Sociedade civil e Ministério Público temem que uso de Medida Provisória pelo governo para mudar os limites de UCs abra caminho para novas reduções e questionam avaliação sobre a importância de terras desafetadas. Bancada ruralista prepara mobilização para restringir criação de áreas protegidas
O governo federal deu mais um sinal de que sua política de conservação não apenas está estagnada, mas corre o risco de retroceder. Na segunda-feira (15/8), a presidenta Dilma Rousseff colocou um sinal de interrogação sobre a estabilidade do Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) ao redefinir os limites de três UCs por meio de uma Medida Provisória (MP), que precisa ser votada pelo Congresso em apenas quatro meses para tornar-se lei.
Ambientalistas, Ministério Público e técnicos do próprio governo avaliam que o precedente é perigoso porque abre caminho para banalizar a redução de áreas protegidas frente às pressões de grupos econômicos. Questionam ainda a avaliação da importância ambiental e biológica das terras desafetadas, mesmo que elas sejam pequenas em relação à área total das UCs atingidas.
Segundo informações do ISA, o Parque Nacional (Parna) da Amazônia (AM/PA), de 1,1 milhão ha, foi reduzido em 25 mil ha; o Parna do Mapinguari (AM/RO), com 1,7 milhão de ha, diminuiu 8,4 mil ha; e o Parna dos Campos Amazônicos (AM/RO/MT), com 873 mil ha, foi ampliado em 87 mil ha. A MP também autorizou a mineração na zona de amortecimento em torno das duas últimas UCs, respeitado o que for definido no licenciamento da atividade e nos planos de manejo das unidades.
“Nos três casos, ganhou o setor elétrico, ganharam os produtores rurais, que estavam com suas áreas sobrepostas a uma unidade, e ganhou a conservação, que teve sua área ampliada, ao mesmo tempo em que sua gestão foi simplificada a partir da redução de conflitos”, defende o presidente do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade), Rômulo Mello.
Ele reafirmou que negocia no governo a criação de uma grande UC de proteção integral na região de Maués, no oeste do Amazonas, como compensação.
“Minha percepção é de que [a MP] é inconstitucional”, afirmou à Folha de S. Paulo a ex-ministra do Meio Ambiente Marina Silva. Ela chamou de “retrocesso” a medida.
Novas supressões de áreas estão previstas. Em maio, a reportagem do ISA antecipou que trechos de UCs serão desafetados para a construção de hidrelétricas na Bacia do Rio Tapajós, no sudoeste do Pará. Há sete usinas previstas para a região. Podem ser afetadas oito UCs e uma Terra Indígena (TI). O Parna da Amazônia deve perder pelo menos mais 15 mil hectares (Saiba mais).
Entre 2003 e 2006, a área total de UCs criadas pelo governo federal saltou de 53 mil ha para 11 milhões ha por ano. Depois disso, no entanto, o número caiu para 187 mil ha, em 2010.
Parna da Amazônia
A MP determinou que a área desafetada do Parna da Amazônia seja destinada a projetos de assentamento sustentável. Trata-se de um caldeirão de conflitos fundiários. Há mais de vinte anos, foi implantado um assentamento convencional, com incentivo do governo. Grileiros, fazendeiros e políticos foram adquirindo terras e expulsando os pequenos agricultores para a zona limítrofe ou o interior da UC.
No total, existem hoje cerca de 500 famílias na área. Mesmo com a mudança no traçado do Parna, cerca de 70 permanecem em seu interior. (Veja o mapa)
"Tiramos de dentro do parque as áreas com ocupação agrícola. Com isso, reduzimos as dificuldades para sua implantação", argumenta Rômulo Mello. Ele diz que a medida apenas sacramenta um acordo feito com os ocupantes em 2006.
O acerto foi feito pelo Ministério do Meio Ambiente (MMA) quando o mosaico de UCs da zona de influência da rodovia BR-163 (Cuiabá-Santarém) foi oficializado e o Parna foi ampliado em 100 mil hectares. Também foi ajustado que os invasores não fariam novos desmatamentos, o que não foi cumprido.
