O Brasil deverá investir R$ 3 bilhões, em oito anos, na construção de duas novas fábricas nacionais, capazes de fazer todo o ciclo de produção de urânio para abastecimento das usinas nucleares nacionais. O anúncio, feito pelo ministro de Minas e Energia, Edson Lobão, foi noticiado pelo jornal Valor Econômico em 4 de fevereiro, um dia depois da apresentação do Plano Nacional de Mineração 2030 (PNM), programa do MME que norteará o setor mineral brasileiro nos próximos 20 anos.
A iniciativa de tornar o País capaz de fazer todo o ciclo de produção do combustível nuclear é vista com reservas por um dos maiores especialistas no assunto energia, o físico José Goldemberg, da Universidade de São Paulo (USP), que recebeu em 2008 o Prêmio Planeta Azul, considerado o Nobel do Meio Ambiente. “Se estamos interessados em energia elétrica, o Brasil tem outras opções. A energia nuclear, para o caso brasileiro, claramente não é prioritária”, afirma ele, que foi um dos participantes da criação do Proalcool nos anos 1970. Para o físico, a demanda por urânio não pagará pelos investimentos necessários, o que torna o negócio, do ponto de vista comercial, pouco justificável.
No PNM 2030 consta o objetivo do governo de aumentar a exploração do urânio no Brasil. Em 2009, o Brasil produziu 406 toneladas do minério. Pelos cálculos do ministério, nos próximos 20 anos serão necessárias 1.000 toneladas por ano de urânio para o País poder abastecer as usinas de Angra I, II e III – esta última ainda em construção e prevista para operar em 2015 –, além de outras quatro usinas previstas. O documento diz ser “urgente o desenvolvimento de políticas que consolidem os estudos para a ampliação da produção nacional de urânio”, explicando, ainda, que “os estudos de oferta e demanda apontam para um déficit de produção mundial nos próximos anos, impactando os preços do urânio no mercado internacional” .
Goldemberg sempre foi um crítico da energia nuclear como alternativa para o Brasil. Para ele, a hidroeletricidade e o uso da energia produzida pelas usinas sucroalcooleiras com a queima do bagaço de cana-de-açúcar são soluções mais adequadas para aumentar a geração de energia no Brasil. “É possível que, no futuro, a energia nuclear seja importante para o Brasil e, por isso, é recomendável que o Brasil acompanhe o desenvolvimento tecnológico no setor. Ter mais um ou dois reatores não é dinheiro posto fora, pois estamos acompanhando uma tecnologia que está sendo usada em outros países e que talvez possa vir a ser interessante para o País”, diz. “Se daqui 30 ou 40 anos, o Brasil tiver 10, 20 reatores, precisará de urânio enriquecido aqui, do contrário deverá importar, o que vai criar nova dependência”, pondera.
Contudo, ele discorda da tese defendida por quem é do setor nuclear a respeito da exploração das reservas de urânio hoje. “O establishment nuclear diz que, como o Brasil tem grandes reservas de urânio, deveria enriquecê-lo para se tornar independente e possivelmente um exportador, mas esse argumento é um sonho numa noite de verão porque existe minério de urânio em vários países do mundo”, aponta. “São maneiras de o setor nuclear se tornar um setor importante, mas a lógica econômica é completamente ausente nesse raciocínio”, comenta.
Os cálculos indicam que existem 7 milhões de toneladas de urânio no planeta. Hoje, a reserva conhecida no Brasil é de 310 mil toneladas, o que coloca o Brasil na 6ª posição no ranking mundial de urânio, atrás de Mongólia, Estados Unidos, África do Sul, Canadá e Rússia. A Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), órgão do Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) responsável pelo setor, estima que outras 800 mil toneladas do minério estejam escondidas sob o solo brasileiro, mas ainda não há comprovação dessas reservas. “O Brasil tem reservas razoáveis, mas não são grandes reservas, e não está faltando urânio no mundo”, diz Goldemberg.
“Há todo um problema de se criar uma indústria de mineração de urânio. É uma tarefa grande, precisa de grandes investimentos, mas esse não é o principal gargalo, e sim o enriquecimento de urânio”, pondera o físico da USP. “Precisa ter equipamentos especiais, as ultracentrífugas que o Brasil até desenvolveu [ficam em Resende (RJ)] operam em escala um pouco superior à escala piloto. Para produzir urânio enriquecido em escala realmente industrial precisaria ampliar essas instalações e, com menos de US$ 1 bilhão, não se faz uma usina de enriquecimento viável economicamente”, explica. “É uma construção complicadíssima: envolve enormes somas de investimentos, e uma grande incerteza sobre se haveria, efetivamente, mercado para esse urânio. Nossa demanda atual é pequena e não justifica esse investimento”, acrescenta.
