Indígenas e trabalhadores que ajudaram a eleger Evo Morales em 2006 agora protestam contra o presidente para que o governo cumpra a Constituição e não ceda às pressões do desenvolvimentismo.
Na semana passada, o presidente boliviano, Evo Morales, meteu-se numa situação delicada. Sua popularidade, que já estava bastante comprometida (37%) desde que o governo tentou aumentar o preço da gasolina, em janeiro passado, caiu ainda mais. Porém, mais que meros números numa pesquisa de opinião, a nova encruzilhada política pode, num futuro não muito distante, inviabilizar sua administração e descredenciá-lo como legítimo representante dos anseios da populares no país.
A crise atual é eminentemente política, um choque de concepções divergentes sobre o desenvolvimento, e seu aspecto visível é a construção de uma rodovia. Em 2009, enquanto fazia campanha pela reeleição, Evo Morales recebeu o presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva em Villa Tunari, cidade localizada no Departamento de Cochabamba. Ali, anunciaram a construção de uma estrada de grande importância para a integração da Bolívia.
Ela ligaria a própria Villa Tunari, então colorida pela cúpula presidencial, a San Ignacio de Moxos, pouco mais de 300 quilômetros ao norte, no vizinho Departamento de Beni. Por que Lula estava lá? Porque o Brasil, através do BNDES, seria o financiador do projeto, orçado em 332 milhões de dólares.
Os acordos foram firmados e começaram os trabalhos de planejamento. As obras propriamente ditas teriam início pouco tempo depois. Com os tratores, porém, chegaram os protestos — e seu principal objetivo era barrar a construção do trecho 2 da rodovia, cujo traçado cruzaria a Terra Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure (Tipnis), localizado bem no meio do caminho entre Villa Tunari e San Ignacio de Moxos.
O local é habitado por cerca de 6 mil indígenas de basicamente três etnias: moxeño, yuracaré y chimán. Em algumas zonas, também está ocupado irregularmente por cocaleros, ou plantadores de coca, nicho social de onde Evo Morales nasceu para a política boliviana.
Há mais de um ano, os povos originários que vivem no Tipnis decidiram: não queremos a rodovia passando por nossas terras. “Rechaçamos contundente e inegociavelmente a construção da estrada Villa Tunari – San Ignacio de Moxos ou todo o traçado viário que afete nosso território, nossa casa grande”, diz a resolução do 29º Encontro Extraordinário de Corregedores do Tipnis, publicado no dia 18 de maio de 2010.
“A construção da rodovia apresenta demasiados riscos altamente perigosos para os territórios indígenas, o ecossistema, os departamentos e o país”, continua o documento.
São vários os argumentos da comunidade: riscos à sobrevivência de populações yuracarés, moxeñas e chimanes em isolamento voluntário; riscos ao meio ambiente local, cuja riqueza animal e vegetal ainda não foi completamente mapeada; chegada de novos cocaleros, empresas petrolíferas, madeireiras e do narcotráfico, “processo que já começou, com uma escassa capacidade do Estado em intervir e regulá-lo”; falta de informação detalhada sobre a construção da rodovia; e expansão de atividades extrativistas e agrícolas na Amazônia boliviana, com destaque para a mineração, soja e celulose.
Cochabamba e Beni são regiões isoladas entre si: não existem estradas ligando diretamente os dois departamentos. Atualmente, para ir de Villa Tunari a San Ignacio de Moxos em automóvel, por exemplo, é preciso dar voltas imensas, passando ou por La Paz ou por Santa Cruz de la Sierra. Isso faz com que o trajeto tenha mais de mil quilômetros: mais que o triplo da distância real entre as duas cidades.
Os indígenas do Tipnis reconhecem a necessidade de conectar fisicamente as províncias vizinhas. Acreditam que, mais próximos, os “irmãos” de Cochabamba e Beni poderão construir “outro tipo de relações sociais e produtivas”. Porém, defendem que a obra deve atender a “demandas internas” — e não à articulação destas regiões ao “capitalismo globalizado”.
Não esquecem que a rodovia faz parte do pacotão de obras previsto pela IIRSA, a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, cujos postulados, dizem os indígenas, “baseiam-se em planos de comércio e benefício para grandes empresas, contradizendo o mandato, proclamado pelo presidente Evo Morales, de incentivar e consumir a produção local”.
Ou seja, para os habitantes do Tipnis, o IIRSA diverge do capitalismo andino-amazônico, teorizado pelo vice-presidente boliviano, Álvaro García Linera, e assumido como modelo de desenvolvimento para o país com a vitória do Movimento ao Socialismo (MAS), em 2006.
As exigências dos yuracarés, moxeñas e chimanes não são apenas de natureza política ou discursiva. Todas as suas posições conceituais estão respaldadas pelas leis bolivianas e por acordos internacionais. Sua principal bandeira de lutas é a Constituição Política do Estado Plurinacional da Bolívia, aprovada em 2008.
O blogue do jornalista Ángel Careaga recentemente explicou como o presidente Evo Morales, em seu afã de construir a estrada, já passou por cima de 35 artigos da Carta Magna — que, vale lembrar, ele mesmo ajudou a escrever e aprovar.
