“Os processos de Belo Monte e do rio Madeira são reflexos da apatia do brasileiro”. Esta é a conclusão a que a ativista ambiental Telma Monteiro chegou depois de lutar, por anos, contra a construção das hidrelétricas na região amazônica. Neste momento, Telma está na Holanda para apresentar às autoridades do governo holandês e representantes de organizações privadas um relatório que elaborou a respeito do interesse de empresas holandesas nas hidrelétricas e hidrovias planejadas nos rio Tapajós e Teles Pires. “O governo brasileiro pretende lançar mão dos recursos naturais – exportando-os como commodities – para se transformar na quinta maior economia do mundo. O modal hidroviário, com a experiência holandesa, é considerado o principal meio para se chegar lá”, escreveu ela na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
Telma Monteiro é especialista em análise de processos de licenciamento ambiental e coordenadora de Energia e Infraestrutura Amazônia da Associação de Defesa Etnoambiental Kanindé.
A entrevista foi feita em parceria com o Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores - CEPAT.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – A senhora anunciou em seu blog que está deixando o Brasil por algum tempo. Onde a senhora está nesse momento?
Telma Monteiro – Estou em Amsterdam, na Holanda, a convite da organização Both Ends. No dia 24, fiz uma apresentação em Haia sobre os planos hidrelétricos e hidroviários – portos industriais – nos rios Tapajós e Teles Pires. Dias 6, 7 e 8 de junho estarei na Suíça – nas cidades de Basileia, Zurique e Berna, respectivamente – a convite da Society For Threatened Peoples/Switzerland – SMTP para um ciclo de palestras sobre as irregularidades no processo de licenciamento de Belo Monte e as violações dos direitos dos povos indígenas.
IHU On-Line – Qual a importância de discutir o problema das hidrelétricas aí na Holanda?
Telma Monteiro – O governo brasileiro planejou a construção de complexos hidrelétricos com seis usinas na bacia do rio Tapajós e outras cinco na sub-bacia do rio Teles Pires, nos estados do Pará e Mato Grosso. Junto a esses complexos hidrelétricos estão em andamento os projetos de hidrovias que serão viabilizadas graças aos reservatórios nos trechos naturalmente intransponíveis, com pedrais ou encachoeirados, característicos dos rios da Amazônia.
Em 25 de agosto de 2010, aconteceu em Brasília o Seminário de Navegação Interior – Cooperação Técnica Brasil-Holanda, que apresentou e discutiu – apenas em nível governamental – experiências de representantes do Ministério dos Transportes, Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes – DNIT e Agência Nacional de Transportes Aquaviários – Antaq. Esse curso era uma das atividades previstas no Acordo de Cooperação entre o Brasil e o governo dos Países Baixos. O seminário reuniu o embaixador da Holanda no Brasil, Kees Rade, o Secretário de Política Nacional de Transportes do Ministério dos Transportes, o Diretor-Geral de Navegação da Marinha, além de dirigentes do DNIT, Antaq e Agência Nacional de Águas – ANA.
Esse evento está ligado à cooperação bilateral entre Brasil e Holanda para operar embarcações holandesas em hidrovias brasileiras. O Brasil é o mais importante mercado emergente no mundo e a Holanda o considera imprescindível para manter a estratégia de crescimento das exportações holandesas para a América Latina.
O plano entre os dois países prevê usar a experiência que levou a Holanda a desenvolver uma estratégia logística indispensável para manter seu poder comercial na Europa. O governo brasileiro pretende lançar mão dos recursos naturais – exportando-os como commodities – para se transformar na quinta maior economia do mundo. O modal hidroviário, com a experiência holandesa, é considerado o principal meio para se chegar lá.
Com o potencial logístico esgotado na Holanda, as grandes empresas deste país estão buscando a alternativa de expansão no emaranhado de rios brasileiros na Amazônia. O planejamento das cidades holandesas foi direcionado para a implantação de atividades industriais nas margens dos rios e canais. Esse é o modelo que o governo brasileiro quer levar para a Amazônia.
Poucas pessoas sabem que a prioridade do governo federal, hoje, é transformar o Brasil numa economia comparável à da Suíça, Holanda ou Bélgica, mesmo que signifique transferir a degradação para as margens dos rios de planície na Amazônia. A Holanda, em especial, tem consolidado rapidamente os acordos econômicos com o Brasil sobre gerenciamento de águas (hidrovias), biocombustíveis e logística portuária. Foram cinco acordos assinados em 2008 e em 2007. Roterdã é o maior porto da Europa para commodities brasileiras, o que faz da Holanda um dos principais parceiros no Brasil, chegando a investimentos de US$ 5,15 bilhões.
