Ainda que haja uma lei de biossegurança no país, os procedimentos ainda são bastante precários. É essa a lição que o pesquisador Silvio Valle nos apresenta ao longo da entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Nela, constrói um panorama histórico da biossegurança no Brasil. “Não existe uma política de biossegurança no Brasil”, afirma.
Na entrevista, Silvio narra como o mundo passou a se preocupar, a buscar entender e a efetivar medidas de biossegurança. Aponta três marcos neste sentido: um congresso de engenharia genética a partir do qual a palavra biossegurança passou a ser usada e compreendida de forma mais efetiva. Também indicou o símbolo de risco biológico, que trouxe às pessoas a noção de perigo quando se trata desse tipo de questão. Por fim, afirmou que a epidemia do vírus HIV mostrou a importância que é preciso dar a medidas de precaução. “O que precisa ficar claro para a sociedade é que o problema não está no desenvolvimento científico, mas sim na apropriação deste conhecimento e, por consequência, na transformação em um conhecimento tecnológico que leva a uma produção em grande escala, liberando, então, um novo organismo no meio ambiente”, disse.
Silvio Valle é graduado em Medicina Veterinária pela Universidade Federal Fluminense. É especialista em diversas áreas, tais como: Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana pela Escola Nacional de Saúde Pública; em Transgenic Organisms: Risks and Benefits e Biosafety And Risk pelo International Centre Of Genetic Engineering And Biotechnology (Índia); e em Evaluation Release Genetically Modified Plants pelo Istituto Agronomico l'Oltremare (Itália). Atualmente, é Pesquisador Titular em Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz – Fiocruz.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Como a história das revoluções sanitárias nos leva, hoje, a discutir a questão da biossegurança?
Silvio Valle – A discussão da biossegurança não é nova. Na verdade, é a palavra biossegurança que é nova. A emergência deste termo se deu após a realização de uma conferência que discutiu a questão da revolução da engenharia genética. Foi esta que levantou a importância da questão científica e política da biossegurança. Por isso, hoje, toda vez que se fala em biossegurança a palavra remete à engenharia genética e, por consequência, aos transgênicos. Ainda que esta conferência tenha sido um marco histórico, até hoje há muita polêmica e dúvidas científicas sobre os riscos da engenharia genética.
Outro marco importante foi a criação de um símbolo de risco biológico que se popularizou muito. Tanto que
Símbolo que significa ''risco biológico''
ele é visto e entendido sempre que se vai a um consultório dentário ou quando se retira sangue em um posto de coleta. Todo o cidadão conhece uma caixa amarela sobre o qual esse símbolo é impresso.
A emergência das normas da biossegurança também se tornou importante e fundamental em função da epidemia do HIV. A Aids destacou uma preocupação com o sangue, com o risco biológico, com transmissões de doenças através do sangue. A difusão foi tão grande que só depois desse evento é que se tornou efetivo, entre os profissionais de saúde, o uso de luvas, máscaras, de seringas descartáveis, etc. Ou seja, a aplicação correta das normas de biossegurança.
IHU On-Line – Como era a realidade antes desses marcos?
Silvio Valle – Há 50 anos não conhecíamos as normas de engenharia genética para fazermos microorganismos nos laboratórios, para criarmos novos organismos como hoje. Antes, havia menos cuidado. Hoje, as normas de biossegurança são seguidas de forma mais eficaz, mas ainda assim os riscos existem. Resolvemos alguns problemas de risco biológico, mas a ciência criou outros.
Há cem anos as pessoas transitavam com muita dificuldade de um continente para outro; as viagens eram feitas de navios e, obviamente, os pacientes morriam durante a viagem. Hoje, em quinze horas podemos ir do Rio de Janeiro para Pequim (China). A sociedade se movimenta muito rapidamente e gera também uma maior movimentação de doenças. Doenças que ocorriam em regiões remotas da Ásia tinham dificuldade de se deslocarem. As doenças do frango e do porco são exemplos disso.
No caso da agricultura as coisas ficaram ainda mais complexas porque aí a questão de biossegurança remete aos mercados. Se tivermos risco biológico de introdução da febre aftosa, a exportação é proibida, por exemplo. As questões de biossegurança na parte de sanidade vegetal e animal são de enorme importância, porque também afetam a sanidade econômica e financeira de um país que depende de exportação. Imagine uma doença que afeta a soja, o milho, o porco, os bovinos em um país como o Brasil, que é um grande exportador de matérias-primas.
IHU On-Line – Qual o papel da comunidade científica no que diz respeito à introdução de novas biotecnologias no país?
