Perto do rio Ganges, que corre por toda a cidade de Varanasi, no norte do estado de Uttar Pradesh, Janaki Devi é um exemplo típico das trabalhadoras pobres que movimentam uma das mais importantes indústrias da Índia.
Toda manhã ela se banha no rio que os hindus consideram o local mais sagrado do país. É o momento de tranquilidade do dia; logo depois ela assume uma rotina massacrante de oito horas, enchendo as folhas marrom-avermelhadas com 2 gramas de tabaco e depois amarrando-as. Se demorar 25 segundos para fazer cada bidi, no fim do dia terá enrolado pelo menos 1.000. Por essa produção, recebe 1 dólar por dia.
“Trabalho sem parar. Preciso do dinheiro para sustentar minha família”, diz Dev, os olhos focados na bandeja de junco em seu colo, onde trabalha. Ela tira 25 dólares por mês, o que é muito pouco mesmo na Índia, onde mais de metade da população vive com renda inferior a 2 dólares por dia.
Devi é uma das cerca de 6 milhões de mulheres que enrolam bidis na Índia; essa ocupação é a segunda no ranking entre as atividades que mais utilizam mão de obra intensiva no segundo maior mercado de tabaco do mundo – um país onde o vício em tabaco afeta aproximadamente um quarto da população. As mulheres constituem quase 75% da força de trabalho da indústria do bidi, que produz entre 750 bilhões e 1,2 trilhão de cigarros por ano.
O bidi, que parece um cigarrinho de maconha, traz grandes riscos para a saúde de quem o fuma e o enrola. Contém mais nicotina e alcatrão do que os cigarros convencionais.
Mas a indústria do bidi mantém sua influência política, apoiada em receitas de até 20 bilhões de dólares, em uma estimativa conservadora. Na verdade, na luta global contra o consumo de tabaco – a principal causa mundial de morte evitável – a Índia tem sido um caso perdido para os que lutam pela saúde pública. A influência política da indústria do bidi e a força de seu marketing são os principais motivos para isso.
Uma investigação feita pela International Consortium of Investigative Journalists (ICIJ) descobriu que a indústria do bidi, blindada por poderosas conexões políticas, tem sido o principal obstáculo às intenções dos ativistas da saúde e dos críticos dentro do governo indiano que querem estabelecer regras mais rígidas e impostos maiores para a indústria do tabaco. Ainda mais constrangedor: executivos de algumas das principais fábricas de bidis trabalham dentro do governo.
Por esse motivo, as campanhas de saúde pública ainda não deslancharam na Índia; os impostos sobre o bidi são baixos e as regras que controlam o mercado, frouxas.
“O bidi é a forma mais barata de intoxicação e, no entanto, ninguém quer regulamentar os produtores na Índia”, diz Amit Sarkar, um experiente especialista em tabaco. “Enquanto os lobistas tiverem dinheiro para alimentar os cofres dos políticos, o mercado de bidi continuará crescendo”.
“Os empresários não cumprem as exigências da regulamentação alegando dificuldade em aplicar as leis em uma indústria caseira. O setor tem sido muito eficaz em fornecer um produto altamente viciante por um preço acessível”, diz Sarkar.
Os fabricantes de bidi continuam ignorando as evidências de que seu produto causa todo tipo de doença, de asma a tuberculose. Preferem argumentar que prestam um serviço ao país por empregarem um grande número de mulheres indianas.
Paraíso da Fumaça
“Nosso negócio é legítimo e serve aos pobres do país”, diz Shravan Patel, ex-membro do parlamento pelo Partido do Congresso. Ele é dono da companhia Tiger Brand no estado de Madhya Pradesh, no centro da Índia, com faturamento anual em torno de 90 milhões, o que representa cerca de 25% da produção nacional.
Há cerca de 100 milhões de fumantes de bidi na Índia, um número ainda mais assustador quando combinado com outra estatística: 12% dos adolescentes indianos de 13 a 15 anos já experimentaram o tabaco pelo menos uma vez.
O consumo de bidi supera o do cigarro tradicional em uma proporção de 8 para 1. O preço é um dos principais motivos para isso – um maço de 25 bidis custa apenas 10 centavos de dólar, comparado a US$1,50 do maço de cigarros comuns.
Mas os fabricantes de bidi detectam ameaças no horizonte.
Hoje eles tentam deter não apenas os defensores do controle de tabaco indiano, mas também a indústria multinacional de cigarros convencionais que ganha espaço entre os jovens e a classe média.
Como os bidis são vistos como “produtos de pobre”, os cigarros comuns estão na moda entre os indianos que buscam um status social mais elevado, diz Shoba John, militante anti-tabaco na Índia da organização global Framework Alliance on Tobacco Control.
“Os fabricantes de bidis estão usando as táticas da velha indústria de tabaco para defender seu mercado, tais como contratar advogados para fazer lobby junto aos políticos”, conta John.
