Um estudo desenvolvido pelo Instituto Pró-Carnívoros em parceria com o Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros (CENAP) do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) gerou, pela primeira vez, informações inéditas no mundo sobre os hábitos de vida do cachorro-vinagre ou cachorro-do-mato-vinagre (Speothos venaticus) na natureza. Concluído em 2009, o projeto teve o apoio da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Mato Grosso (FAPEMAT) e do CNPq.
Até então, grande parte dos dados sobre a espécie eram coletados a partir da observação desses animais em cativeiro. De acordo com o biólogo Edson Lima, coordenador dos trabalhos de campo do projeto na região de Nova Xavantina (MT), onde foram desenvolvidas as pesquisas, a constatação da falta de informações sobre o animal na natureza foi o que levou os pesquisadores a monitorar, durante meses, este canídeo neotropical social (que vive em grupo) para gerar dados consistentes sobre o cachorro-vinagre em seu habitat natural.
As pesquisas, que na fase inicial também receberam apoio de instituições e zoológicos internacionais, foram realizadas entre os anos de 2004 e 2009 em propriedades particulares de Nova Xavantina e de municípios vizinhos, uma região de Cerrado no leste do Mato Grosso com as maiores taxas de remoção de vegetação nativa do país nos últimos anos. A primeira equipe a obter dados sobre a ecologia da espécie iniciou os estudos em 2004, com a captura de um casal no município de Nova Xavantina (MT) e o monitoramento dos animais por 13 meses. Depois disso, outro casal foi capturado em 2007 e monitorado por seis meses. Em maio de 2008, uma terceira matilha, de dez indivíduos, foi capturada em Água Boa (MT) e iniciou-se então o monitoramento desses animais semanalmente até dezembro de 2009.
O cachorro-vinagre na natureza
No momento da captura desta terceira matilha, os adultos foram marcados com rádios transmissores e, durante os 20 meses, foram registradas 245 localizações exatas deles. A área total utilizada pela matilha no estudo é extremamente elevada, variando de 658 km² a 720 km², de acordo com o método de análise, atingindo dimensões superiores a de outros canídeos sulamericanos, como o lobo-guará, que usa entre 65 e 80 km², ou ainda da onça-pintada, maior carnívoro da América do Sul, que usa de 50 a 150 km².
Originalmente encontrado em campos, cerrados e florestas – desde o sul da América Central até o sul da América do Sul – o cachorro-vinagre é encontrado, atualmente, em áreas naturais bem preservadas. Os poucos dados existentes indicam que a espécie nunca foi abundante, havendo registros de sua ocorrência desde o Panamá, Colômbia, leste do Peru, Brasil, Venezuela, Guianas, Paraguai, nordeste da Argentina e leste da Bolívia.
Segundo Lima, a espécie também pode ser encontrada em áreas alteradas. “Neste caso, no entanto, eles utilizam quase que exclusivamente os remanescentes de vegetação preservada, como matas ciliares e outras áreas de preservação permanente, além das reservas legais das propriedades rurais”, esclarece.
Aliás, uma das possíveis explicações para a grande extensão da área utilizada pelo grupo monitorado nos anos de 2008 e 2009 é que os animais precisavam caminhar muito para encontrar áreas preservadas e atender suas necessidades ecológicas. Naquela região do leste do Mato Grosso, a maior parte da vegetação natural de Cerrado foi removida para o cultivo de lavouras e pastagens. Na região que a matilha utilizou, há 70,67% de área cultivada e apenas 29,33% de área preservada. No entanto, quase a totalidade das localizações (95%) foi obtida em áreas conservadas, quando os animais estavam em repouso, caçando ou comendo; e a maioria das localizações em área cultivada foram dos animais se movimentando rapidamente.
O Speothos venaticus tende a se afastar de onde há movimentação de pessoas e animais domésticos. Aliás, a proximidade com animais de estimação, principalmente cachorros, tem sido uma ameaça ao cachorro-vinagre, tanto devido aos ataques sofridos quanto pela transmissão de doenças, entre as quais sarna, parvovirose, cinomose e raiva.
