O acordo obscuro firmado para aprovar na próxima terça-feira (24/5) uma desastrosa emenda ao relatório já predatório do deputado Aldo Rebelo escancara o grau de irresponsabilidade ambiental de parlamentares e líderes do PMDB, PSDB e outros partidos acumpliciados. E deveria servir de alerta aos ministros e autoridades de governo que lavarem as mãos diante da proposta, bem como aos órgãos de comunicação para que se aprofundem mais na discussão dessa iminente calamidade.
Se o processo de revisão do Código Florestal já vinha sendo muito mal conduzido no âmbito da Câmara dos Deputados, a partir de ontem (18/5) ficou pior. Um acordo ainda mal explicado, liderado pelo PMDB, que teria sido feito entre líderes de partidos políticos e ministros de estado, poderá levar a um resultado muito mais danoso ao meio ambiente do que o que já vinha sendo delineado pelo relatório apresentado pelo deputado Aldo Rebelo.
Por este acordo, seria aprovado o texto do relatório já apresentado na quarta-feira da semana passada (11/5) e, sobre ele, seria votada uma emenda de plenário (número 164) que conta com o apoio dos líderes do PMDB, PSDB, DEM, PPS, PP e PR, que, na prática, acaba com as áreas de preservação permanente (APPs) previstas no atual Código Florestal.
Vale lembrar que o texto do relatório já havia provocado grande polêmica e o adiamento da votação em plenário, pois o relator havia alterado e suprimido vários dispositivos anteriormente acordados com o governo, no que ficou conhecido como “pegadinhas”, que fragilizaram de várias formas a proteção ao meio ambiente. Assim, se supõe que seja sobre esta base piorada que se procederá a votação da desastrosa emenda parlamentar, mas, assim como já vem ocorrendo desde o início do processo de apreciação da matéria em plenário, ninguém sabe qual será exatamente o texto submetido à votação. Para que o leitor tenha uma ideia da aberração em que se constitui a tal emenda 164, vou transcrevê-la literalmente e comentá-la ponto a ponto, esclarecendo que as impropriedades linguísticas e de técnica legislativa dos seus dispositivos, aqui citados entre aspas, são de reponsabilidade exclusiva dos seus autores:
Caput. “A intervenção ou supressão de vegetação em Área de Proteção Permanente e a manutenção de áreas consolidadas até 22 de julho de 2008, ocorrerá nas hipóteses de utilidade pública, interesse social e de baixo impacto ambiental previstas em Lei, bem como nas atividades agrossilvopastoris, ecoturismo e turismo rural, observado o disposto no parágrafo 3”;
Significa dizer que a supressão da cobertura vegetal em margens de rios, topos de morros e áreas com alta declividade, prevista no Código Florestal em vigor nas hipóteses de utilidade pública e interesse social, poderá passar a ocorrer também para a implantação de pastagens, plantações agrícolas e atividades de turismo, além de outras como se verá abaixo. Com isso, fica claramente desmascarada a retórica ruralista de que a reforma pretendida do CF não implicará novos desmatamentos.
Parágrafo 1. “A existência das situações previstas no caput deverá ser informada no Cadastro Ambiental Rural para fins de monitoramento, sendo exigidas nestes casos a adoção de técnicas de conservação do solo e de água que visem a mitigação dos eventuais impactos”;
Significa que serão os próprios proprietários ou ocupantes das áreas rurais que informarão, através de mera declaração, as áreas situadas em APPs que estão desmatadas e ocupadas com essas várias atividades, para fins de registro no mencionado CAR, que hoje existe apenas em alguns estados. Não há qualquer indicação de quais sejam as “técnicas de conservação do solo e de água” a serem observadas nas áreas já desmatadas (“consolidadas”) ou ainda por desmatar.
Parágrafo 2. “Antes mesmo da disponibilização do Cadastro Ambiental Rural de que trata o parágrafo 1, no caso das intervenções já existentes, fica o proprietário ou possuidor responsável pela conservação do solo e água, conforme determinação agronômica”;
Aqui se afirma que o próprio agrônomo contratado pelo proprietário da área que deve determinar quais seriam as providências de conservação do solo e da água.
Parágrafo 3. “O Programa de Regularização Ambiental previsto nesta Lei, atendidas peculiaridades locais, estabelecerá outras atividades não previstas no caput, para fins de regularização e manutenção, desde que não estejam em áreas de risco e sejam observados critérios técnicos de conservação de solo e água”;
Um programa de regularização (que significa manutenção como tal de áreas ilegalmente desmatadas antes) previsto no texto do relator poderá definir outras atividades, além daquelas já mencionadas no caput da emenda, que poderão ser mantidas em APPs, desde que fora de áreas de risco (que só em situações excepcionais se encontram já definidas) e observando os tais critérios indefinidos de conservação de solo e de água. Com esse artigo, toda e qualquer atividade pode ser permitida em APP.
Parágrafo 4. “O PRA regularizará a manutenção de outras atividades consolidadas em Áreas de Preservação Permanente, vedada a expansão das áreas ocupadas, ressalvados os casos em que haja recomendação técnica de recuperação da referida área”;
É quase uma repetição do parágrafo anterior. Praticamente qualquer outra atividade além das já explicitadas deverá ser regularizada através do referido programa, supostamente ficando vedada a sua expansão, embora o caput preveja novas supressões para atividades agrossilvopastoris e outras. Somente quando o poder público previamente determinar a recuperação da área de APP já desmatada ela não será “regularizada”.
Parágrafo 5. “A supressão de vegetação nativa protetora de nascentes, de dunas e restingas somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública”;
Aqui se limita à hipótese de utilidade pública a supressão de vegetação em novas áreas de proteção de nascentes, dunas e restingas, cuja extensão já está sendo reduzida no texto do relator. As áreas ilegalmente desmatadas até 2008 podem continuar assim.
Parágrafo 6. “A intervenção ou supressão de vegetação nativa em Área de Preservação Permanente de que trata o inciso VI do artigo 4, poderá ser autorizada excepcionalmente em locais onde a função ecológica do manguezal esteja comprometida, para execução de obras habitacionais e de urbanização, inseridas em projetos de regularização fundiária de interesse social, em áreas urbanas consolidadas ocupadas por populações de baixa renda”.
Aqui se estende a possibilidade de supressão definitiva de manguezais situados em áreas urbanas que estejam com a sua função ecológica comprometida. Ou seja, se estimula a degradação dos mesmos para a sua posterior supressão. É a parte final da emenda citada.
Se alguém ainda tinha dúvidas sobre o grau de irresponsabilidade ambiental de parlamentares e líderes do PMDB, PSDB e outros partidos acumpliciados, que agora se pronuncie sobre o crime que está sendo planejado para ser sacramentado na próxima terça-feira (24/05). Quem se calar, consentirá.
Esta observação se aplica aos ministros e autoridades de governo que lavarem as mãos diante deste (suposto) acordo espúrio. E também deveria servir de alerta aos órgãos de comunicação, que vêm dando destaque ao debate sobre a reforma do CF, mas sem se aprofundar suficientemente pelos meandros dessa iminente calamidade.
(Por Marcio Santilli, ISA, 20/05/2011)