Na última década, os fabricantes de bidis também aumentaram suas exportações para a Europa e os Estados Unidos. John diz que a estratégia de marketing no exterior utiliza uma falsa imagem para atrair os jovens descolados. Através da internet, os exportadores os apresentam como produtos naturais, mais naturais e menos perigosos do que os cigarros convencionais.
Em 2009, de acordo com os centros de controle de enfermidades dos Estados Unidos, quase 3% dos adolescentes do Ensino Médio do país experimentaram bidis. O suficiente para que um dos principais fabricantes do produto se gabasse em seu site: “o bidi é cada vez mais popular nos Estados Unidos e na Europa”. Esses mercados têm importância crescente para a empresa, que faz 20 bilhões de bidis por ano e emprega 150 mil pessoas na Índia.
“Nos Estados Unidos e Reino Unido, você encontra bidis com sabor, feitos para os jovens. Aqui na Índia não existe esse tipo de produto”, diz John.
Apoiada em suas conexões políticas e na imagem de um produto popular tradicional, a indústria do bidi goza de um status especial na sociedade. E recebe do governo um dos melhores incentivos fiscais do mundo.
“Se o sistema de impostos se mantiver, o bidiserá uma indústria de 50 bilhões de dólares em uma década”, diz Deepak Talwar, um dos lobista da indústria de bidis mais proeminentes lobistas da indústria convencional de cigarros na Índia. Ele também é homem de confiança do maior fabricante de bidis, Praful Patel. Em uma entrevista concedida ao ICIJ, Talwar qualifica o bidi como um elemento permanente da vida e dos políticos da Índia.
Encorajado pelos baixos impostos e apoiado em figuras políticas influentes como Talwar, o negócio dos bidis olha com desdém para os problemas de saúde pública que acarreta.
Há cerca de 300 grandes fábricas de bidi na Índia – e milhares de pequenas manufaturas – e metade de seus empregados morre de tuberculose ou asma, de acordo com os ativistas de saúde pública na Índia.
A tuberculose e a bronquite asmática entre os enroladores de bidi – principalmente por causa da poeira que inalam – é mais alta do que entre a população em geral, de acordo com o Factory Advisory Services and Labour Institute, sediado em Mumbai, e vinculado ao Ministério do Trabalho.
Quase um milhão de mortes relacionadas ao uso de tabaco são registradas anualmente na Índia; 600 mil delas ligadas ao bidi, de acordo com estudos da Organização Mundial de Saúde e da Voluntary Health Association da Índia.
O principal canal de distribuição dos bidis são as 10 milhões de lojinhas populares onde as marcas adotam nomes apelativos e imagens de deuses hindus como Ganesh (o deus-elefante) e Karim – que significa “bom coração” na fé islâmica.
O rei do bidi
Hoje o bidi reina na Índia principalmente porque o rei do bidi é Praful Patel. Sua família é proprietária de Ceejay Group, a maior fabricante da Índia, com faturamento de 5 bilhões de dólares, no estado de Maharashtra. A companhia também tem negócios nos setores farmacêutico e financeiro e emprega cerca de 60 mil pessoas. Patel também é ministro da Indústria e goza da reputação de ser um dos políticos mais influentes do país.
Sendo um dos ministros mais ricos do governo, Patel é conhecido como político carismático e elegante. Os jornais costumam mostrá-lo junto a celebridades, conversando sobre cricket, Bolywood e aviação. Patel se recusou a falar sobre o negócio de bidis com o ICIJ.
Apesar de seu poder político e financeiro, Patel foi investigado por fraude e condenado em maio pelo Controlador e Auditor Geral da Índia, que fiscaliza o orçamento, por causar prejuízo a Air India quando era ministro da aviação civil.
Patel é membro do Partido do Congresso Nacional indiano, cujo principal líder, Sharad Pawar, ocupa o cargo de ministro da Agricultura. No ano passado, reportagens publicadas trouxeram denúncias bem fundamentadas de que ambos estavam envolvidos em negócios financeiros suspeitos da Indian Premier League, a mais cara liga de cricket do mundo.
Um político previu que Patel sobreviveria, com sua força política intacta.
“Ele é poderoso e os legisladores de seu estado natal, Maharashtra, fazem vistas grossas a qualquer acusação contra ele”, disse um legislador federal próximo a Patel que insistiu no anonimato por temer represálias políticas. “Ele é o mentor, benfeitor e líder de todos eles”.
A ligação com Deepak Talwar, o lobista de tabaco que representou a British American Tobacco e a Japan Tobacco International, também ajudou Pate a se tornar um grande ator das lojas “duty free” (sem impostos), com a lucrativa rede Delhi Duty Free stores. “Conheço bem Patel e fiz negócios legítimos com ele”, disse Talwar a ICIJ.
Gigante invisível
Apesar de ser dono de uma grande companhia, o Ceejay Group está cadastrado no governo como uma das pequenas e médias empresas que recebem subsídios federais.
A companhia fornece poucos detalhes sobre suas operações, mas analistas do mercado dizem que o Ceejay Group emprega cerca de 50 mil mulheres em oito estados.
