Porto Alegre tem 1.409.939 habitantes, conforme o Censo de 2010. A cidade tem uma frota de 688.845 veículos, segundo o Departamento Estadual de Trânsito. Ou seja, há um carro para cada 2,04 moradores. Essa é a razão dos congestionamentos e da loucura diária que se vê no trânsito da cidade. É para discutir a questão, apontar outros pontos de vista sobre o tema, propor possibilidades e tornar visíveis as consequências dessa equivocada política de mobilidade urbana que privilegia o veículo particular, que o Jornal do Comércio falou com especialistas em transporte urbano, psicólogos, gestores, vítimas e parentes de vítimas de violência no trânsito e dá início hoje a uma série de quatro reportagens tratando sobre o tema.
Uma das maiores vantagens de Porto Alegre sobre as outras grandes metrópoles brasileiras sempre foi o fato de, apesar de ser a Capital e, por isso, ser o centro nervoso do Estado, a cidade sempre manteve certo ar de cidade média, em alguns bairros até de cidade pequena. Essa foi uma das razões para algumas pessoas não cogitarem deixar Porto Alegre para ir viver em outra capital do País. O quadro, porém, há algum tempo já não é mais esse. Porto Alegre inchou e, de carona com o crescimento, surgiu um problema que já é extremamente sério, mas que tende a aumentar ainda mais: o trânsito.
Conforme dados do Departamento Estadual de Trânsito (Detran-RS), em 2001, a frota de veículos em circulação na Capital era de 646.547 unidades. No ano passado, 686.142 veículos circulavam pelas ruas da cidade. O aumento de 6,1%, ou 39.595 unidades em circulação, em nove anos, pode não parecer muito grande. Entretanto, se for observada a evolução desse crescimento, vê-se que, em 2009, eram 659.418 veículos nas ruas. Assim, observa-se que, de 2001 a 2009, “apenas” 12.871 veículos entraram na frota. No entanto, de 2009 a 2010, 26.724 novos carros passaram a circular na Capital.
Ainda conforme dados do Detran-RS, uma média de 93 carros novos foram emplacados por dia no ano passado na Capital. Em 2002, eram 23 novos veículos diariamente. Diante desse cenário de constante crescimento na quantidade de veículos nas ruas e, por outro lado, a falta de investimentos e de políticas públicas que incentivem o uso de meios alternativos de locomoção, é de se estranhar que alguém ainda se surprenda com os dados a seguir.
Em 2010, 26.406 acidentes de trânsito foram registrados pela Empresa Pública de Transporte e Circulação (EPTC) em Porto Alegre. O número representa um aumento de 15% em relação ao ano de 2009. Já quando se fala em acidentes com vítimas, o número em 2010 na Capital foi de 7.454, um aumento de 23% em comparação com o ano anterior. O número de acidentes que resultaram em vítimas fatais diminuiu, caindo de 161, em 2009, para 135 em 2010. Também morreram menos pessoas no ano passado em relação ao de 2009, 142 a 171.
Um dado que impressiona é o que mostra o crescimento no total de feridos em acidentes. Em 2006, esse número foi de 6.976. Em 2009, foi de 7.504. No ano passado, houve um salto de 22%, com 9.161 porto-alegrenses se ferindo em colisões no trânsito. Outro número que aumentou consideravelmente foi o de atropelamentos. Em 2009 foram 1.268, em 2010, 1.542.
No caso dos sinistros envolvendo motocicletas, o crescimento de 2006 para 2010 impressiona. As estatísticas da EPTC apontam que, no ano passado, aconteceram 5.528 acidentes com motos na cidade. Em 2006 foram 3.921.
De acordo com o Detran-RS, a frota de motocicletas na Capital em janeiro deste ano era de 76.548 unidades. Ou seja, se considerássemos que nenhum condutor se envolveu em mais de um acidente no ano, temos que um em cada 13,8 motociclistas de Porto Alegre se acidentou em 2010. Na contramão disso, porém, ocorreram menos mortes no ano passado (55) em relação a 2009 (66).
Os acidentes com ônibus também tiveram um salto de 2009 para 2010, passando de 1.915 para 2.242. O número de feridos nesses casos pulou de 866 para 1.008 e o de mortos caiu de 36 para 18.
Uma série de razões pode e está ligada a estes números, desde deficiências na formação dos condutores, passando por problemas na estrutura viária, incluindo aí vias estreitas, com má sinalização, com conservação inadequada, e chegando até o descaso do poder público com o desenvolvimento de meios de locomoção alternativos. O fato é que já não se pode fechar os olhos diante do problema. Porto Alegre não foi uma cidade que cresceu de forma planejada. Em razão disso, arca e arcará ainda mais já em um futuro próximo com os ônus trazidos pelo desenvolvimento.
Soluções com resultados rápidos não existem. Paliativos podem ser utilizados, mas não vão resultar em mudanças significativas. Campanhas de conscientização, por si só, não vão mudar o comportamento dos motoristas. Somente uma série de medidas drásticas, encabeçadas pelo poder público com o apoio da população, podem ocasionar uma mudança no quadro. Para isso, porém, são necessárias três coisas essenciais: vontade política; desapego com o poder (pois muitas das medidas podem ser impopulares em um primeiro momento); e coragem para enfrentar interesses contrários.
Solução passa por atenção ao motorista e foco no transporte coletivo
Diversas ações podem ser realizadas para evitar que um colapso completo no trânsito de Porto Alegre ocorra. Duas delas, porém, se sobressaem: um forte trabalho junto ao motorista porto-alegrense, considerado pelo próprio prefeito da cidade, José Fortunati, como “prepotente e arrogante”, desde sua formação, já nas escolas, visando à formação de um condutor com um olhar mais humano a respeito do trânsito; e o investimento pesado e forte valorização do transporte coletivo como meio de se reduzir o número de veículos nas ruas.
Em relação ao primeiro ponto, dois casos recentes colocaram em evidência os problemas relacionados ao comportamento do motorista na Capital: o do homem que atropelou dezenas de ciclistas e o do condutor de um ônibus que abandonou o veículo com os passageiros e saiu andando. Diante do comportamento agressivo dos motoristas cabe discutir se o exame psicológico feito quando da confecção da Carteira Nacional de Habilitação (CNH) é eficaz e se um acompanhamento periódico do condutor não deveria ser realizado, entre outras medidas.
O transporte coletivo na Capital é considerado um dos melhores do Brasil. Entretanto, quem o utiliza todos os dias é conhecedor de suas falhas. Os ônibus de Porto Alegre são deficientes nos horários, no comportamento dos condutores dos veículos e no conforto proporcionado aos passageiros. Além disso, as passagens custam caro.
Para perceber a prevalência dos motores sobre as pernas em Porto Alegre, basta sair às ruas. Quem está a pé se submete ao que foi criado para quem está nos veículos. Um buraco em uma avenida gera centenas de reclamações, um buraco em uma calçada não resulta em manifestação alguma. A população interrompe o fluxo em uma via para pressionar os governantes para que tomem medidas a respeito de algum problema e, ao invés de receber o apoio dos formadores de opinião, é criticada por estar obstruindo o fluxo dos veículos. Um homem atropela dezenas de ciclistas com seu carro e a primeira manifestação da empresa responsável pela gestão do trânsito é dizer que as vítimas não haviam informado sobre a aglomeração. É assim que funciona em Porto Alegre: primeiro os carros, depois as pessoas.
(Por Juliano Tatsch, JC-RS, 21/03/2011)