Estimuladas por incentivos do governo e atraídas pela nascente classe média consumidora, as indústrias processadoras de matérias-primas ampliam rapidamente sua presença em áreas rurais nos arredores de grandes metrópoles como Pequim, a portuária Tianjin e a histórica Xian.
São essas empresas que têm tentado estabelecer relações diretas com produtores rurais brasileiros. Querem baratear custos, driblando grandes tradings americanas e europeias que dominam as vendas de soja e carnes. E os brasileiros buscam investidores para financiar melhorias na infraestrutura e na logística de escoamento da produção.
Maior agroindústria privada da China, a Hopefull Group fatura US$ 2,4 bilhões com esmagamento de soja, transporte marítimo, logística, trading e produtos industriais. Em plena expansão de seu parque fabril, em Yanjiao, a 25 km de Pequim, a Hopefull está ampliando, dos atuais 3 milhões para 8 milhões de toneladas por ano, sua capacidade de processamento de soja.
A empresa, que detém 60% do mercado de óleo comestível de Pequim, importa 1 milhão de toneladas do grão - metade de Mato Grosso. E vai dobrar a aposta para decuplicar a produção de lecitina de soja, para 20 toneladas por dia.
"Estamos prontos para aprofundar parcerias. Não somos apenas soja, somos tecnologia biológica para proteínas e fármacos", afirmou o presidente do conselho de administração, Shi Kerong, a uma comitiva de produtores brasileiros em visita à China. A Hopefull começou a investir no Brasil pelo porto de São Francisco (SC) e avalia parcerias em armazéns e logística em Mato Grosso. "Temos grandes projetos e o Brasil tem natureza maravilhosa, além de sua posição estratégica".
Fundada há oito anos, a ShiYang Group, cuja sede está em Yanling, a 80 km de Xian (região oeste), dobrou as operações de sua indústria frigorífica desde 2007 no sistema de integração, onde estão 10 mil produtores de suínos, aves e peixes. Em 2010, faturou US$ 630 milhões em 40 unidades de esmagamento de soja, óleo e ração animal.
A ShiYang processa 400 mil toneladas de soja por ano e busca, no Brasil, grãos com maior teor de proteína para alimentar os rebanhos do oeste da China. Com meta de atingir US$ 1 bilhão de receita em 2014, planeja abrir capital na bolsa de Xangai antes disso. Até lá, agregará seis novas unidades de abate de aves e suínos. As atuais duas plantas processam 200 mil aves diárias, metade do abate da brasileira BRF em Rio Verde (GO).
"Temos muita preocupação com a segurança dos alimentos. E a soja brasileira tem a alta qualidade que procuramos", disse o gerente de qualidade Jia Wuli aos brasileiros. A poucos metros dali, a agroindústria Yanling Besun Group obteve financiamento do Banco Mundial para construir mais cinco unidades frigoríficas às atuais duas plantas de suínos, cujo abate soma 500 mil cabeças por ano. O grupo fatura US$ 20 milhões, mas prepara o lançamento de novos produtos para quintuplicar a receita em três anos.
Especialistas do setor de alimentos afirmam que a China está comendo mais e cada vez melhor. Palco do maior movimento migratório global em direção às cidades, o país elevará as importações de produtos derivados da soja brasileira e será um dos mais ativos compradores de carnes nacionais na próxima década.
O cenário aponta um amplo espaço para crescimento, mas o Brasil ainda não aproveita totalmente essa janela de oportunidade. Apenas oito frigoríficos de carne bovina, três de suínos e 25 de aves estão habilitados a vender aos chineses. "Há algumas janelas de oportunidades que precisamos aproveitar", alertou o adido agrícola da embaixada brasileira em Pequim, Esequiel Liuson.
A onda de migração interna no gigante asiático, estimada em até 400 milhões de pessoas ao fim de 2022, tem elevado o padrão de consumo chinês. A renda média urbana já equivale a seis vezes os ganhos na área rural. A demanda por proteína animal deu um salto significativo.
O consumo médio per capita de carnes nas cidades já chega a 40 quilos por ano. No campo, ainda soma 26 quilos/ano. Na última década, a fatia da carne bovina na dieta local passou de 3,5% para 6% do total consumido no país. A participação da carne de suíno recuou de 95% para 65%.
Mas alguns exportadores nacionais já veem a possibilidade de faturar ainda mais com o duradouro apetite chinês por alimentos. E costuram acordos com tradings locais e o governo chinês para garantir parte dessas vendas. Há duas semanas, a associação dos produtores de soja de Mato Grosso (Aprosoja) assinou um memorando de entendimento com o governo chinês e as principais tradings estatais, como Jiusan, Cofco e Chinatex, para avançar no desenho dessas parcerias.
"É um grupo que compra 95% da soja brasileira. Queremos um arranjo para logística e porto em troca da segurança no fornecimento da soja", afirmou o presidente da Aprosoja, Glauber Silveira. Ele voltará a Pequim em meados de setembro para assinar um protocolo de cooperação com os chineses. "Eles querem comprar mais barato, de forma direta, e nós queremos logística".
Para ilustrar o drama brasileiro, Silveira usa o exemplo visto na ShiYang. A empresa paga US$ 34 de frete ferroviário para levar uma tonelada de soja do porto de Tianjin, a 1,4 mil km de distância de sua sede. Em Mato Grosso, custa US$ 100 apenas até o porto de Santos. "E olha que eles compram a soja em saca. Se mudarem para o granel, esse custo cai para US$ 10".
Na soja, o cenário é bastante otimista. A importação deve crescer 3 milhões de toneladas ao ano na próxima década. E metade disso será abastecida pelo Brasil. A colheita chinesa do grão recuou de 17 milhões para 14 milhões de toneladas desde 2005. O consumo de farelo para ração animal tem aumentado de forma substancial em razão da produção de carnes de melhor qualidade. No óleo, também há demanda adicional pela rápida urbanização.
A capacidade ociosa de esmagamento de soja na China é gigantesca, somando quase 30 milhões de toneladas. Neste ano, as importações ficarão acima de 53 milhões de toneladas.
"Temos 300 milhões de consumidores nas cidades que têm renda para aumentar o consumo", disse o presidente-executivo da Hopefull, o engenheiro Tom Lin Tan. A demanda por carne crescerá no longo prazo e elevará a procura por soja. "No campo, só se come carne duas ou três vezes por mês. Quem comeu carne quer continuar. Por isso, vamos importar cada vez mais do Brasil".
O cenário para o milho prevê a elevação de 5% no consumo interno, enquanto a produção deve crescer apenas 3% na próxima década. Mesmo com a decisão do governo chinês de produzir mais internamente, e apesar da cota de importação de 5% sobre a meta de colheita, as compras chinesas tendem a aumentar. Em 2012, essas compras devem ultrapassar 4 milhões de toneladas. "Chegaremos a 180 milhões de toneladas, mas isso será insuficiente para a demanda interna", avaliou Lin Tan.
(Por Mauro Zanatta, Valor Econômico, 01/09/2011)