Desde 1985, Amazônia foi palco de mais de mil assassinatos de trabalhadores rurais e lideranças defensoras de direitos humanos. O Pará respondeu por mais de 600 casos. Ministério Público, movimentos sociais e organizações da sociedade civil cobram presença do Estado para atuar sobre as causas sociais do problema
Em menos de uma semana, três lideranças do movimento social e um trabalhador rural foram assassinados na Amazônia. No sábado, o agricultor Herenilton Pereira dos Santos foi encontrado morto, com marcas de balas, no Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Praialta Piranheira, em Nova Ipixuna, no sudeste do Pará.
O corpo estava a cerca de sete quilômetros do local onde foram assassinados, na última terça-feira (24/5), José Cláudio Ribeiro da Silva e Maria do Espírito Santo da Silva, casal que denunciava há vários anos a ação de madeireiras e carvoarias ilegais. Parte de uma orelha de Zé Cláudio foi arrancada, provavelmente como comprovação do serviço exigida pelo mandante.
Na manhã da sexta-feira (27/5), Adelino Ramos foi morto a tiros em Vista Alegre do Abunã, distrito de Porto Velho (RO). Ele lutava pela reforma agrária e também denunciava o desmatamento ilegal no limite entre Rondônia e Amazonas. Um suspeito do crime foi preso.
As circunstâncias dos quatro assassinatos escancaram, mais uma vez, o quadro de violência contra lideranças que defendem a reforma agrária, os direitos humanos e a floresta amazônica. E também apontam para a ineficiência do Estado em protegê-las.
De 1985 a 2010, segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT), 1.580 pessoas foram assassinadas no Brasil por causa de conflitos no campo. Na Amazônia Legal, ocorreram 1.033 casos. O Pará, campeão no número de assassinatos, respondeu por 621 mortes. Em Rondônia, onde morreu Adelino Ramos, 72 pessoas foram mortas.
Em 2010, havia em todo Brasil 125 pessoas ameaçadas de morte por defender os direitos de pequenos agricultores e trabalhadores rurais – 83 delas moravam na Amazônia Legal.
Herenilton pode ter sido testemunha
Adelino Ramos foi um dos sobreviventes do massacre de Corumbiara (RO), em 1995, quando 12 trabalhadores rurais foram assassinados. Segundo a CPT, ele vinha recebendo ameaças. Seu filho, Claudemir Gilberto Ramos, também uma liderança da luta pela reforma agrária, está jurado de morte. Por causa disso, pai e filho não se veem há dez anos.
A CPT levantou a suspeita de que as mortes de Herenilton dos Santos, Zé Cláudio e Maria estejam relacionadas. Santos seria uma possível testemunha por ter visto os assassinos do casal. Ele estava desaparecido desde quinta-feira. A CPT questionou a ação das polícias civil e federal, cuja presença no PAE Praialta Piranheira logo após os dois primeiros assassinatos não foi suficiente para evitar um novo crime (saiba mais).
Em 2008, os nomes de Zé Cláudio e Maria foram incluídos num levantamento patrocinado pela Defensoria Pública do Pará que apontava 207 lideranças defensoras dos direitos humanos ameaçadas de morte no estado. Eles também estavam na lista da CPT de ameaçados. Apesar disso, não pediram nem recebiam proteção oficial.
“A única segurança deles eram os companheiros das organizações e movimentos sociais, sindicatos e associações que os apoiavam”, conta Célia Regina das Neves, uma das diretoras do Conselho Nacional de Populações Extrativistas (CNS). Célia informa que, recentemente, os cachorros de Zé Cláudio e Maria foram mortos a tiros no quintal de casa e que circulavam boatos na região de que o prêmio pela cabeça de Zé Cláudio seria de R$ 5 mil.
“A mesma coisa que fizeram com Chico Mendes e irmã Dorothy Stang querem fazer comigo. Eu posso estar aqui falando com vocês hoje e, daqui a um mês, vocês podem ter a notícia de que eu desapareci”, alertou Zé Cláudio em novembro passado, em uma palestra promovida pela organização TEDx, em Manaus (veja o vídeo). Ele disse que tinha medo, mas que continuaria a denunciar a derrubada da floresta na região de Marabá, cerca de 480 quilômetros ao sul de Belém (PA).
Em entrevista à Rádio Eldorado (SP), também no ano passado, Zé da Castanha, como era conhecido, contou que tinha informações de que quem o ameaçava dizia que sua mulher, igualmente uma militante socioambientalista, deveria ser morta junto com ele.
Ontem, em Brasília, o presidente em exercício Michel Temer reuniu o secretário geral da Presidência, Gilberto Carvalho, o ministro do Desenvolvimento Agrário, Afonso Florence, e técnicos das pastas de Meio Ambiente, Justiça e Direitos Humanos para traçar estratégias de como conter a onda de violência na Amazônia. Sem dar muitos detalhes, o governo decidiu criar um grupo interministerial para acompanhar a investigação dos assassinatos, disse que pretende garantir a segurança de outras lideranças ameaçadas e intensificará ações de combate ao desmatamento e regularização fundiária. A Polícia Federal está investigando os crimes.
Inversão do papel do estado
O coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Pará, Márcio da Silva Cruz, afirma que Zé Cláudio e Maria não recebiam proteção policial porque nunca formalizaram um pedido para serem protegidos. Ele explica que isso é necessário para acionar uma equipe formada por policiais, defensores públicos, psicólogos e assistentes sociais que checa as ameaças e encaminha um relatório ao Programa Estadual de Proteção aos Defensores dos Direitos Humanos, financiado e vinculado à Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Depois disso, a coordenação do programa, formada por órgãos do governo e sociedade civil, avalia o pedido.
