O livro “Transgênicos para quem? Agricultura, ciência, sociedade” (Brasília: MDA, 2011), organizado pelos pesquisadores Magda Zanoni e Gilles Ferment, abarca as dimensões agronômica, ecológica, cultural, social e política da expansão da cultura transgênica no Brasil, hoje. E ele traz, já em seu título, a grande questão sobre este tema: Para quem serve os transgênicos no país?
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, Gilles conversou com a IHU On-Line sobre o uso das sementes transgênicas no Brasil e faz uma análise do panorama atual dessa cultura no país e no mundo. “Nesses tempos de mudanças climáticas e crises alimentares, a maior agrobiodiversidade é indispensável para enfrentar esses desafios. É por meio da seleção varietal, realizada nas lavouras dos pequenos agricultores e sofrendo seleção natural, que um máximo de variedades crioulas poderá ser adequadamente mantido e criado. Ora, as variedades transgênicas representam uma ameaça direta para a agrobiodiversidade por meio da contaminação genética”, apontou.
Gilles Ferment é biólogo, com especialização em Fisiologia Animal e Vegetal, Biologia Molecular e Genética, além de mestre em Ecologia e Gestão Ambiental, pela Universidade de Paris. Foi consultor de Biossegurança do Núcleo de Estudos Agrários e Desenvolvimento Rural – NEAD do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que fatores permitiram que o Brasil se tornasse um dos países que mais utiliza sementes transgênicas?
Gilles Ferment – A primeira informação importante de se destacar é que o Brasil já era um país com grandes áreas plantadas com commodities (milho e soja, principalmente) antes da chegada dos transgênicos no campo. Como os primeiros eventos transgênicos desenvolvidos foram nas plantações de milho e soja, uma vez autorizados no país, espalharam-se rapidamente nessas lavouras de commodities.
Além disto, cabe frisar que a maquinaria de lobby é muito forte no Brasil, e as empresas multinacionais já estão bem presentes em vários setores importantes da agricultura. São muito ativas, organizando dias de campo com agricultores, fazendo propaganda nas universidades e escolas de agronomia, financiando projetos de pesquisa, até no domínio público. Cabe destacar também que o Brasil segue em muitos aspectos o modelo social norte-americano – líderes e pioneiros no uso de transgênicos –, preferindo ir na mesma direção do "progresso" estadunidense a que seguir em sentido contrário.
Acredito que a entrada ilegal dos transgênicos no Brasil contribui também para sua rápida disseminação, já que a sociedade civil – e notadamente os agricultores – não era bem preparada, nem informada. A legalização dos transgênicos no país foi feita por decretos, sem ser acompanhada de debates públicos. A pequena parte de cidadãos conscientes do processo de entrada dos transgênicos no Brasil não teve muito tempo para se organizar social e politicamente.
Enfim, cabe ressaltar que o risco – associado ao medo – das contaminações dos cultivos convencionais pelos transgênicos é grande, especialmente no caso do milho. Nesse contexto, muitos agricultores optaram por cultivar transgênicos para não sofrerem de perdas econômicas em caso de contaminação. Com o aumento das áreas plantadas com transgênicos, entramos num ciclo vicioso, uma vez que as cadeias exclusivamente não transgênicas diminuem, da produção de sementes até a segregação/estocagem. Essa tendência vai, então, se autoestimular, como aconteceu nos EUA e no Canadá, ressaltando o caráter totalitário dessa tecnologia.
IHU On-Line – O livro foi lançado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA. Qual a importância da relação do governo com um estudo desse patamar?
Gilles Ferment – Esse livro é mais um conjunto de artigos tratando do tema dos transgênicos que um estudo. Ele compila reflexões sociais, dados científicos, denúncias políticas e relatos de resistências civis, nacionais e internacionais. O MDA, por ter um papel político importante nas questões agrícolas do país, sempre participou do debate sobre transgênicos, notadamente por meio da sua representação própria e daquela dos agricultores familiares na Comissão Técnica Nacional de Biossegurança - CTNBio. O fato do MDA ter apoiado e lançado o livro é coerente com a sua postura nessa Comissão e nas questões agrícolas em geral. Pesquisadores e tomadores de decisão do MDA acreditam que as plantações transgênicas atualmente liberadas comercialmente não passaram por testes suficientes no que diz respeito aos seus impactos no meio ambiente, na agricultura familiar e agroecológica, com suas peculiaridades socioeconômicas. De fato, os transgênicos vêm vendidos na forma de um pacote tecnológico inadequado com os princípios agronômicos dos pequenos agricultores e agricultores agroecológicos, mesmo se esse pacote pode ficar atraente num primeiro tempo.
