O Senado tem como desafio construir um novo Código Florestal que apresente o Brasil como um país capaz de conciliar seu potencial agrícola com a conservação de seu patrimônio natural. Essa visão, repetida por parlamentares de diversas correntes nos debates sobre o projeto de reforma do código (PLC 30/2011), começa a ganhar contornos mais definidos quanto a mudanças propostas ao texto aprovado na Câmara, que agora tramita no Senado.
Em debate realizado na última sexta-feira (19) em Curitiba, promovido pela Comissão de Agricultura e Reforma Agrária (CRA), João de Deus Medeiros, diretor do Departamento de Florestas do Ministério de Meio Ambiente, resumiu as principais preocupações do governo federal.
Conforme observou, são aspectos que o governo quer modificar no projeto, os quais resultam de discussões entre os ministérios do Meio Ambiente, da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário e das Cidades:
Vegetação em Área de Preservação Permanente
O artigo 8º do texto, fruto da emenda 164, aprovada de última hora na votação do texto pelos deputados, é "questão nevrálgica para o governo". De acordo com João de Deus, o caput do artigo prevê a supressão de vegetação em área de Área de Preservação Permanente (APP) como regra geral e não como exceção - hoje, a retirada da vegetação é prevista apenas mediante autorização e em caso de utilidade pública, interesse social e baixo impacto ambiental.
O artigo torna legal o uso de APP com atividade agrossilvopartoril (agricultura, pecuária e silvicultura), ecoturismo e turismo rural.
- Com a égide dessa redação, nós simplesmente acabamos com a figura de preservação permanente no espaço rural. Ela simplesmente deixa de existir - diz o diretor.
Ele concorda com argumentação do senador Luiz Henrique da Silveira (PMDB-SC), que participou do início do debate em Curitiba, no sentido de que os parágrafos terceiro e quarto do artigo restringem novos desmatamentos, mas explica que isso é feito no escopo do ordenamento para programas de regularização ambiental.
- Ou seja, além das atividades agrossilvopastoris, de ecoturismo e turismo rural, o programa de regularização poderá admitir outras atividades e, para essas, haveria restrição para novos desmatamentos. Mantido o texto da maneira como está, teremos alto grau de insegurança na interpretação do dispositivo, que poderá gerar problema de operação da norma - alerta João de Deus.
Anistia a desmatadores
O representante do MMA também diz ser grande a preocupação do governo com o artigo 33 do projeto e, em posição contrária à apresentada por Luiz Henrique, considera que o texto permite a conotação de anistia a quem desmatou ilegalmente.
Como explica, o artigo prevê que, nos programas de regularização ambiental, a adesão do proprietário suspende a multa, sob o compromisso de recuperação da área. No entanto, ele diz ser contraditório o parágrafo quinto do mesmo artigo, ao legitimar atividades em áreas consolidadas até julho de 2008.
- A conotação de anistia surge a partir do momento em que o texto é contraditório, com dois mandos incoerentes. De um lado, fala que vai exigir recuperação e, de outro, diz que tudo vai ser legitimado - diz ele.
Prerrogativas
A interpretação sobre a regra constitucional em matéria de competência concorrente é outro aspecto divergente. O governo concorda com a argumentação de que à União cabe a competência de estabelecer regras gerais, de aplicação em todo território.
No entanto, João de Deus não vê conflito em relação à responsabilidade dos estados de promover a complementação da lei, em função das especificidades "num país de dimensões continentais" e de grande diversidade de ecossistemas.
Para ele, o novo código deve prever parâmetros "razoáveis e factíveis" para todo o país, sem a ilusão de que o Código Florestal "estabelecerá proteção a tudo".
Área rural consolidada
O governo é contra a legalização generalizada das áreas protegidas ocupadas por atividades agrícolas até 2008, conforme previsto no texto, e quer fazer a distinção entre propriedades rurais que hoje têm passivo ambiental por terem usado a área seguindo leis anteriores e aquelas que desmataram em desrespeito à legislação.