A região desafetada concentra a maioria dos desmates realizados no Parna e sua recuperação é considerada duvidosa (veja imagens da evolução do desmatamento). A redefinição de fronteiras também vai facilitar sua demarcação e sinalização porque agora elas serão indicadas pelo limite de rios.
O problema é que existiriam alternativas à mudança efetivada agora. Técnicos do ICMBio afirmam que fora da UC há terras suficientes para os agricultores familiares, legítimos beneficiários da reforma agrária, se grileiros e fazendeiros invasores forem retirados. Além disso, algumas grandes áreas griladas já desmatadas, com solo mais adequado e mais próximas às cidades e rodovias da região, têm processos de desapropriação encaminhados.
“A questão é como a população vê isso. O governo deixa de desapropriar grandes fazendas e prefere desafetar uma UC. O erro foi feito no acordo de 2006. Isso abre o precedente para que as pessoas pensem que ao invadir uma UC vão acabar ganhando a área”, aponta uma fonte do ICMBio que prefere não se identificar.
De acordo com pesquisadores e ambientalistas que conhecem a região, uma coisa é certa: as fronteiras do Parna continuarão ameaçadas pelo desmatamento se a situação fundiária local não for resolvida, com a implantação efetiva dos assentamentos, o fim da concentração de terras e da grilagem.
Estudos técnicos
O procurador federal no Pará Felício Pontes considera ilegal reduzir uma UC por meio de MP. “O ato da presidente é extremamente perigoso por que pode abrir um precedente de ilegalidade para redução de todas as UCs da Amazônia”, avalia. Ele informa que procuradores federais dos estados onde estão os três Parnas devem acionar a Justiça para tentar rever a medida. Nesta semana, eles devem se reunir para discutir qual estratégia adotar.
Organizações ambientalistas, o PV e até a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) também estudam propor alguma ação.
Pontes discorda do argumento do governo de que não há perda líquida de área protegida por causa de compensações feitas no passado e outras que virão no futuro . “Nenhuma área é criada por livre e espontânea vontade de um técnico do governo. Ela só é criada ou ampliada a partir de estudos extremamente profundos que o justifiquem. Para que haja redução a mesma coisa é necessária. Isso não ocorreu no caso do Parna da Amazônia”.
O procurador diz que conhece bem a região e que, mesmo que existam estudos do ICMBio, eles não conseguirão justificar a redefinição de fronteiras.
“A Lei do SNUC prevê que a alteração dos limites de uma UC seja fundamentada em estudos técnicos. As três propostas tiveram estudos e discussões intensas dentro e fora do ICMBio”, rebate Rômulo Mello.
“Como a ministra [do Meio Ambiente, Izabella Teixeira] fala regularmente, este país não vai abrir mão de seu desenvolvimento. Estamos num processo de negociação para qualificar esse desenvolvimento, para que ele aconteça da melhor forma possível do ponto de vista ambiental e da conservação da biodiversidade, tendo em vista que precisamos gerar energia. Estamos buscando a conciliação de interesses.”
O Parna do Mapinguari (veja o mapa) foi reduzido para que ficassem de fora de seus limites áreas que serão afetadas pelo canteiro de obras e pelas barragens das hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio. De acordo com a MP, essas áreas têm pouco mais de sete mil hectares (elas não estão indicadas no mapa pela ausência de dados cartográficos apropriados).
De acordo com Rômulo Mello, esses trechos de terras foram incluídos na UC na última alteração de seu polígono por um erro técnico. No ano passado, o Parna havia sido ampliado em quase 190 mil ha como resultado de uma série de trocas e redefinições de limites de UCs realizadas pelos governos federal e de Rondônia (Leia mais). A MP assinada na segunda-feira reduziu essa ampliação.
No caso do Parna dos Campos Amazônicos (veja o mapa), a alteração de fronteiras contempla a demanda pela regularização fundiária de posses de produtores rurais e exclui as áreas de alagamento do lago artificial a ser formado pela hidrelétrica de Tabajara. Segundo a exposição de motivos da MP, juntas, essas áreas abrangem cerca de 34 mil ha.