Silvio Valle – A comunidade científica tem um papel muito importante, porque ela gera novos organismos. A comunidade científica, hoje, no Brasil trabalha com um nível de conhecimento e nível de procedimentos de biossegurança muito bons, porque detém o conhecimento do risco biológico. É esta comunidade científica que, junto de outros órgãos de fiscalização, tem condições de mitigar os possíveis riscos biológicos. A comunidade científica de uma maneira ampla visa um pesquisador de laboratório que faz um diagnóstico, visa o médico que faz o primeiro possível diagnóstico quando tem algum caso de risco biológico em humanos. Ela é formada por um conjunto de profissionais cuja consciência de segurança é muito grande.
O que nós deixamos muito a desejar é em relação à fiscalização dos produtos oriundos da engenharia genética que estão liberados no Brasil. Temos bons procedimentos para analisar esses produtos, mas temos uma deficiência muito grande em acompanhar o uso de plantas e vacinas de origem transgênica. Não temos o que chamamos tecnicamente de vigilância em saúde, nem vigilância pós-comercialização. Hoje, no Brasil, quase 50% do milho e da soja é transgênico. Há uma norma que determina que os produtos oriundos deste milho e soja transgênicos deveriam ser rotulados, mas não temos um sistema de vigilância. Esta é a uma grande deficiência da biossegurança no Brasil.
IHU On-Line – Em 2010, falávamos sobre a criação de célula sintética. Como essa “descoberta” abre o debate sobre biossegurança?
Silvio Valle – A célula da biologia sintética é uma construção de um organismo em laboratório. Ela apareceu
O bioquímico Craig Venter
na mídia através de um pesquisador chamado Craig Venter. Na verdade, ele não construiu um microorganismo novo. Ele pegou um organismo e sequenciou o DNA em uma máquina e inseriu em outro organismo. Foi um grande avanço, porque ele construiu a informação genética, o DNA, em um sequenciador em laboratório.
Isto é muito importante, do ponto de vista da ciência, porque levanta questões de biossegurança importantes, que precisam ser discutidas tanto do ponto de vista da segurança quanto do ponto de vista da ética. Se eu crio em um laboratório um microorganismo novo, quando o libero no meio ambiente, a natureza não sabe como trabalhar. Esse novo organismo não participou do processo da evolução biológica. Esta é uma área que nós chamamos de biologia sintética. Nos Estados Unidos já há uma regulação e um olhar bem específico para estas questões, mas que no Brasil não se tem qualquer legislação específica que trata desta questão.
O que precisa ficar claro para a sociedade é que o problema não está no desenvolvimento científico, mas sim na apropriação deste conhecimento e, por consequência, na transformação em um conhecimento tecnológico que leva a uma produção em grande escala, liberando, então, o novo organismo no meio ambiente.
IHU On-Line – Como o senhor avalia a Política Nacional de Biossegurança? Que implicações essa proposta traria a órgãos como a CNTBio?
Silvio Valle – A Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CNTBio é um órgão que faz a análise, mas não faz a fiscalização. Ela somente analisa e faz um parecer apontando se o produto é ou não seguro. A fiscalização é competência do Ministério da Saúde, Agricultura e Meio Ambiente.
Hoje, no Brasil, os transgênicos são liberados, mas não temos fiscalização e vigilância após a comercialização das sementes. Também não se tem no país uma política nacional de biossegurança que estabeleça quais são as funções dos diversos órgãos envolvidos. Não existe uma política de biossegurança no Brasil. Existe um órgão chamado CNTBio que dá parecer sobre soja, milho e fala “isso é seguro”, analisando as informações que a empresa enviou. Depois disto não há qualquer fiscalização ou política nacional de biossegurança.
IHU On-Line – Quais são os principais impasses na implementação das normas de biossegurança relacionadas com os processos e produtos transgênicos?
Silvio Valle – Não existe impasse. Existe uma falta de decisão política para implementar, como determina a lei, uma Política Nacional de Biossegurança. É só aplicar a lei. Os ministérios não estão exercendo o que a lei determina, ou seja, não estão fiscalizando. A CNTBio faz a parte dela, do ponto de vista das pesquisas. Em laboratórios, a situação está excelente.
IHU On-Line – Em relação ao cultivo de transgênicos, podemos dizer que o Brasil viola o tratado de biossegurança?
Silvio Valle – Não, porque o protocolo de biossegurança não normatiza a questão do comércio interno de transgênicos. O protocolo de biossegurança nada mais é do que uma base de dados para os países informarem quando estão importando e exportando as plantas transgênicas. O país não está violando quando ele autoriza o milho transgênico. Ele analisa, autoriza e informa para o órgão. Hoje, por exemplo, todas as plantas transgênicas comercializadas no Brasil são de multinacionais; são alimentos transgênicos que podem ter uma semente de alguma cooperativa ou alguma empresa brasileira, mas o patenteamento do processo é de uma multinacional estadunidense. É de uma empresa estrangeira.
(IHU-Unisinos, 16/06/2011)