Nesse sentido, apoiando a publicação desse livro, o MDA permite à sociedade civil organizada e à comunidade científica críticas das plantações transgênicas (na forma na qual estão sendo disseminadas na alimentação e nos campos), de se exprimir e comunicar suas preocupações para um público mais amplo. Esse livro participa do debate complexo dos OGMs, dando espaço a uma minoria que nem sempre tem os meios políticos e financeiros de ser ouvida.
Esperamos, portanto, que o livro será amplamente divulgado no governo federal e nos órgãos estaduais, objetivando difundir os motivos das críticas às plantações transgênicas liberadas por uma maioria pro-OGM da CTNBio, permitindo ao mesmo tempo uma troca de experiências sobre o tema com outros países do mundo, principalmente a França.
IHU On-Line – Como você avalia a Lei de Biossegurança brasileira? Ela é completa?
Gilles Ferment – Esta lei de é bastante completa nos aspectos de avaliação de risco, mas seu principal problema é que não está sendo aplicada. Há mais de um ano, têm-se várias tentativas de flexibilizar a RN 5 (conjunto de itens de biossegurança exigidos pela CTNBio para avaliar os riscos para a saúde e o meio ambiente de um transgênico num pedido de liberação comercial), permitindo às empresas requerentes de não realizar/fornecer estudos importantes no que diz respeito aos riscos para a saúde e para o meio ambiente. Os testes sobre animais grávidos e estudos histológicos, em tecidos biológico, estão principalmente visados nessa simplificação.
Além disto, a própria CTNBio já autorizou para liberação comercial (consumo humano, plantio nos campos...) vários eventos transgênicos que não cumpriram as exigências da RN5. Em outras palavras, há hoje no Brasil plantações transgênicas que nem passaram pelos testes básicos de biossegurança exigidos pela lei correspondente.
Por outro lado, o Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, supostamente competente para avaliar os impactos socioeconômicos das plantações transgênicas, também nunca cumpriu seu papel. Convocado vários vezes no ano de 2008, ele apenas confirmou a competência da CTNBio em avaliar os riscos para a saúde e para o meio ambiente dos transgênicos, rejeitando argumentos da sociedade civil, de uma minoria de cientistas críticos e de próprios órgãos governamentais especializados nos temas da saúde pública e do meio ambiente (Anvisa e Ibama respectivamente). A Política Nacional de Biossegurança também não está sendo desenvolvida adequadamente.
Enfim, não pode-se omitir nesta resposta o fato de que o Princípio da Precaução, explícito no 1º artigo da Lei de Biossegurança, nunca foi aplicado, apesar de varias dúvidas no que diz respeito à biossegurança de muitas plantações transgênicas hoje liberadas no Brasil. Este princípio, que recomenda mais pesquisa em casos de dúvidas, é até visto por uma maioria dos membros da CTNBio como “anticientífico, inventado por quem quer derrotar a ciência”.
IHU On-Line – Que elementos você pode apontar como chave da resistência da França em relação aos transgênicos?
Gilles Ferment – A alimentação é um tema importante na França, e boa parte da população tenta procurar alimentos saudáveis. Essa tendência cresce, já que o povo francês sofreu várias crises alimentares (frango com dioxinas, vaca louca, febre aftosa...). Hoje em dia, todo mundo sabe o que é o princípio da precaução, e apoia o governo em aplicá-lo quando a segurança alimentar e a proteção do meio ambiente estão em jogo.
