O flagrante se deu na área conhecida como Pompeu, em Guajará-Mirim (RO), município que fica na fronteira do Brasil com a Bolívia. O grupo móvel de fiscalização inspecionou o local em abril e classificou a situação como degradante. As vítimas não tinham acesso à água potável e nem a banheiros decentes. Viviam em alojamentos sujos e extremamente precários, tendo que cumprir tarefas perigosas no meio da mata, por longas jornadas, sem treinamentos exigidos e equipamentos de proteção de individual (EPIs) regulares. Segundo o Art. 149 do Código Penal, o trabalho degradante é um dos itens que compõem o crime de submeter alguém à condição análoga à escravidão, com pena de reclusão de dois a oito anos.
Os empregados consumiam um líquido turvo e barrento (veja imagem abaixo), que era retirado diretamente de um reservatório a céu aberto sem nenhum tipo de processo de filtragem ou purificação, conta a auditora fiscal do trabalho Camilla de Vilhena Bemergui, que atuou como subocoordenadora da operação. Os alojamentos se resumiam a três construções precárias de madeira, todas elas com frestas e desprovidas de estrutura e equipamentos. Uma estava coberta com teto de palha em chão de terra (ao lado), sem a mínima base para o devido repouso, higiene e alimentação dos trabalhadores. Foram registrados ainda relatos de maus tratos e humilhações.
Em condições sofríveis, um dos banheiros se resumia a um buraco entre tábuas de madeira (foto ao lado). O banho era tomado ou ao ar livre, na beira do rio e no meio do mato (conforme imagem abaixo) ou próximo ao reservatório improvisado, bombeado por meio de tração manual, com o auxílio de uma caneca.
As instalações frágeis e insuficientes não protegiam os trabalhadores das variações do clima amazônico e nem de animais e insetos venenosos ou transmissores de doenças. Notou-se ainda a ausência completa de materiais de primeiros socorros em caso de emergências.
Uma moradora da área preparava e servia as refeições na sua casa. Todos os dias, os empregados tinham de caminhar pelo menos 2 km até chegar ao "refeitório" improvisado na varanda da casa da cozinheira.
Para os audiores fiscais que participaram da ação, os empregados seguiam ordens diretas da empresa, que tinha pleno controle da rotina de trabalho.
Ao todo, foram lavrados 46 autos de infração contra a Eplan Engenharia Planejamento e Eletricidade Ltda., responsável pela contratações. Para viabilizar a expansão da rede de eletrificação rural, os libertados operavam motosserras para a derrubada da mata, fixavam postes e realizavam outras atividades complementares, sob o risco de cabos de alta tensão.
A fiscalização detectou um tratamento discriminatório por parte da Eplan. Enquanto os resgatados tinham de conviver e aceitar quadros degradantes nos alojamentos e nas frentes de trabalho, outra turma de empregados que estava abrigada numa casa alugada no núcleo urbano de Guajará-Mirim (RO) desfrutava de condições gerais bem mais favoráveis.
Segundo a subcoordenadora Camilla, oito dos nove libertados estavam com carteira registrada há mais de um ano. Apenas um estava no trabalho há 11 meses. Todos recebiam vencimentos regulares superiores ao salário mínimo.
Nesse caso específico, a emissão do Seguro Desemprego do Trabalhador Resgatado implicaria em prejuízo às vítimas. Por isso, a fiscalização optou pela suspensão imediata dos serviços e pela rescisão indireta dos contratos. Dessa forma, os trabalhadores puderam receber mais por meio do Seguro Desemprego comum emitido pela contratante.
A Eplan foi acionada pelo grupo móvel logo após a operação. "Tentamos um TAC [Termo de Ajustamento de Conduta], mas o acordo não foi possível. Houve um entrave por parte da empresa e restou-nos apenas o caminho do ajuizamento de ação civil pública", coloca Francisco José Pinheiro Cruz, chefe da Procuradoria Regional do Trabalho da 14ª Região (PRT-14).
O procurador espera protocolar a ação na Justiça "em breve, nas próximas semanas". Indenizações por danos morais individuais e colaetivos certamente serão cobrados. Ele ainda está avaliando se existem elementos suficientes para caracterizar a responsabilidade solidária da Eletrobras Distribuição Rondônia, antiga Centrais Elétricas de Rondônia (Ceron), com relação ao ocorrido. O braço rondoniense faz parte do Sistema Eletrobras, gerido pela estatal que tem no governo federal o seu principal controlador acionário.