O projeto define área rural consolidada como toda ocupação pelo homem preexistente em 22 de julho de 2008 (data do Decreto 6.514, que define punições para crimes ambientais), configurada por construções, plantios e criações, além de áreas em pousio (terras que foram cultivadas e estão em descanso).
O governo reconhece a existência de passivos decorrentes da forma como a legislação ambiental vem sendo implementada, mas considera que garantir no novo código que toda atividade estabelecida antes de julho de 2008 se mantenha indefinidamente gera injustiça social e fere a Constituição federal.
Para João de Deus, a norma federal deve delimitar com clareza as regras para a implementação de programas de regularização ambiental, identificando as diferentes motivações para os desmatamentos feitos, cada qual sujeita a diferentes obrigações.
Várzeas
Outro aspecto em disputa diz respeito à utilização das várzeas. O governo já se posicionou contrário à medida contida no texto aprovado na Câmara que retira salgados e apicuns (faixa litorânea próxima às regiões de mangue) das APPs definidas no Código Florestal. Nessas faixas estão, entre outras, unidades de produção de camarão e de sal.
João de Deus vê negligência em políticas anteriores direcionadas às áreas de várzeas, reconhecendo inclusive o direcionamento de incentivos oficiais para drenagem e utilização dessas áreas. Para ele, isso foi fruto de visão preconceituosa, quando se considerava mangues ambientes inóspitos e inadequados.
Com a ajuda da ciência, frisou, essa visão preconceituosa foi superada, havendo hoje a percepção da importância dos manguezais na manutenção dos ambientes costeiros.
Para ele, é possível manter atividades econômicas em área de manguezais respeitando-se parâmetros de proteção do ecossistema, sem que seja necessário reduzir a proteção, como prevê o projeto para apicuns e salgados. Ele ressalta que a retirada generalizada de vegetação em ambientes de manguezais pode resultar na geração aumentada de metano e gás carbônico, acentuando os impactos das mudanças climáticas.
Agricultura em área de vazante
O governo também apela aos senadores para que não permitam o uso generalizado das áreas de vazante - faixa de terra que fica exposta quando a água dos rios baixa, no período de seca. O diretor do Departamento de Florestas não vê problema no uso dessas áreas pelos agricultores familiares, que aproveitam a fertilidade dos leitos dos rios, na época seca, para cultivar feijão e milho, voltando a área, nas cheias, "a ser inundada, limpa e refertilizada".
- Abrir [no novo Código Florestal] a possibilidade de uso da vazante para qualquer tipo de cultivo e por qualquer tipo de produtor não se justifica do ponto de vista social e é uma temeridade do ponto de vista ambiental - disse João de Deus.
Agricultura familiar
O governo reconhece o papel e a importância dos agricultores familiares, presentes em 84,4% dos cerca de 5,2 milhões de estabelecimentos rurais, mas ocupando menos de 25% da área total. Para João de Deus, o novo código deve dar tratamento distinto a esses agricultores, o que resultará em benefícios para o conjunto da sociedade, com pouco impacto ambiental.
O projeto prevê tratamento diferente a propriedades com até quatro módulos fiscais, mas o governo deve trabalhar para benefícios como a isenção de recomposição de reserva legal seja apenas para propriedades familiares.
Regulamentação
O projeto também poderá ser alterado para reduzir o número de vezes em que remete à necessidade de regulamentos específicos, preocupação manifestada pelo Executivo e pela senadora Kátia Abreu (DEM-TO), que já abordou o assunto em debates realizados no Senado.
João de Deus considera necessário que seja feita uma triagem, para que o novo código reúna normas mais objetivas, autoaplicáveis sempre que possível, remetendo a regulamento apenas aquilo que não possa ser resolvido na lei geral.
(Por Iara Guimarães Altafin, Agência Senado, 22/08/2011)