Paralelamente, a sociedade civil está bem organizada, vigente às tentativas de imposição de produtos diversos por parte de empresas multinacionais. Graça a isto os cidadãos ficaram mais informados e o tema pegou importância em diversos tipos de mídias, permitindo um debate em várias esferas da sociedade. Muitos pesquisadores e líderes de movimentos sociais criticaram abertamente essa nova tecnologia, sobre os aspectos biológicos, agronômicos, socioeconômicos, éticos... Nesse sentido, os principais argumentos das empresas de biotecnologia para adotar o cultivo de plantações transgênicas, pesticidas em grande escala, sofreram muita oposição por parte dos cidadãos. Por isto, desconfiam que os OGMs podem acabar com a fome no mundo já que são vendidos pelas mesmas empresas multinacionais que se recusam em abrir mão de algumas patentes a fim de desenvolver medicamentos genéricos na África.
Enfim, cabe ressaltar que o Instituto de Pesquisa Agronômica Francês – Inra, já se pronunciou várias vezes que não irá desenvolver projetos comerciais com plantações transgênicas, o que lhe permite trabalhar com certa independência. No Brasil, a Embrapa já desenvolveu plantas transgênicas para liberação comercial, em parceria com empresas multinacionais de agroquímicos.
IHU On-Line – A produção de transgênicos pode implicar no adiamento da reforma agrária e da produção sustentável?
Gilles Ferment – No que diz respeito à reforma agrária e suas possíveis interações com o plantio de transgênicos, sei que algumas ONGs da Argentina e do Uruguai apontaram correlações entre uma recente concentração de terra e a adoção massiva da soja RR. Mas não me sinto competente suficientemente no tema para confirmar cientificamente que essa correlação corresponde a uma relação de causa e efeito, e em quais proporções.
Entretanto, no que diz respeito à produção sustentável, é com certeza que não combina com transgênicos – pelo menos no meu entendimento do conceito de sustentabilidade. Além de critérios econômicos, o conceito tem que englobar as dimensões ecológicas e sociais. Ora, se ainda há polêmicas sobre os impactos no meio ambiente das variedades Bt, existem vários trabalhos que mostram um maior uso de agrotóxicos em lavouras transgênicas “tolerantes” a um herbicida (soja RR associado ao glifosato, por exemplo), tanto nacional como internacionalmente. E com o aumento drástico de plantas “daninhas” resistentes ao glifosato nessas lavouras, num ciclo vicioso, as quantidades de glifosato e outros agrotóxicos ainda mais perigosos aumentam continuamente. Cabe ressaltar, contrariamente às afirmações recorrentes dos vendedores de glifosato, que esse princípio ativo e seus herbicidas derivados possuem mecanismos biológicos teratogênicos, cancerígenos e de perturbadores endocrinólogos.
Por outro lado, o patenteamento das sementes transgênicas, associado a um sistema perverso de fiscalização das empresas de biotecnologia, vai dificultando as tentativas de produção sustentável. Vários agricultores agroecológicos – e até alguns certificados orgânicos – já viram suas lavouras de milho e de soja contaminadas, perdendo seus esforços de trabalho e seus preços de venda preferenciais.
Enfim, nesses tempos de mudanças climáticas e crises alimentares, a maior agrobiodiversidade é indispensável para enfrentar tais desafios. É por meio da seleção varietal, realizada nas lavouras dos pequenos agricultores e sofrendo seleção natural, que um máximo de variedades crioulas poderá ser adequadamente mantido e criado. Ora, as variedades transgênicas representam uma ameaça direta para a agrobiodiversidade por meio da contaminação genética.
IHU On-Line – Tem crescido bastante o número de pessoas com alergia alimentar e as epidemias de câncer são evidentes. Esses prognósticos podem estar relacionados aos transgênicos, agrotóxicos e a outras substâncias que estão presentes nos alimentos industrializados?
