Agronegócio não é agricultura. É "des”-envolvimento agrário. Trata-se de um conjunto de técnicas e instrumentos criados a partir de laboratórios urbanos e impostos à terra para fazer dinheiro e sustentar o Estado. O ministro da Agricultura é ministro do "des”-envolvimento agrário e não da Agricultura. Uma confusão propositada que o governo colonial português inaugurou com as sesmarias e seus donatários. Homens que manejam a partir de fora e "des”-envolvem o homem da terra, transformando-o em mero "produtor rural”, pessoa dominada, à distancia, por uma elite urbana. O agronegócio transforma tudo, inclusive a mãe-terra, em produto, mercadoria.
Ao agro-negociante não importa a saúde da terra e nem a biodiversidade nela existente. É essencialmente devastador. Não lhe importa a situação, o estado em que deixa a terra depois da colheita. O agronegociante é produtor rural, pessoa (des)envolvida da terra e envolvida com equipamentos, máquinas e produtos químicos que obrigam a terra e a sua gente a sustentar o seu negócio. A pessoa vale pelo que produz ou pelo que sugere para melhorar o empenho dos diferentes equipamentos e das engrenagens das máquinas que administram e coordenam o agro-negócio. Ele também reduz a variedade das sementes. E domina com egoísmo as que lhe interessam. Devasta tudo para implantar o que é solicitado pelo mercado, pelos donos da máquina e do dinheiro. Interessa-lhe sustentar o governo que o apóia, acumulando divisas com exportações. Um governo ficção, sem vida própria que administra números, esquecido de suas raízes na vida comunitária.
Ao agro-negociante e aos governantes que o sustentam, não importam comida sadia e nem o bem-estar das pessoas, animais e plantas. Nem eles mesmos tem coragem de consumir os seus produtos. Espoliam a terra e a vida em todas as suas dimensões. Desencadeiam um processo doentio criado por cabeças urbanas. Pois toda a metrópole é uma chaga na mãe-terra, onde as pessoas humanas se transformam em bactérias mortais. Conscientes de seus malefícios, o agro-negociante e os governantes que o sustentam confundem, tratando os conceitos de agricultura e agronegócio como equivalentes.
Ao longo de toda a história humana, o agricultor foi e é a pessoa que cultiva a terra com autonomia, dela vive e nela faz ciência, cultura. Não podemos confundir agronegócio com o que praticaram os povos indígenas nas Américas, nem com a ciência dos pequenos agricultores tradicionais do mundo inteiro e nem com a agricultura familiar voltada para a policultura e o bem-estar da família e da comunidade. O agricultor estuda a natureza na suas peculiaridades, envolve toda a sua vida na terra e não apenas durante o período de uma safra ou de uma tese de mestrado ou doutorado. Da terra retira o necessário para a sua mesa. O excedente troca com vizinhos e amigos ou vende ou até exporta. Mesmo valendo-se de máquinas e equipamentos eles não o escravizam. Agricultor é o sábio da mãe-terra. Ele se move com a curiosidade de um cientista no meio deste "jardim do éden”, onde tudo tem valor. Transforma e seleciona as variedades. Alegra-se em transferir, gratuitamente, as suas descobertas aos vizinhos, às comunidades vizinhas (sementes, mudas, técnicas...). Foi mediante este saber coletivo que os povos indígenas das Américas criaram inúmeras variedades de alimentos. Muitas até hoje alimentam a vida e colorem a Amazônia. Outras muitas foram extintas, devido às exigências seletivas do mercado.
Desde que chegamos à Amazônia, sentimos a necessidade de uma Reforma Agrária baseada na experiência dos povos que aqui viveram e conviveram felizes com todo o tipo de fenômenos naturais, à frente o principal deles: as enchentes dos rios.
No ano passado tivemos a maior cheia de que se tem notícia na Amazônia. Uma calamidade geral com helicópteros voando para todos os lados em socorro das pessoas. Em 1983 morando em Itacoatiara/AM, durante uma grande cheia do rio Amazonas, em frente a nossa casa (ali onde está hoje a Rodoviária), erguia-se um acampamento de "flagelados” da enchente. Sentíamos a dor e a impotência do povo indefeso diante daquela situação. E sobre nossa experiência de mais de 20 anos com povos indígenas da Amazônia, começamos a elaborar propostas de Reforma Agrária, "para quando o nosso ‘PT’ chegasse à Presidência da República...”
Partimos da realidade descrita pelos primeiros cronistas da Bacia amazônica. Das margens densamente povoadas, das terras altas das margens que eram então comunitárias, terras da União que garantiam a união e a alegria de todos. Terra comum que durante as enchentes, se transformavam nos locais de encontros acabando em festas, não menos animadas do que quando da vazante, quando acampavam nas praias e em noites de luar celebrando prolongadas "piracaias”, ou "festas do peixe”. Partilhando esta história com as Comunidades Eclesiais de Base-CEBs, fazíamos "piracaias”, assando aos domingos o peixe em comum, em lembrança desta linda realidade amazônica.
No que tange a preservação da vida em nosso Planeta, estamos convencidos que uma boa Reforma Agrária libertaria a inteligência e a criatividade das pessoas do campo e da cidade, dispensando qualquer nova burocracia estatal. Investir na sabedoria popular de hoje sem desprezar a sabedoria popular de ontem. Graças à ciência aplicada pelos povos da Amazônia de ontem, nenhum arqueólogo ainda localizou um só esqueleto humano com sinais de desnutrição na calha amazônica.
Por tudo isto, não mais doar bilhões para o "des”envolvimento da mãe-terra, mas destinar, recursos financeiros e esforços para desatolar as pessoas presas nas locomotivas da morte. Assim, por exemplo, uma reforma agrária nos latifúndios do Estado de São Paulo poderia devolver uma esperança ilimitada aos paulistanos em desespero crescente. Segundo pesquisa recente "já passam de 50% os paulistanos que deixariam a capital se pudessem” (O Estado de S. Paulo/27-01-11).
NÃO ao Código Florestal do Aldo Rebelo; mas, SIM à Reforma Agrária. É hora de partirmos para o confronto, antes que esse capcioso e necrófilo Código reduza ainda mais a expectativa de vida em nosso mais querido planeta.
(Por Egydio Schwade, Casa da Cultura do Urubuí-CACUÍ/Amazonas, Adital, 20/04/2011)