Há pouco mais de uma semana, o mundo acompanha atentamente as notícias sobre o vazamento de material radioativo na usina nuclear de Fukushima, no litoral nordeste do Japão. O governo e a Tepco, empresa que administra a planta, divulgam informações pouco precisas sobre o desastre, cujo impacto real só poderá ser medido quando a emanação de energia for contida. Todas as especulações sobre a contaminação são baseadas nas bombas atômicas jogadas pelos norte-americanos em Hiroshima e Nagasaki para forçar a rendição do Japão, na Segunda Guerra Mundial, e em acidentes nucleares anteriores. Esses episódios — em número muito reduzido, mas espetacularmente horrorosos — escancaram o poder perverso de partículas e raios invisíveis, capazes de destruir as moléculas do DNA dos seres vivos. Reportagem de Carolina Vicentin, no Correio Braziliense.
Acidentes com material radioativo são assustadoramente perigosos justamente porque os elementos têm tanta energia que conseguem desestabilizar qualquer molécula à frente (veja infografia). Eles possuem a capacidade de ionizar, ou seja, separar as partes das moléculas presentes no corpo, criando os chamados radicais livres — substâncias que provocam a morte prematura das células ou impedem a sua reprodução. “As células também sofrem aberrações cromossômicas, mutações que provocam problemas na hereditariedade. Isso desencadeia, por exemplo, malformação fetal em gestantes que tenham sido submetidas à radiação”, detalha a professora Vergínia Crispim, da pós-graduação em engenharia (Coppe) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
No corpo humano, o processo de contaminação depende muito da água presente no organismo. Uma vez que o líquido corresponde a cerca de 70% do homem, ele se torna uma espécie de condutor do material radioativo. “É o que nós chamamos de dano indireto. A radiação atinge todas as moléculas, mas, como as de água são mais abundantes, elas se tornam mais vulneráveis”, diz Samuel Avelino, chefe da área de radiologia do Hospital Universitário de Brasília (HUB).
Nem todas as substâncias, porém, chegam ao corpo da mesma forma. Para os elementos ionizantes, há uma classificação quanto à sua capacidade de alcance e, consequentemente, conforme as formas de proteção. Partículas alfa e beta são as que causam menos danos, porque é mais fácil barrá-las. O problema mesmo são os raios gama e X (aqueles mesmo liberados por aparelhos de radiografia). Esses raios conseguem penetrar as camadas mais profundas da pele e só são freados com estruturas robustas — paredes de concreto ou chumbo, por exemplo. Mesmo assim, dependendo da quantidade de material liberado, e do tempo de exposição, pode haver contaminação.
A professora Vergínia Crispim esclarece que há uma série de fatores a serem considerados antes de dar um veredicto sobre os estragos no Japão. Coisas como a temperatura e a direção dos ventos são determinantes na dissipação na nuvem radioativa. “Algumas informações davam conta de que a radiação já teria chegado à capital, Tóquio, e isso alarmou as pessoas. O nível de alerta, porém, depende da concentração desse material por lá”, diz a professora da UFRJ.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) determina os níveis máximos de exposição aos quais as pessoas podem ser submetidas. Quem não trabalha em usinas não deve estar receber mais de 1 miliSievert por ano. O miliSievert é uma unidade de medida criada especialmente para calcular os níveis de radiação nociva ao corpo. Já os trabalhadores de fábricas nucleares podem receber, no máximo, 20 miliSieverts por ano, ou 100 miliSieverts a cada 5 anos.
O valor diz respeito a todos os elementos radioativos encontrados nessas regiões. “Os elementos radioativos liberados na usina japonesa são produto da fissão nuclear, da quebra dos núcleos de urânio (a principal substância que alimenta as usinas)”, explica Sandra Bellintani, do Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (Ipen), órgão ligado ao Ministério da Ciência e Tecnologia. Iodo 131 (I-131), estrôncio-90 (Sr-90) e césio-137 (Cs-137) são as principais substâncias formadas nesse processo.
Preferências
Vergínia Crispim, da pós-graduação da UFRJ, afirma que cada um dos elementos radioativos costuma atacar uma parte do corpo. O estrôncio chega com mais força ao sistema ósseo, o polônio (outra substância ionizante) ao baço e aos rins e o iodo, à glândula tireoide. A exceção é o césio, que penetra no corpo humano como um todo. O césio foi, inclusive, responsável pelo maior acidente radioativo no Brasil. Em 1987, em Goiânia, uma cápsula da substância presente em um antigo aparelho de raios X foi aberta, espalhando a contaminação. Um levantamento da Comissão Nacional de Energia Nuclear indicou que pelo menos 112,8 mil pessoas foram expostas aos efeitos do acidente.
As informações sobre a ação dessas substâncias ajudam as autoridades que trabalham com tratamentos profiláticos no Japão. Uma das medidas foi dar às pessoas que moravam na região próxima à Fukushima comprimidos de iodo não ionizante (sem o poder destrutivo do iodo radioativo). A ideia é impedir que a substância nociva chegue à tireoide, um dos órgãos mais sensíveis à radiação. “Quanto mais intenso é o metabolismo de um tecido, mais suscetível ele é a esses efeitos. Células que se renovam e se multiplicam com facilidade tendem a ser mais atingidas. É por isso que o cérebro é uma das regiões menos afetadas”, observa o radiologista do HUB Samuel Avelino.
A pesquisadora do Ipen afirma que as cápsulas de iodo não ionizante podem evitar os danos na tireoide. “A meta é fazer com que todo o iodo estável seja absorvido pela glândula, a qual ficará bloqueada e impedirá a absorção do iodo radioativo”, diz Sandra Bellintani. Se isso der certo, a substância nociva será excretada e não trará problemas, pelo menos, para essa parte do corpo.
Alertas tardios
O governo japonês elevou, na sexta-feira, para 5 o nível de gravidade do desastre na usina de Fukushima. Especialistas internacionais, porém, criticaram a demora em aumentar o alerta e há pessoas que questionam o posicionamento das autoridades. A Autoridade de Segurança Nuclear da França (ASN), por exemplo, afirmou que o acidente já atingiu nível 6, em uma escala que vai até 7.
Sem riscos
Essa radiação nada tem a ver com aquela emitida por celulares e antenas de rádio e televisão. A onda que sai desses aparelhos também contém energia, mas a emissão é controlada a partir de limites impostos pela Organização Mundial da Saúde. No Brasil, a Anatel pegou esses indicadores e os dividiu por 50 para determinar o máximo permitido em território nacional. Ou seja, mesmo que aqui ocorra um acidente nessa área, ainda haverá uma grande margem de segurança.
(EcoDebate, 24/03/2011)