IHU On-Line – Como os representantes holandeses receberam o seu depoimento?
Telma Monteiro – Com a hidrovia Tapajós-Teles Pires-Juruena, o governo brasileiro pretende propor uma nova estrutura organizacional calcada no modelo internacional, em especial o holandês, para viabilizar a implantação de cerca de 20 mil quilômetros de malha hidroviária navegável, só na Amazônia.
Entre os interessados estão os setores de fertilizantes, bens de consumo, grandes exportadores de commodities, grandes grupos privados em infraestrutura, indústrias eletrointensivas, empresas de energia (etanol, biodiesel), governos e as multinacionais.
As autoridades holandesas pareceram surpresas diante dos detalhes que aparentemente desconheciam, sobre a região escolhida para construir os empreendimentos hidrelétricos do Complexo Tapajós. Ou seja, onde estão o Parque Nacional da Amazônia, Florestas Nacionais Itaituba I e Itaituba II, Parque Nacional do Jamanxim, Parque Nacional do Juruena, na margem esquerda do alto curso do Tapajós, parques e florestas em processo de “consulta” e terras indígenas (Saí Cinza, Munduruku e Apiacás).
A holding estatal brasileira Eletrobras e sua subsidiária Eletronorte anunciaram enganosamente que as usinas do Complexo Tapajós seriam construídas sem impactos ambientais, utilizando uma nova técnica inspirada nas plataformas de petróleo em alto mar. Um conceito desconhecido no mundo e que foi batizado pelas autoridades de “usina-plataforma”. O delírio chegou a ponto de pensar em transportar os operários das obras em helicópteros, como se apenas as obras fossem responsáveis pelos impactos.
Os mapas que apresentei às autoridades holandesas mostraram o avanço do desmatamento atual nessa região devido principalmente à pecuária. Isso sem contar ainda com a hidrovia e com as hidrelétricas. Ficou claro como esse plano vai induzir a ocupação predatória, grilagem, invasões. Concluí minha apresentação com a seguinte pergunta para os holandeses: Qual é o modelo de desenvolvimento que os povos amazônicos querem para a Amazônia? O governo brasileiro e as autoridades e empresas holandesas devem procurar a resposta para essa pergunta antes de decidirem de forma autoritária o destino da região.
IHU On-Line – A senhora poderia nos contar de onde vem a sua indignação contra os projetos de construção das grandes hidrelétricas?
Telma Monteiro – Ela vem justamente do despropósito de um planejamento energético do governo, sem transparência e sem participação da sociedade que tem o objetivo de construir grandes hidrelétricas em regiões tão frágeis do ponto de vista ambiental e social como a Amazônia. Agora, a essa indignação, podemos acrescentar mais uma que é justamente a transformação dos rios em vias navegáveis, como o projeto da Hidrovia Tapajós-Teles Pires-Juruena que está estreitamente ligado ao aproveitamento hidrelétrico da bacia do Tapajós e foi desenvolvido pela Administração das Hidrovias da Amazônia Oriental – AHIMOR.
Essa hidrovia prevê a navegabilidade dos rios Tapajós e Teles Pires de Santarém até as proximidades da Cachoeira Rasteira, no rio Teles Pires, através de câmara de transposição de desnível ou eclusas na região das cachoeiras de São Luiz do Tapajós. Os 815 quilômetros no rio Tapajós e 160 quilômetros no rio Teles Pires criariam 975 quilômetrps de via navegável, além de permitir comboios-tipo de 200 metros de comprimento e 24 metros de boca que transportariam a soja do norte do Mato Grosso.
A situação se torna ainda mais grave quanto esse planejamento paralelo e desconhecido da sociedade prevê que a hidrovia do Tapajós-Teles Pires teria o objetivo de incrementar o comércio exterior de commodities – grãos (soja) e biocombustíveis do estado de Mato Grosso e minério do estado do Pará. Isso tudo numa visão "crescimentista" do governo federal.
IHU On-Line – A que atribui a apatia da sociedade brasileira para com o debate sobre a construção das usinas hidrelétricas?
