“A questão da escassez tem que ser vista da seguinte forma: existe água em abundância no planeta? Sim. Existe água com qualidade? Sim. Existe água em abundância, com qualidade onde é necessário? Em alguns lugares, não. A dificuldade é a distribuição política da água. É fazer essa água estar junto aos agrupamentos humanos, sem a fonte estar contaminada. Então, se isso não ocorrer, a água se torna um bem raro, portanto, uma mercadoria mais cara”. A reflexão é do professor Wagner Costa Ribeiro, autor do livro Geografia Política da Água (São Paulo: Editora Annablume, 2008). Na entrevista que segue, concedida, por telefone, à IHU On-Line, ele lembra que hoje, em países pobres, inclusive em parte do Brasil, a maior parte das internações hospitalares ocorre em função da contaminação a partir da água. “São populações que sofrem doenças a partir da água. Em vez da água ser uma substância para repor elementos importantes para a vida, ela acaba se transformando num vetor de doença”.
Geógrafo e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo – USP, Wagner Ribeiro é professor do Departamento de Geografia e do Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental da USP. Obteve a livre docência também na USP, e realizou estudos de pós-doutorado na Universidad de Barcelona. É coordenador do Grupo de Pesquisa de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos Avançados da USP. Além da obra já citada, é autor de outros livros, entre os quais citamos A ordem ambiental internacional (São Paulo: Contexto, 2001).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Em que sentido podemos pensar na água como fonte de riqueza? Como entender que a água é vista como mercadoria em escala internacional?
Wagner Costa Ribeiro – Ela é vista como fonte de riqueza porque é um insumo fundamental para a produção agrícola e industrial, mas é, principalmente, uma substância vital para a reprodução da vida no planeta, inclusive da espécie humana. A água já é vista como mercadoria em alguns países do mundo, inclusive no Brasil, pois se cobra por ela, não apenas pelo serviço de coleta, tratamento e distribuição, mas também pela própria água.
IHU On-Line – A justificativa para essa cobrança é a escassez?
Wagner Costa Ribeiro – A questão da escassez tem que ser vista da seguinte forma: existe água em abundância no planeta? Sim. Existe água com qualidade? Sim. Existe água em abundância, com qualidade onde é necessário? Em alguns lugares, não. A dificuldade é a distribuição política da água. É fazer essa água estar junto aos agrupamentos humanos, sem a fonte estar contaminada. Então, se isso não ocorrer, a água se torna um bem raro, portanto, uma mercadoria mais cara.
IHU On-Line – O que podemos entender pelo conceito defendido pelo senhor na obra Geografia Política da Água?
Wagner Costa Ribeiro – A geografia política da água procura estudar justamente, de que maneira, a apropriação da água pela espécie humana ocorre ao longo dos tempos. Isso tem que ser analisado da seguinte maneira: nós temos estoques de água naturais, sejam subterrâneas ou que correm nos rios, e isso aconteceu por processos naturais. Porém, a apropriação dessa água ocorre por processos históricos, sociais, políticos, que envolvem trocas comerciais, guerras, domínios territoriais. Geografia Política da Água procura mostrar de que maneira ocorreu a apropriação desses recursos naturais, no caso, a água, a partir dos processos históricos. Muitas vezes, infelizmente, com conflitos ou com trocas comerciais desiguais.
IHU On-Line – Quais as consequências sociais e ambientais do acesso desigual aos recursos hídricos no planeta?
Wagner Costa Ribeiro – As consequências sociais são as mais relevantes, embora hoje podemos falar mais em consequências socioambientais. Mas a situação é mais grave do ponto de vista social, pois, hoje, em países pobres, inclusive em parte do Brasil, a maior parte das internações hospitalares ocorre em função da contaminação a partir da água. São populações que sofrem doenças a partir da água. Em vez de a água ser uma substância para repor elementos importantes para a vida, ela acaba se transformando num vetor de doença. O problema é que o acesso à água ainda é desigual. Dia 18 de abril, haverá uma corrida de rua no mundo inteiro, de seis quilômetros, para justamente chamar a atenção de que a distância média que as pessoas percorrem para conseguir água potável, muitas vezes, abastecendo a lata d’água que carregam na cabeça, é de seis quilômetros. Do ponto de vista ambiental, a principal consequência é a introdução de elementos estranhos na água, no caso, a contaminação. Isso acontece pelo uso intensivo na agricultura, pelo uso intensivo de agrotóxicos que acabam contaminando a água, e também o processo de industrialização, que usa a água como insumo para a produção e depois não trata a água antes de devolvê-la para o rio. A espécie humana também tem sua parcela importante, porque,no caso brasileiro, principalmente, nós ainda não tratamos o esgoto, que acaba sendo uma fonte de contaminação da água também.
IHU On-Line – Que cenário podemos vislumbrar a curto prazo a partir de crises localizadas de falta de água? Fala-se até em guerras futuramente envolvendo a disputa pela água…
Wagner Costa Ribeiro – Quando se fala em guerra por água, é importante lembrar que já houve, no passado, situações de tensão extrema, que levaram à confrontação. Guerra não significa necessariamente a confrontação armada, pode ser uma relação hostil, uma troca de tensão etc. Às vezes, declarações tensas já são interpretadas como um conflito. Então, já tivemos conflitos pela água e certamente teremos outros. E aí já temos áreas apontadas e conhecidas como de tensão. A mais grave no planeta hoje é a zona entre Palestina e Israel. E também temos a fronteira entre México e Estados Unidos.
IHU On-Line – Em que medida a crise da escassez de água afeta a questão do saneamento básico?
Wagner Costa Ribeiro – A relação é direta. Se não tivermos a capacidade de tratar o esgoto, estaremos contaminando os rios. As pessoas gostam muito de utilizar tinta no cabelo, passar xampus diferentes, e esquecem que, depois, isso tudo é levado pela água, vai se concentrar em larga escala, e em metrópoles como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, com milhões de habitantes jogando esses insumos na água, imagine a contaminação que isso gera, só para falar da questão do esgoto.
IHU On-Line – Como fazer com que as políticas públicas beneficiem o uso coletivo e igualitário da água?
Wagner Costa Ribeiro – Temos hoje os comitês de bacia que deveriam ser o instrumento de determinação do uso da água a partir dos planos de bacia hidrográfica. Em algumas regiões do país, isso já está mais avançado, e, em outras, não está. Há muito desequilíbrio no Brasil em relação a essa questão. Infelizmente, há situações onde predominam os interesses dos grandes usuários de água, que são principalmente as empresas de saneamento básico.
(Por Graziela Wolfart, IHU On-line, Ecodebate, 23/03/2011)