Os seguidos pronunciamentos das autoridades sobre o Brasil dominar todas as etapas da produção do combustível nuclear, exceto o enriquecimento, são parcialmente verdadeiros. Além de fazer o enriquecimento, o País também precisa desenvolver aqui, em maior escala, uma outra etapa hoje igualmente feita no exterior, a da conversão. Atualmente, na mina de Caetité, na Bahia, a Indústrias Nucleares do Brasil (INB) faz a mineração do urânio e o refinamento, em que as pedras são mergulhadas em um ácido para separar o urânio das demais impurezas, produzindo um pó chamado de yellow cake. O País tem uma segunda mina, a de Santa Quitéria, no Ceará, mas o governo aguarda a licença ambiental e nuclear para começar a extração.
A seguir, o yellow cake é combinado com vários produtos químicos para formar o gás hexafluoreto de urânio, na etapa que se chama conversão. Atualmente, a conversão para gás é feita no Canadá. Uma planta piloto está sendo construída no Centro Experimental Aramar, em Iperó (SP), da Marinha, para fazer essa etapa da produção. Em 2000, a Marinha conseguiu a licença ambiental para a construção da planta piloto, mas os sucessivos cortes orçamentários atrasaram o cronograma da obra – o último prazo divulgado para inauguração é março deste ano. Para atender uma demanda maior, a planta da Marinha não será suficiente. Já existem planos de construção de uma usina maior para a conversão, em Resende (RJ), mas apenas para construir essa planta piloto em São Paulo o País demorou mais de uma década.
Após a fase da conversão para gás é que vem a tão citada etapa do enriquecimento do urânio, em que se usam as ultracentrífugas. Elas formam uma cascata que gira o gás e separa o urânio 235 do urânio 238. Ambos são encontrados juntos na natureza, mas o que interessa para a geração de energia nuclear é o urânio 235, pois o outro não tem grande poder de sofrer a fissão nuclear – a operação de quebra do núcleo do átomo que libera a energia.
O Brasil domina tecnologicamente essa etapa, e desenvolveu ultracentrífugas próprias. Os especialistas explicam que a tecnologia nacional é inovadora em relação ao que existe em outros países porque utiliza materiais e sistemas que eliminam o atrito, o que permite que as ultracentrífugas façam movimentos de rotação muito mais velozes e reduz a necessidade de paradas e trocas. Goldemberg, contudo, diz que há equipamentos mais modernos em outros países. Hoje, a maior parte do enriquecimento do urânio brasileiro é feito na Europa, pela empresa Urenco. As últimas etapas do ciclo do combustível nuclear são feitas no Brasil: a reconversão do material enriquecido em pó e a montagem do elemento combustível para envio às usinas são feitas pela INB em Resende.
Assim como no caso da planta piloto capaz de fazer a conversão para gás, o problema da fase do enriquecimento é a escala da operação. Apenas três de dez cascatas planejadas para serem construídas em Resende, em três décadas de projeto, entraram em operação. A primeira cascata de ultracentrífugas entrou em operação em maio de 2006, a segunda em novembro de 2009 e a terceira foi inaugurada em 30 de dezembro de 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em uma cerimônia feita por teleconferência que ligou o Planalto, em Brasília, aos funcionários da INB em Resende. O restante da planta ainda está em fase de instalação. Com a inauguração dessa terceira cascata, a INB passou a ter capacidade de enriquecer apenas cerca de 10% do total do urânio minerado no Brasil. O restante continua sendo enriquecido no exterior. Países autossuficientes no setor nuclear têm cascatas de ultracentrífugas na escala de milhares.
Governo quer atrair empresas privadas
Uma das ideias em discussão no governo federal é ampliar a participação do setor privado no setor de energia nuclear, hoje reservado para o poder público. Segundo a reportagem do jornal Valor, o Palácio do Planalto quer ampliar a identificação e a exploração de novas jazidas, hoje um monopólio da União. Para isso, deve mudar o marco regulatório do setor, alterando regras da exploração mineral. Uma das mudanças prevê que, ao encontrarem jazidas de urânio, as companhias que estejam explorando outros minérios informem imediatamente a União sobre o que foi encontrado. Se não o fizerem, estarão cometendo um crime. De acordo com o jornal, o ministro Lobão informou que é comum empresas encontrarem urânio junto de outros minérios e não comunicarem a União para não terem a concessão suspensa. Caso a jazida de urânio encontrada seja maior do que o mineral achado pela empresa mineradora, a União poderá pagar uma indenização ou propor a exploração em parceria.
Uma primeira iniciativa no sentido de atrair o setor privado foi tomada em 2010, quando a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE) organizaram o 1º Encontro de Negócios de Energia Nuclear, realizado no dia 23 de novembro, em São Paulo. Já houve também uma ação concreta nesse sentido: no processo de licitação da jazida de Santa Quitéria, no Ceará, conduzido pela INB, foi feita uma parceria com a empresa Galvani para a produção de urânio e ácido fosfórico. Goldemberg vê como positivo o aumento da participação privada. “Seria uma atitude salutar, daria uma lógica mais empresarial. Se a iniciativa privada demonstrar interesse e fizer investimento, terá de competir no mercado internacional, como ocorre em outros setores econômicos”, conclui.
(Por Janaína Simões, Portal Inovação Unicamp, EcoDebate, 04/03/2011)