Telma Monteiro – Atribuo à falta de informação, à falta de transparência por parte das autoridades nas tomadas de decisões que afetam diretamente um dos maiores patrimônios dos brasileiros: a Amazônia. O brasileiro não sabe que mais uma vez, na história da ocupação dos territórios brasileiros, não existe efetivamente preocupação com a dimensão socioambiental e que ela é relegada – quando existe – para depois da tomada de decisão e não antes.
Já passou da hora de a sociedade brasileira encarar a verdade, qual seja, a de que a prioridade do governo federal, hoje, é transformar o Brasil numa economia comparável à da Suíça, Holanda ou Bélgica. Ou seja, numa Europa em plena Amazônia. Isso significa transferir a degradação para as margens dos rios de planície. O Centro-Oeste brasileiro é uma grande região produtora de grãos para exportação e isso está forçando a expansão do sistema hidroviário na região Norte. Veja que já estamos nesse limiar, ultrapassando o ponto em que não há retorno, de ocupação dos territórios amazônicos com a eclusa de Tucuruí, concluída no final de 2010. Não se trata aqui de impedir o desenvolvimento como o governo nos acusa, mas de repensar a forma, o modelo e a dimensão que estão sendo adotados.
IHU On-Line – Em sua opinião, por que o governo brasileiro faz "ouvidos moucos" à gritaria de cientistas, pesquisadores, especialistas, ONGs e movimentos sociais que pedem o cancelamento de Belo Monte?
Telma Monteiro – Embora o governo brasileiro esteja se esforçando para fazer “ouvidos moucos”, essa tática já não está mais surtindo efeito. Apesar de tentar ignorar tudo que está sendo produzido – relatórios, pareceres –, fica cada vez mais difícil para o governo inventar respostas que a sociedade assimile como verdadeiras para as questões levantadas e as inconsistências de caráter técnico e financeiro.
Eu acredito que hoje temos um impasse muito claro. A parte da sociedade que está engajada nesse tema – Belo Monte – já está muito mais preparada, muito mais ciente dos artifícios que as empresas estatais e privadas unidas utilizam. Embora a maioria dos cidadãos ainda não tenha se dado conta da verdade, a minoria está mais bem equipada para combater os argumentos construídos com mentiras. Belo Monte se transformou no calcanhar de Aquiles do governo na questão do modelo energético calcado em hidrelétricas na Amazônia.
IHU On-Line – Perdemos em todas as frentes na luta contra a construção das mega-hidrelétricas ou ganhamos em alguma?
Telma Monteiro – Por enquanto, podemos considerar que estamos ganhando experiência em contra-argumentar de forma consistente. Vejam que só o fato de organizações estarem objetivamente levando os problemas de violações dos direitos dos povos indígenas e das populações tradicionais para instâncias internacionais já é um ganho nessa verdadeira guerra. Todos os olhos estão voltados para o Brasil e para como estamos tratando o meio ambiente, os indígenas, os ribeirinhos, os biomas.
Mesmo que governos como o da Holanda estejam determinados a buscar fora de suas fronteiras uma opção para suprir as suas necessidades de crescimento econômico e de oportunidades para seus cidadãos, não acredito que o queiram fazer de forma a serem responsabilizados por hecatombes ambientais.
IHU On-Line – Qual a atual situação da Patagônia? Por que a Patagônia tem merecido mais atenção do que a Amazônia?
Telma Monteiro – A Patagônia e a Amazônia merecem a mesma atenção. Na verdade, o que muda é o engajamento dos cidadãos. O brasileiro de hoje está voltado para desfrutar algo que durante muito tempo lhe foi negado: a possibilidade de consumir, de recuperar sua autoestima, sem inflação, com crédito mais acessível. Existe um deslumbramento das classes que durante décadas foram as mais sacrificadas.
Agora, elas estão recuperando o tempo perdido e na verdade não têm tido oportunidade para prestar atenção aos dilemas atuais. Ou ainda não querem encarar a possibilidade de que possam ficar, por exemplo, sem energia ou de tê-la racionada. Isso não vai acontecer nunca. Porém, o governo faz essa guerra de guerrilha inserindo o medo do apagão no DNA do brasileiro. Essa falácia governamental prejudica o senso de justiça e o medo retira a vontade dos cidadãos de considerar a verdade.
(IHU-Unisinos, 30/05/2011)