Gilles Ferment – Essa pergunta é muito boa e infelizmente não pode ser respondida claramente agora. Certamente, o ser humano está em contacto com um número crescente de substâncias tóxicas e alergênicas diversas, na água, no ar e também na alimentação. Toxinas e alergenes podem resultar em efeitos biológicos no curto ou no longo prazo, e é nessa segunda categoria que a falta de dados é mais alarmante. Testes laboratoriais básicos podem apontar um risco fraco de alergenicidade a um determinado produto, mas um contato prolongado e frequente desse mesmo produto pode resultar no desenvolvimento de uma hipersensibilidade em alguns tipos de pessoas. No que diz respeito às toxinas, os efeitos cancerígenos, mutagênicos, teratogênicos ou de perturbadores endocrinólogos (desregulando as funções hormonais) serão detectados só depois de anos de consumo. De fato, há uma grande falta de estudos epidemiológicos com alimentos transgênicos. Mas já temos estudos que mostram que as quantidades de agrotóxicos teoricamente presentes nas plantas, com destaque para as transgênicas “tolerantes” aos herbicidas, são suficientes para resultar em efeitos biológicos nefastos à saúde humana.
Estudos epidemiológicos são complexos e infelizmente serão a cada vez mais difíceis de serem realizados, visto que os alimentos transgênicos entram na composição de grande parte de nossos alimentos (na forma de óleos, lecitina, farinha...). Nesse sentido, será difícil achar um grupo de pessoas alimentando-se exclusivamente de produtos isentos de transgênicos (grupo controle), para compará-lo a um grupo de pessoas com dieta “normal”, contendo transgênicos (grupo teste).
Mas cabe ressaltar que centros de pesquisa públicos ainda têm possibilidades de realizar esses testes, pelo menos em alguns países onde existe uma rastreabilidade bem conduzida. Nesse contexto, podemos frisar que a falta de estudos está ligada à falta de vontade política, implicitamente orientada pelos lobbies dos agrotóxicos e dos transgênicos.
Um paralelo interessante diz respeito ao amianto, o qual demorou vários anos para os poderes públicos tomarem providências de proteção dos trabalhadores apesar das fibras cancerígenas serem responsáveis por um tipo específico de câncer/doenças. A relação de causa e efeito era muito clara, já que “o mesotelioma é uma forma rara de tumor maligno, mais comumentemente atingindo a pleura, membrana serosa que reveste o pulmão, mas também incidindo sobre o peritônio, pericárdio e a túnica vaginal e bolsa escrotal” (citação extraída do Instituto Nacional do Câncer). E no caso do amianto, cabe ressaltar também que o público era específico (trabalhadores em contacto com amianto), enquanto no caso dos transgênicos dez respeito à população geral. Os principais países exportadores de amianto (dentro os quais está o Brasil) ainda negam, pelo menos parcialmente, os efeitos negativos do amianto sobre a saúde, e é de se esperar que os principais produtores de transgênicos também “omitirão” aprofundar trabalhos apontando riscos para a saúde.
IHU On-Line – A Lei de Rotulagem de alimentos está em vigor desde 2004. Como você avalia esses sete anos da lei?
Gilles Ferment – Esta lei, explicitada no decreto nº 4680/03, está sendo pouca aplicada. Demorou anos antes de ver aparecer nos rótulos dos óleos de soja e margarina o “T” de transgênico dentro do seu triângulo amarelo. Hoje, há muitos produtos industriais basicamente constituídos de soja e de milho que têm o rótulo de transgênico. Mas ainda existe muito a ser feito, notadamente no que diz respeito às conservas, os pratos preparados, as barras de cereais... Nos restaurantes o símbolo é inexistente, mas há cada dia mais probabilidade dos alimentos serem fritos em óleos de soja transgênica e o milho verde ser geneticamente modificado. Os produtos in natura são infelizmente os menos rotulados e aqueles que apresentam os maiores riscos.
Muitos esforços de rotulagem e, para tanto, de rastreabilidade são necessários. Os consumidores têm pleno direito em consumir alimentos não alterados geneticamente (igualmente para alimentos livros de agrotóxicos, orgânicos), tanto de um ponto de visto ético quanto do ponto de vista constitucional. A pergunta de “quem tem que pagar” para os cidadãos poderem consumir livremente de transgênicos não está bem explicitada na Lei de Rotulagem. Mais uma vez, o debate entre os poderes públicos, os cidadãos e as empresas de biotecnologias se faz necessário.
(IHU-Unisinos, 13/05/2011)