O cantor e compositor Alceu Valença é um ilustre admirador da cana-de-açúcar. A pequena Quirinópolis, no sul de Goiás, nunca mais foi a mesma depois da chegada de duas usinas de açúcar e etanol. O etanol não compete com os alimentos. A cana-de-açúcar já é segunda maior fonte de energia limpa do país.
Essas e outras informações positivas sobre setor sucroalcooleiro estão compiladas numa cartilha. O problema é que essa propaganda está sendo trabalhada como disciplina em escolas públicas no interior do Brasil. O Projeto Agora é de responsabilidade da União da Indústria de Cana-de-Açúcar (única) e atinge educandos da 7ª. e 8ª. séries, com idade entre 12 a 15 anos, em uma parceria público-privada entre instituições governamentais, sindicatos e empresas como Itaú, Monsanto e Basf.
Cem municípios da região centro-sul, espalhados por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná e Goiás, contam com o projeto. Resumidamente, a apostila usada em sala de aula foca o desenvolvimento do setor canavieiro no Brasil e o empreendedorismo dos grandes latifundiários sob a ótica do progresso, sem apresentar aos alunos qualquer exemplo que venha desvelar contradições trabalhistas ou ambientais. A apostila não pondera, por exemplo, as contradições do trabalho escravo e a superexploração dos cortadores de cana-de-açúcar em tempos atuais. E que a monocultura e o latifúndio sempre foram “avessos à diversidade produtiva”.
No mínimo, um problema pedagógico para a economista e educadora Roberta Traspadini. “Não aparecem as lutas ocorridas nos territórios, as disputas reais vividas pelos diversos sujeitos sociais, e a produção de processos políticos antagônicos sobre a apropriação do trabalho”, critica, em recente artigo.
Ela reforça ainda que o ensino do agronegócio dentro da escola pública passa por uma “validação da lógica dominante voltada para os grandes projetos, para a incorporação de um ser pertencente à vantagem competitiva do grande capital, ou um ser excluído desta possibilidade”. Não só isso, denuncia-o como um processo de construção da intencionalidade “educativa” do capital que objetiva formar um “exército industrial de reserva consciente de sua necessidade de inclusão dentro da ordem”.
Naturalização
Não é apenas a Unica que tem seguido essa estratégia de propaganda dentro do ensino público. Em Ribeirão Preto (SP), as concepções do agronegócio estão sendo repassadas aos estudantes por meio do projeto “Agronegócio na Escola” e têm gerado polêmica na cidade. O Conselho Municipal de Educação entrou na briga e pediu detalhes sobre o projeto pedagógico. Desenvolvido em parceria com a Associação Brasileira do Agronegócio da região de Ribeirão Preto (Abag-RP), o programa é utilizado nas aulas a alunos do 8º e do 9º ano desde 2009. Anteriormente, o projeto foi aplicado por dez anos na rede estadual. Cerca de 112 mil estudantes da região já passaram pelo curso.
A Abag-RP oferece cartilhas aos estudantes e um vídeo, que é utilizado por professores nas aulas. A cartilha aborda temas como o surgimento da agricultura e sua modernização. Professores são levados para conhecer usinas e são capacitados pela entidade.
A Secretaria da Educação do município e a entidade patronal defendem que o conteúdo aborda temas regionais importantes, tanto do ponto de vista econômico, quanto do ponto de vista social, e que trabalham simplesmente com a realidade em que os alunos estão imersos.
Mas não é assim que enxerga a integrante do Conselho Municipal de Educação de Ribeirão Preto, Ana Paula Soares da Silva. Na visão dela, é importante que as crianças e adolescentes conheçam o agronegócio; o problema ocorre quando o material auxilia na naturalização dos problemas gerados nesse meio. “Esse material ajuda a naturalizar as desigualdades, as relações de propriedade e de dominação”, argumenta. Mesmo dentro da linha da educação contextualizada, segundo ela, outras práticas deveriam ser abordadas, como a agroecologia, por exemplo.
“Dominação”
Outro programa pedagógico polêmico, o Projeto Escola no Campo, a exemplo dos já mencionados, nasceu em 1991, por meio de uma parceria da Syngenta, transnacional do ramo de sementes, com a Secretaria de Educação do Estado de São Paulo. Ampliou-se para outros estados e até 2007 já havia atingido cerca de 405 mil crianças de comunidades rurais do país.
Maria Cristina Vargas, do setor de educação do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), relata o quão grave é a transmissão dessas ideias à população jovem do campo. Segundo ela, por meio desse projeto tenta-se convencer os estudantes, por exemplo, da positividade da relação entre sustentabilidade e utilização dos agrotóxicos. “Eles trabalham que o saudável é o bonito, é a plantação limpa, sem ter a diferenciação de outras espécies, a diversidade de culturas”, denuncia a educadora.
Segundo Ana Paula Soares da Silva, não é necessário ir muito a fundo no debate para concluir que os materiais pedagógicos distribuídos pelo agronegócio tentam esconder diferenças e intenções de “classe”. “A intenção é de que as pessoas vão aceitando isso, deixando de ser o sujeito histórico, com a possibilidade de mudar a história. Não são projetos que incluem, não são projetos de justiça social; mas de dominação”, arremata.
O Brasil de Fato entrou em contato com assessoria de imprensa da Unica, que afirmou ainda não haver um posicionamento sobre as críticas ao Projeto Agora.
(Brasil de Fato, 13 -04-2011)