Cruz defende o trâmite. “Você pode ser um grande militante dos direitos humanos, mas ser ameaçado por dever a um agiota e isso não ter nada a ver com a sua militância”, afirma. Ele informa que há hoje no Pará seis pessoas que recebem escolta policial a pedido do programa. Dom Erwin Kräutler, bispo da Prelazia do Xingu e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), é um dos que recebem a proteção. Cruz lembra que nenhuma dessas pessoas sofreu ameaça ou algum tipo de atentado depois de entrar para o programa. Mais 17 pedidos de proteção aguardam avaliação. Cruz conta ainda que o programa irá acompanhar a investigação das mortes de Zé Cláudio e Maria para aprimorar suas estratégias.
“Não é a vítima que tem de fazer o pedido ao programa. É o programa que tem de oferecer proteção para as vítimas. Essa é uma inversão do papel do Estado, uma justificativa do Estado para se eximir da responsabilidade”, critica José Batista Afonso, advogado da CPT em Marabá. Ele avalia que o Poder Público não pode alegar que desconhecia as ameaças a Zé Cláudio e Maria por elas estarem registradas numa pesquisa oficial, na lista da CPT e publicadas na imprensa local e nacional. “O programa está com as pernas quebradas. Ele só existe no papel. Suas principais políticas nunca foram efetivadas", comenta Afonso.
“Mais do que omissos, eles [o governo estadual e a União] foram coniventes com aqueles que praticaram o crime. Porque não protegeram a área. O Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária] não fiscalizou, não atendeu as dezenas de denúncias feitas. Não conheço processo que tenha sido aberto contra os madeireiros pelo desmatamento ilegal”, argumenta. “O problema é que isso não é prioridade do governo: proteger seringueiros, sindicalistas, ambientalistas”. Afonso reivindica uma ação preventiva do governo para proteger os defensores de direitos humanos ameaçados.
O procurador da República no Pará Felício Pontes também considera que o Estado não pode esperar pela formalização de um pedido de proteção para agir e que também houve omissão no caso de Zé Cláudio e Maria. “Pra mim, essas pessoas que estão sob ameaça de morte estão extremamente vulneráveis por uma omissão gravíssima do governo federal, que assenta essas pessoas no meio de áreas de conflito e vai embora”. Ele cobra uma ação mais efetiva do Incra em conflitos como os do PAE Praialta Piranheira.
Pontes defende que haja um tratamento diferenciado no Judiciário para crimes como os da semana passada. O procurador informa que, em reunião realizada na semana passada, o governador do Pará, Simão Jatene, garantiu rever a situação dos ameaçados de morte no sentido de assegurar uma proteção mais efetiva.
Militantes ouvidos pela reportagem do ISA confirmaram a desconfiança que existe em relação à proteção oferecida pelas polícias civil e militar paraenses. Eles consideram que seria arriscado levar para dentro de suas comunidades integrantes de uma instituição que já foi acusada ela própria de atentar contra os direitos humanos. Ao mesmo tempo, várias lideranças não aceitam manter escolta pessoal enquanto seus vizinhos e colegas continuam vivendo um clima de insegurança. A solução para as ameaças e crimes seria garantir a presença do Estado para resolver os conflitos fundiários, coibir o desmatamento ilegal e a dar segurança de comunidades inteiras.
“A questão é que as causas das ameaças não são combatidas”, defende Márcio Apolo Santana Leão, presidente da Sociedade Paraense de Defesa dos Direitos Humanos (SDDH). Ele considera que a impunidade da grande maioria dos assassinos de trabalhadores rurais continua sendo o maior estímulo para novos crimes e ameaças. Leão afirma que a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República tinha conhecimento de que Zé Cláudio e Maria do Espírito Santo estavam sendo ameaçados desde 2008 porque teve acesso ao levantamento realizado pela Defensoria Pública do Pará.
Em seu lote no PAE Praialta Piranheira, Zé Cláudio e Maria colhiam castanha, andiroba, copaíba e cupuaçu, entre outros. Fabricavam óleos e artesanato. Eles eram coordenadores do CNS na região. Trabalhavam na execução do plano de manejo comunitário do PAE e desenvolviam atividades de educação popular e ambiental, organizavam mobilizações, cursos, palestras e oficinas em comunidades rurais. Maria havia acabado de se formar em pedagogia e coordenava o programa local do CNS sobre saúde da mulher.
Os dois ajudaram a criar, em 1997, o PAE onde moravam, com 22,5 mil hectares e 500 famílias, às margens do lago da barragem de Tucuruí. Também foram responsáveis pela criação da associação dos pequenos produtores da área. A partir daí, passaram a denunciar derrubada e compra ilegais de madeira. Os dois líderes vinham lutando especialmente para salvar as castanheiras, espécie protegida por lei que passou a ser visada pelos madeireiros com o fim das outras espécies de interesse comercial na região. Recentemente, junto com outros moradores, eles enviaram documento ao Ministério Público Federal denunciando o desmatamento e a existência de cerca de 500 fornos de carvão na área (veja o documento).
O projeto agroextrativista é uma modalidade especial de assentamento, onde as atividades econômicas estão baseadas na extração manejada dos recursos naturais da floresta aliada à agricultura de pequena escala. Na Amazônia, em especial devido à grande preocupação com a preservação da floresta, esse tipo de projeto é desenvolvido levando em consideração as características das populações tradicionais da região.
(Por Oswaldo Braga de Souza, ISA, 31/05/2011)