A ação humana e o ataque de cães domésticos, inclusive, foram a causa dos quatro óbitos no grupo monitorado de maio de 2008 a dezembro de 2009, inicialmente composto por dez indivíduos. Lima relata que, no período, foram registrados três nascimentos e quatro óbitos. Duas delas causadas por moradores da região. Quanto às outras duas, há indícios de que foram atacados por cachorros domésticos.
Vinagre
Não há consenso sobre a origem do nome cachorro-vinagre. Alguns estudiosos dizem que é por causa do cheiro forte de sua urina, que lembra o vinagre. Outros falam que é por conta da cor do seu pelo, a mesma do vinagre de vinho – uma mistura de vermelho, marrom e laranja.
Sua aparência é bastante peculiar. Bem diferente de outras espécies de canídeos, o cachorro-vinagre tem as orelhas arredondadas e curtas, assim como as patas e a cauda. Tem entre 60 e 75 centímetros de comprimento e seu peso varia de cinco a sete quilos. A cabeça e a parte superior do pescoço apresentam uma coloração amarelo-palha que vai se tornando mais escura, chegando a castanho-escura ou preta nas ancas, cauda, ventre e patas.
Em cativeiro, eles vivem, em média, 10 anos. No entanto, os pesquisadores ainda não sabem afirmar se o mesmo ocorre na natureza. De acordo com os estudos, a maturidade sexual se completa ao atingir o primeiro ano de vida. “Porém, o cio das filhas fêmeas que permanecem no grupo parece ser inibido pela mãe”, diz Lima. Ele conta que “os machos têm permanecido no grupo por volta de dois anos e meio”. O pesquisador teve a oportunidade de acompanhar a gestação de um cachorro-vinagre e constatar que, entre o acasalamento e o nascimento do filhote, passaram-se dois meses. Segundo o pesquisador, nascem, em média, quatro filhotes a cada gestação.
A observação da espécie revelou que as famílias de cachorro-vinagre são bem organizadas. “Os grupos são formados por um casal monogâmico, por filhotes e juvenis de crias anteriores”, conta Lima. O cachorro-vinagre é o único dos canídeos brasileiros a se organizar em grupos familiares de até 10 indivíduos, podendo reunir filhotes de até três crias consecutivas, vivendo e caçando cooperativamente.
Eles passam a maior parte do tempo abrigados em tocas subterrâneas. Para se alimentar, eles saem das tocas logo cedo em busca de sua presa mais comum: o tatu-galinha (Dasypus novemcinctus). A presa é localizada por meio do faro aguçado dos cachorros-vinagre, que seguem a trilha deixada pelo tatu durante a madrugada no retorno à sua toca.
Uma vez localizado o buraco, o grupo trabalha cooperativamente escavando e puxando o tatu, até retirá-lo do local. “Muitas vezes o animal é abatido ainda no interior da toca. Os cachorros-vinagre consomem a presa vorazmente sem qualquer atrito entre os membros do grupo”, relata o pesquisador.
Sobre a Fundação Grupo Boticário – A Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza é uma organização sem fins lucrativos cuja missão é promover e realizar ações de conservação da natureza. Criada em 1990 por iniciativa do fundador do Boticário, a atuação da Fundação Grupo Boticário é nacional e suas ações incluem proteção de áreas naturais, apoio a projetos de outras instituições e disseminação de conhecimento. Desde a sua criação, a Fundação Grupo Boticário já apoiou já doou U$ 10,6 milhões para 1.265 projetos de cerca de 400 instituições em todo o Brasil. A instituição mantém duas reservas naturais, a Reserva Natural Salto Morato, na Mata Atlântica; e a Reserva Natural Serra do Tombador, no Cerrado, os dois biomas mais ameaçados do país. Outra iniciativa é um projeto pioneiro de pagamento por serviços ecossistêmicos em regiões de manancial, o Projeto Oásis. Na internet: www.fundacaogrupoboticario.org.br, www.twitter.com/fund_boticario e http://www.facebook.com/fundacaogrupoboticario.
(Texto recebido por E-mail, 30/05/2011)