A possibilidade da existência de outros casos de exploração como esse em pontos isolados no meio da Floresta Amazônica não é descartada pelo procurador do trabalho Francisco. As frentes de trabalho de expansão do Luz para Todos, realça, geralmente estão instaladas em locais de difícil acesso. "Teria de haver uma ação mais ampla de fiscalização", sugeriu.
Rio utilizado como local de banho para das vítimas que atuavam na expansão da rede elétrica (MTE)
"Foi o primeiro flagrante desse tipo, uma luz que sinalizou para o problema", completou o representante do Ministério Público do Trabalho (MPT). Ele relata que é comum ouvir reclamações de empregadores acerca da dificuldade de garantir estruturas para alojamentos exemplares em serviços assim. "Alguns podem se iludir achando que é possível flexibilizar a aplicação das normas. Mas as dificuldades enfrentadas pelos empregadores não autoriza o descumprimento da legislação".
Em entrevista à Repórter Brasil, o gerente do Luz Para Todos da Eletrobras Distribuição Rondônia, José Carlos Carregaro, confirmou que existe um acompanhamento constante das frentes dedicadas à ampliação do alcance do programa. De acordo com ele, essas averiguações são feitas por duas equipes distintas: uma relativamente grande dedicada ao monitoramento das obras em si e outra bem menor formada por técnicos de saúde e segurança do trabalho também contratados diretamente pela filial da estatal.
A diferença no número de funcionários não deixa dúvidas sobre quais aspectos são priorizados. O gerente estimou que cerca de 150 pessoas dentro da Eletrobras Distribuição Rondônia, dividas em quatro regiões, têm atualmente a função de checar o andamento das obras. Apenas sete técnicos atuam para conferir aspectos da saúde e segurança do trabalho.
José Carlos admite que as visitas dedicadas à análise das obras em si são bem mais frequentes que as dos técnicos que avaliam em que condições elas estão sendo executadas. Ele garante, contudo, que a área Pompeu passou pelo crivo das equipes da empresa. A partir de 2008, quando o Luz para Todos deslanchou em Rondônia, já houve circunstâncias em que quase 300 frentes estavam em pleno funcionamento. Atualmente, o número é menor - mais de 100 focos - por conta da transição entre uma licitação e outra.
Está praticamente encerrado o serviço de expansão no eixo de Guajará-Mirim (RO) para o qual a Eplan foi contratada pela Eletrobras Distribuição Rondônia. Foram, nos cálculos do gerente do programa, 3,4 mil domicílios beneficiados. A mesma Eplan está tocando paralelamente um novo contrato de expansão no eixo mais ao Sul, nas cercanias de Pimenta Bueno (RO). Principalmente por causa dos acidentes, a cobrança direcionada às condições de trabalho são grandes. Relatórios sobre o tema, confidenciou José Carlos, chegam a ser enviados até para a Casa Civil da Presidência da República.
Em comunicado oficial, a Eletrobras Distribuição Rondônia se limitou a informar que "não constam nos arquivos da companhia registros de situações, relacionadas a empregados de empresas prestadoras de serviços, referentes a condições inadequadas de trabalho, trabalho degradante, falta de água potável, alojamentos inadequados isolados, descaso total quanto a equipamentos de proteção individual, manejo inadequado de motosserra, jornada extensa de trabalho, maus tratos e humilhações".
Quanto ao encontrado na área de Pompeu, a empresa informou que ainda não teve acesso ao relatório do grupo móvel de fiscalização. Mesmo assim, José Carlos disse à reportagem a acusação é grave e que "não faz sentido falar em trabalho escravo". Ele também aguarda o relatório da fiscalização para que possa conhecer detalhes do que foi apurado e se posicionar "dentro da normalidade", Para o gerente do Luz para Todos no Estado, não há hipótese de falha. "Tenho plena confiança no trabalho que vem sendo realizado".
Procurado pela Repórter Brasil desde a semana passada, um dos representantes da Eplan não quis se pronunciar sobre a fiscalização trabalhista até o fechamento desta matéria. A contratada desdenhou de notificações (inclusive quanto às suspeitas de que acidentes fatais teriam sido "escondidos" pelo não envio de comunicação aos órgãos competentes) e se recusou a colaborar com os integrantes do grupo móvel. Aos contratantes da Eletrobras Distribuição Rondônia, a Eplan teria comentado apenas que algumas irregularidades trabalhistas tinham sido apontadas na operação do grupo móvel e que ajustes pontuais já estavam sendo providenciados.
(Por Maurício Hashizume, Repórter Brasil, 31/05/2011)