A informação é facilmente verificável. As ilegalidades do governo ferem princípios constitucionais relativos aos direitos humanos, bom viver, descolonização, discriminação, democracia comunitária, controle social, meio ambiente, plurinacionalidade e direitos e autonomia indígenas.
Um dos artigos da Constituição ignorado pela administração evista é o de número 30, segundo o qual os povos indígenas devem ser consultados “cada vez que se prevejam medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los”. Outro, o artigo 2o, assegura o “domínio ancestral sobre seus territórios” e “sua livre determinação”, que consiste no direito à autonomia e ao autogoverno.
O artigo 14 diz que o “Estado garante a todas as pessoas e coletividades o livre exercício e gozo dos direitos estabelecidos nesta Constituição, nas leis e nos tratados internacionais.” Falando neles, os habitantes do Tipnis não se esquecem de mencionar que estão protegidos pela Convenção 169 da Organização Mundial do Trabalho (OIT) e pela Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas.
“Por isso é que me sinto fortalecido, hoje mais que nunca, e decidido a continuar essa luta em defesa das terras do Tipnis, das comunidades e da história cultural de nossos povos”, declarou Adolfo Moye, presidente da Subcentral Isoboro Sécure.
Muitos eleitores do partido do presidente se surpreenderam com a postura intransigente do governo e seus ouvidos surdos às queixas indígenas e ambientais. Isso porque a defesa da Pacha Mama (a “Mãe-Terra de mitologias andinas) tem sido elemento constante dos discursos públicos de Evo Morales dentro e fora da Bolívia.
Nunca é demais lembrar que, em 2010, o líder aymará articulou e organizou a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudanças Climáticas e os Direitos da Mãe Terra, em Cochabamba, justamente para contrapor a falação infrutífera da Conferência das Partes (CoP) das Nações Unidas sobre Mudança Climática, que acabara de viver um fiasco em Copenhague.
Entretanto, nem as barreiras jurídicas nem a incoerência gritante impediram que Evo Morales erguesse a voz para dizer à sociedade boliviana, mais de uma vez, que a estrada seria construída “queiram ou não queiram” — em claro desafio aos opositores do projeto, que não necessariamente são seus adversários eleitorais.
Foi então que os povos residentes no Tipnis resolveram marchar. A caminhada começou com aproximadamente 400 pessoas no dia 15 de agosto, na cidade de Trinidad, no Departamento de Beni. A uns 600 quilômetros de distância, La Paz era o destino final. O número de manifestantes foi aumentando conforme avançavam.
A perspectiva dos organizadores era entrar na capital com 5 mil pessoas para bater às portas do poder e exigir respeito à Constituição. O movimento indígena ganhou apoio nas principais cidades bolivianas, onde se organizaram protestos em solidariedade à marcha. Mais que a fauna e a flora espalhadas pelo 1,2 milhão de hectares do Tipnis, as demonstrações públicas queriam defender os ditames constitucionais tão duramente conquistados após anos de intensa mobilização social.
Um mês e dez dias depois, a coluna estava em Yucumo, na divisa com o Departamento de La Paz, onde fica a capital. Os indígenas já haviam cumprido metade do trajeto programado e contavam com cerca de 1.500 manifestantes. Foi quando a polícia agiu.
De acordo com as informações disponíveis, até 600 pessoas foram detidas pelas forças de segurança. Houve violência. Um vídeo mostra policiais perseguindo, espancando, atando as mãos e amordaçando um dos manifestantes antes de subi-lo imobilizado ao caminhão.
As notícias correram o país e constrangeram o governo. Quase que imediatamente após o incidente, a ministra de Defesa renunciou. Pouco tempo depois, seria a vez do ministro de Governo deixar o cargo. O titular das Comunicações, Iván Canelas, veio a público admitir que as prisões realmente haviam sido efetuadas, mas que os manifestantes detidos foram liberados em seguida. Também colocou em dúvida a notícia de que uma criança havia falecido durante os confrontos devido à inalação dos gases lacrimogêneos lançados pela polícia.
Finalmente, o presidente Evo Morales convocou uma cadeia nacional de televisão para anunciar a suspensão do trecho 2 da rodovia Villa Tunari – San Ignacio de Moxos por tempo indeterminado. “Fica suspenso o projeto de rodovia no Tipnis. E que o povo decida”, cedeu. “Lamentamos e repudiamos os excessos. Não compartilhamos o uso da violência contra os irmãos indígenas.”
Um dia depois, o chefe de Estado pediu desculpas pelo ocorrido e jurou de pés juntos que não havia sido ele quem ordenara a polícia a agir com tamanha truculência. “Aprendamos com nossos erros: que me desculpem, me perdoem”, afirmou, convocando ao diálogo que até então negara aos manifestantes.
O presidente argumentou, porém, que as forças de segurança não poderiam deixar a coluna indígena avançar devido ao risco de enfrentamento com apoiadores da construção da estrada, cocaleros em sua maioria, que haviam se organizado para bloquear a passagem dos manifestantes.