No papel, há apenas 19 fábricas de bidi registradas no governo de Maharashtra mas, segundo analistas, há mais de 60 empresas do setor no estado, produzindo 5 milhões de bidis por dia.
Em um pacote que custa 4,45 dólares, os fabricantes pagam menos de 2 centavos de impostos, diz o enrolador de bidis Balbhadra Nayak, que trabalha para uma empresa sediada em Sambalpur, no leste da Índia.
Em uma entrevista, Raghu Mohanty, secretário da Indústria no estado de Orissa, disse que é difícil controlar os fabricantes de bidi que sempre declaram uma produção menor para evadir impostos, custos e encargos trabalhistas. “É um trabalho de Hércules, o estado sozinho não tem poder para fiscalizar, diz Mohanty.
A evasão de impostos é uma prática comum na Índia, onde apenas 35 milhões dos mais de 1 bilhão de habitantes pagam impostos – o que corresponde a 3% da população. Mas, para os fabricantes de bidi, os baixos impostos fazem parte da estrutura fiscal.
“A indústria do bidi é protegida pelo governo que oferece incentivos fiscais para os que produzem menos de 5 milhões de bidis por ano, diz Udayan Lall do Tobacco Institute of India, em Nova Déli. As taxas de impostos do tabaco no país estão entre as mais baixas da Ásia, que já são menores do que no resto do mundo.
A coalizão cigarros/bidis
Os impostos também aproximam os rivais comerciais. Cada vez que o Parlamento indiano fala em aumentar os impostos para os bidis, os políticos vociferam protestos, dizendo que isso seria fazer uma campanha contra os pobres.
Os registros do Parlamento indiano mostram que o governo entra com pedidos de revisão de impostos ao menos uma vez por ano, habitualmente no fim de fevereiro, quando o orçamento federal está para ser executado e o lobby por interesses especiais começa.
É quando as companhias de bidi se associam à indústria do cigarro – como a turma liderada pela Indian Tobacco Company, para o lobby contra regulamentações do tabaco.
Revelações feitas pelo Ministério da Saúde e Bem Estar Familiar, por força da recente lei de acesso a informações federais, mostraram como o ministro da Saúde Nabi Azada adiou a implementação das leis que exigem que os maços de cigarro contenham ilustrações de alerta sobre os riscos à saúde, como em outros países. Hoje em dia, os maços de bidis e cigarros contêm apenas as palavras: “O fumo mata”.
Estudos mundiais mostram a efetividade do uso das ilustrações na redução do hábito de fumar. Mas legisladores e ministros indianos tem se unido ao lobby contra a adoção dessa regra tanto para os cigarros como para os bidis.
A mudança nas mensagens que vão nos maços deveriam ter sido feitas até 5 de março deste ano, mas o processo tem sido sucessivamente adiado com a interferência do próprio ministro da saúde.
Em outubro de 2010, foi lançado a Global Adult Tobacco Survey (Pesquisa Mundial sobre o Tabaco Adulto) que mostra que, apesar da proibição do fumo em lugares públicos, cerca de um terço dos indianos está exposto ao fumo indireto fora de casa. A maior parte da fumaça vem dos bidis, conclui o estudo.
Essa evidência não foi suficiente para convencer os fabricantes do bidi dos custos que o produto traz para a sociedade indiana.
Mais uma vez Praful Patel, o chefe do bidi em Maharashtra, voltou a defender a indústria do bidi como a melhor opção de trabalho para as mulheres. “Se elas não fizessem isso, que outro emprego essas mulheres conseguiriam? É como fazer tricô, um trabalho delicado, agradável” disse Patel ao Wall Street Journal em 1999.
Os movimentos trabalhistas acusam as fábricas de bidi de manterem os salários baixos deliberadamente, ignorando a exploração. Quase 50% das mulheres trabalham dentro de casa, onde é difícil fiscalizar as condições de trabalho e se há crianças envolvidas.
“A situação continua a mesma”, disse à ICIJ R.K Ratnakar, secretário-geral da federação dos trabalhadores de bidi, charutos e cigarros. “Os trabalhadores estão em uma situação tão frágil por causa desses patéticos salários que não têm condições de discutir”.
Os números são uma coisa. O impacto humano da indústria de bidi é outra.
Em uma noite dessas, enquanto a escuridão caía sobre as margens do Ganges, e centenas de pessoas faziam suas oferendas, Sunita, uma enroladora de bidi de 53 anos, continuava a trabalhar com o auxílio de um lampião de querosene.
“Não posso me dar ao luxo de tirar folga. Há bocas para alimentar e essa a única maneira que tenho de ganhar dinheiro. Estamos acostumados com isso, o que mais posso fazer”?, diz, tossindo alto enquanto enrola os cigarros observada por três crianças pequenas.
Sunita não havia se livrado do trabalho nem depois de sua rotina de 8 horas na bandeja de junco.
(Por Murali Krishnan e Shantunu Guha Ray, Center for Public Integrity / A Pública, 14/09/2011)
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