Em áreas indígenas como a de Dourados, os índices de assassinatos são semelhantes às de bairros violentos da periferia de São Paulo ou Rio. A situação de carência alimentar é mascarada pela distribuição massiva de cestas básicas, desde que a desnutrição das crianças do grupo se tornou um escândalo nacional, em 2005.
Atrasada desde os anos 90 graças às pressões políticas do poderoso agronegócio da região, a demarcação definitiva das terras indígenas na região está prestes a ser iniciada. Desde 2008, seis grupos de trabalho coordenados por antropólogos contratados pela Fundação Nacional do Índio (Funai) realizam estudos para definir quais exatamente as áreas que são reivindicadas pelos indígenas como de ocupação tradicional. É a partir desse trabalho que o Ministério da Justiça emitirá as portarias de demarcação.
Em 2009, conflitos causados pelas ocupações promovidas para acelerar o processo deixaram pelo menos três mortos, dois desaparecidos e cinco baleados, além diversos feridos por espancamento – sem falar nas vítimas de atropelamentos suspeitos.
Depois de certa calmaria em boa parte do ano passado, os conflitos voltaram. Pressionados pela falta de condições nas minúsculas terras já demarcadas, diversos grupos de indígenas estão ocupando áreas em fazendas da região onde suas famílias residiam até serem expulsas – em grande parte das vezes, entre as décadas de 60 e 80.
Essas áreas de ocupação antigas para onde os grupos tentam retornar são conhecidas como tekoha (em guarani, algo como “o lugar onde se pode viver do nosso próprio jeito”). Nos acampamentos, os indígenas tornam-se ainda mais vulneráveis.
Desde 8 de agosto, quando iniciou sua ocupação, o grupo que reivindica as áreas conhecidas como Pyelito Kue e Mbarakay, entre os municípios de Tacuru e Iguatemi, já foi atacado pelo menos quatro vezes por homens armados. Os ataques deixaram vários feridos graves, porque, apesar de utilizarem balas de borracha, os “pistoleiros”, como são chamados pelos indígenas, muitas vezes acertam idosos, mulheres e crianças. Barracos, roupas e documentos dos indígenas foram queimados pelos agressores.
Representantes da Polícia Federal, Ministério Público Federal e Funai já fizeram diversas visitas à região, inclusive orientando o os fazendeiros a recorrerem à Justiça, em vez de empregar a força para expulsar os indígenas. “Já teve vez que o pessoal da PF saiu de lá às cinco da tarde e meia hora depois os pistoleiros já estavam lá para atirar na gente. Eles não estão respeitando ninguém”, conta uma liderança do grupo que realiza a ocupação.
Em 2009, numa tentativa anterior de ocupar essa mesma área, um adolescente desapareceu depois de mais de 50 indígenas terem sido vendados e espancados. Alguns adultos e idosos têm sequelas até hoje.
Dois anos
No fim deste mês completam-se dois anos da ocupação da área conhecida como Ypo’i, em Paranhos. Na ocasião, em 2009, dois professores guarani foram mortos após ataque de homens armados. O corpo de Genivaldo Vera foi encontrado num córrego próximo ao local, dias depois, com marcas de espancamento. O corpo de Rolindo nunca foi encontrado e, até hoje, ninguém foi indiciado pelo crime.
De lá para cá, o grupo de Ypo’i conseguiu autorização provisória da Justiça para permanecer no local, à espera dos estudos da Funai. A trégua foi rompida no fim de setembro, quando Teodoro Ricarte, primo dos dois professores, foi morto a pauladas e facadas supostamente por um funcionário da fazenda Cabeça de Boi, uma das que incide sobre a área reivindicada pelos indígenas. Dois dias depois do crime, um grupo de indígenas que ia pescar foi ameaçado por disparos.
Paranhos fica numa das mais violentas regiões da fronteira com o Paraguai, próximo a áreas de plantio extensivo de maconha. É a mesma realidade do município de Coronel Sapucaia, onde se encontra outro acampamento, o de Kurusu Amba. Ali, de 2007 a 2009, foram assassinados quatro indígenas, e três crianças morreram por falta de atendimento médico. Hoje, por determinação judicial, as mais de 200 pessoas da comunidade aguardam na área pela identificação de suas terras.
Além dos ataques armados, também ameaçam os acampamentos a negligência e a incompreensão das autoridades. Desde maio, os cerca de 150 Kaiowá que organizaram o acampamento de Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante, decidiram deixar as margens da rodovia entre Campo-Grande e Dourados, onde estiveram desde agosto de 2009.
Nesse período, a falta de atendimento de saúde levou à morte duas crianças. Além disso, dois adultos foram atropelados e, depois do despejo, dois jovens, de 13 e 16 anos, se suicidaram.
Atualmente, os Kaiowá de Laranjeira Nhanderu enfrentam indefinição sobre o local onde poderão esperar pela conclusão do processo de identificação de suas terras. Eles são alvo de ação não só do proprietário da fazenda onde se encontram, mas também do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), órgão federal que entrou na Justiça para impedir os indígenas de ocupar pacificamente a beira da rodovia onde estavam.
“A vida num acampamento é muito difícil porque as comunidades não têm como produzir seu próprio sustento. Não é qualquer um que aguenta viver debaixo de uma lona”, conta Eliseu Lopes, uma das lideranças de Kurusu Amba. “A vida não é fácil, e ainda tem as ameaças de ataque. Mas é o único jeito: se organizar, fazer retomada e entrar na terra para pressionar.”
(Por Joana Moncau e Spensy Pimentel, CartaCapital, 19/10/2011)