A medida permite ainda dentro dos limites do Parque, com autorização do órgão gestor da unidade, a realização de estudos de viabilidade da usina. De acordo com Mello, essas áreas ficaram dentro da UC também por causa de informações técnicas errôneas quando de sua criação, em 2006.
Enquanto isso no Congresso
Enquanto isso, a bancada ruralista promete uma grande mobilização para aprovar propostas que deem ao Congresso o poder de avaliar a criação de TIs, UCs e territórios quilombolas, o que deverá restringir a oficialização dessas áreas.
“Vamos fazer com esse assunto o mesmo que fizemos com o Código Florestal, levar essa discussão para todo o País para saber se a sociedade brasileira deseja tantas TIs e UCs”, informa o deputado Moreira Mendes (PPS-RO), presidente da bancada ruralista no Congresso. A ideia é realizar audiências públicas em várias regiões.
“Está havendo uma criação indiscriminada de UCs, de Terras Indígenas e territórios quilombolas no Brasil. Isso tomou uma proporção que daqui a pouco vamos ficar sem terra para mais nada”, critica o parlamentar.
Ele diz que não é contra a criação de áreas protegidas, mas acredita que seus processos de criação estão ferindo a Constituição. Mendes sustenta que esses processos levam em consideração a opinião de um “único antropólogo” e suas audiências públicas são muito rápidas. “Uma hidrelétrica demora mais de dez anos para conseguir uma licença ambiental enquanto uma TI às vezes é criada em seis meses”, afirma.
“A iniciativa do governo abre brechas na lei do SNUC que podem comprometer os objetivos de conservação das áreas protegidas e gerar precedentes perigosos em um quadro de descompromisso com a questão ambiental para o qual o Congresso tem sinalizado”, contesta Adriana Ramos, secretária executiva adjunta do ISA.
“De acordo com o Decreto 1.775/1996, o grupo de trabalho responsável por estudar a criação de uma TI é coordenado por um antropólogo, mas interdisciplinar, sendo formado por vários profissionais diferentes. Além disso, quando esse grupo publica seu relatório, há um prazo razoável para todos os interessados contestarem os resultados, incluindo municípios e estados”, acrescenta. Ela lembra que os processos de homologação de TIs têm demorado anos, motivo de transtornos para as comunidades indígenas.
Hidrelétricas e UCs na Amazônia
De acordo com o Plano Nacional de Energia 2030, pelo menos 13% do aproveitamento do potencial hidrelétrico (sobre o total de energia a ser gerada) da bacia amazônica e das sub-bacias do Araguaia e Tocantins – de mais de 88 mil MW – trará algum tipo de impacto sobre UCs, em especial para os Parnas.
Segundo dados da Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica), estão operando hoje na Amazônia Legal 18 usinas hidrelétricas e 74 pequenas centrais hidrelétricas (PCHs). Existem sete usinas e 47 PCHs em construção e 59 usinas e 147 PCHs planejadas. PCHs são usinas com até 30 MW de potência instalada.
A Lei nº 9.985 de 2000, que criou o SNUC, proíbe a construção de usinas em UCs de proteção integral, como é o caso dos Parnas, e mesmo fora de seus limites, caso seus ecossistemas sejam ameaçados.
No caso das UCs de uso sustentável, o aproveitamento hidrelétrico é permitido nas APAs (Áreas de Proteção Ambiental), mas há dúvidas sobre essa possibilidade em outras categorias de UCs, como as Florestas Nacionais. A lei afirma que “uso sustentável” é a “exploração do ambiente de maneira a garantir a perenidade dos recursos naturais e dos processos ecológicos”, que são colocados em risco pelas barragens.
Apesar disso, em abril de 2010, o governo federal editou o Decreto nº 7.154, que regulamentou a instalação de linhas de transmissão e os estudos sobre aproveitamento hidrelétrico em alguns tipos de UCs. Na prática, a norma abre caminho para a exploração energética dessas áreas.
(Por Oswaldo Braga de Souza, ISA, 23/08/2011)