Há estimativas de que a quantidade de cocaleros vivendo e cultivando coca ilegalmente na área do Tipnis chega a 9 mil pessoas — número maior que os próprios indígenas do parque. “Se a marcha avançasse, o que poderia ter acontecido?”, questionou o presidente.
Antes de deixar o administração, o ministro de Governo, Sacha Llorenti, sustentou a tese. “O propósito era evitar enfrentamentos entre os habitantes de Yucumo e os manifestantes, com consequências imprevisíveis”, disse. “Um grupo de pessoas armadas com flechas acossaram os policiais. Procedemos de maneira a dispersar a marcha para garantir a integridade física dos manifestantes e retirar os colonos da estrada.”
A Central Operária Boliviana (COB), principal confederação sindical do país, convocou uma greve nacional de 24 horas para quarta-feira (28) em protesto à repressão aos moradores e defensores do Tipnis. “Acreditamos que o povo em seu conjunto está consternado pela brutal arremetida da polícia contra nossos irmãos indígenas”, explicou o dirigente dos trabalhadores da Saúde afiliados à COB, José González.
O sindicalista alega que a operação policial recordou o melhor estilo dos governos ditatoriais e neoliberais que anteriormente se instalaram no país — e contra os quais indígenas e sindicatos lutaram juntos. “Pisotearam-se os direitos constitucionais dos indígenas, não se respeitaram os direitos humanos das crianças e das mulheres”, agregou.
O chamado da COB foi atendido e paralisou parcialmente os principais centros urbanos do país, com destaque para Cochabamba, cidade com forte tradição contestatária. Organizações camponesas e a igreja, além de movimentos da sociedade civil e membros da cidadania, também lamentaram a violência e apoiaram as demonstrações de repúdio contra o governo. Nos protestos, podiam-se ler cartazes dizendo Nem Evo, nem coca: no Tipnis não se toca.
Neste momento, o ponto nevrálgico da discussão parece ser um só: de onde — e de quem — partiu a ordem para a repressão policial contra os indígenas? Evo Morales já negou repetidas vezes sua responsabilidade na ação. Sacha Llorenti disse que foi o vice-ministro de Governo, então seu subordinado, quem deu carta branca à polícia para atacar a coluna.
Os manifestantes asseguram que a ação foi planejada com antecedência, e se apoiam num documento que vazaram à imprensa com ordens expressas para a detenção de 350 a 400 manifestantes e seu translado de volta a Trinidad. Porém, não há qualquer assinatura no ofício.
O ex-major da polícia David Vargas assegura que uma repressão como a que se abateu sobre a marcha não poderia ter acontecido sem ordens expressas de superiores civis. “A polícia não atua de maneira voluntária e oficiosa, a polícia recebe ordens do ministério de Governo e do Palácio de Governo”, explica, sublinhando o mal-estar causado na corporação pela “manipulação política” do episódio.
Para descobrir o que exatamente aconteceu — e aliviar a pressão —, o governo decidiu formar uma comissão de inquérito independente, com a participação de observadores internacionais. O grupo terá representantes dos escritórios da ONU na Bolívia, da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) e da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), além de autoridades bolivianas e defensores dos direitos indígenas.
Para evitar maiores impasses e novos atos de violência, Evo Morales anunciou que só retomará as obras do trecho 2 da rodovia após a realização de um referendo popular em Beni e Cochabamba, departamentos mais diretamente atingidos pelo projeto. Os demais traçados — como já anunciou a empreiteira brasileira OAS, que conduz os trabalhos — seguem em construção.
Se a consulta pública for realizada e se o governo vencê-la, como tem acontecido ultimamente, Evo Morales pode acumular força política para seguir adiante com sua intenção de cruzar o Tipnis com asfalto. Nesse caso, outras questões surgirão.
Afinal, a vontade da maioria pode sobrepor e contrariar uma Constituição que também foi aprovada pela maioria? E as necessidades econômicas do Estado, podem? A democracia é simplesmente atender os desejos da maioria ou, dentro da opinião majoritária, respeitar aos legítimos anseios das minorias?
Enquanto se debate entre contradições, legislações e necessidades econômicas, Evo Morales assiste ao próprio partido dividir-se sob sua liderança. Senadores, embaixadores e ativistas populares vinculados ao MAS já criticaram publicamente as atitudes do presidente. Pelo menos dez parlamentares já ameaçaram abandonar a base governista na Assembleia Legislativa. Sem este apoio, o presidente perderia a maioria de dois terços que lhe permite aprovar leis com mais agilidade e facilidade.
Diante do apoio que receberam de vários setores da sociedade boliviana, os indígenas do Tipnis já retomaram a marcha a La Paz.
Os próximos capítulos prometem ser interessantes para o momento político da Bolívia — e angustiantes para o homem que, pese aos enormes avanços sociais e econômicos que liderou no país, parece haver chegado a uma das mais espinhosas encruzilhadas de sua gestão. Literalmente, o caminho que escolher pode definir não apenas sua reeleição (tem direito a mais uma) mas também o futuro de todo um projeto alternativo e supostamente popular para a Bolívia.
(Por Tadeu Breda, Outras Palavras, 02/10/2011)