O eventual leitor compreenderá – e relevará – que o autor destas linhas trate com tanta frequência e insistência do tema das mudanças climáticas e de suas desastrosas consequências no mundo e no Brasil. O artigo de duas semanas atrás – sobre problemas em represas e a necessidade de rever os seus padrões de implantação, diante do volume, peso e velocidade das águas nestes novos tempos, inclusive em São Paulo – provocou várias manifestações de leitores.
Um deles, o engenheiro Michael L. Pinkuss, chama a atenção para a necessidade de avaliar também o acúmulo de sedimentos nos reservatórios e sua influência no nível das águas. É tema que tem preocupado muito, entre outros cientistas, Philip Fearnside, que foi de várias instituições internacionais e hoje está no Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Fearnside estudou esse acúmulo em várias barragens da Amazônia – Balbina, Samuel, Curuá-Una, Tucuruí e no projeto de Belo Monte – e alerta também para as emissões de gases que intensificam o efeito estufa emanadas de sedimentos orgânicos que, carreados pelos rios, após os desmatamentos, se acumulam nos reservatórios.
Talvez o tema da revisão de padrões de construção urbanos, rodoviários, hidrelétricos, etc. ganhe mais destaque e leve a modificações, na legislação e na prática, com as notícias que chegam de estudos que estão sendo desenvolvidos na Carolina do Sul, nos EUA, por instituições contratadas pelas maiores empresas de seguros na construção em todo o mundo, que só na área de edificações residenciais têm US$ 500 bilhões segurados e no ano passado perderam US$ 36 bilhões com danos provocados por inundações, vendavais, ciclones, deslizamentos de terras, etc.
No condado de Chester County, a Building House Safety (BHS) está terminando de construir um túnel com 150 superventiladores, capazes de provocar uma corrente de ar a 300 km/h, para poder observar as consequências em casas com os atuais padrões de construção e em outras mais resistentes. “Nós não estamos construindo observando os padrões de hoje nos lugares onde vivemos”, diz Julie Rochman, da BHS. “Construímos da forma em que queremos viver, esquecendo as lições do passado.” E isso tem tido consequências graves com chuvas, ventos, elevações do nível do mar – inclusive na perda de safras agrícolas.
“É muito difícil negar o aquecimento global”, diz Rochman. “Mas as seguradoras estão aí para mostrar.” Tanto assim que elas estão revendo o padrão internacional para seguros nesta área. E providenciando também simuladores de incêndios florestais, para poder criar um sistema de alertas. Porque a cada dia chegam notícias mais complicadas. Uma delas, publicada pela revista Time, é de um estudo do Instituto do Meio Ambiente de Estocolmo, segundo o qual se pode agravar muito nos próximos 100 anos, com o aquecimento global, a situação já preocupante de falta de água no sudoeste norte-americano, incluindo Califórnia, Nevada, Novo México e Utah. O déficit nessas regiões, que já é alto, poderá quadruplicar. E os custos para remediá-lo poderiam chegar a US$ 2 trilhões.
Não é só ali que aumentam as aflições. No sul dos EUA o problema é, ao contrário, o “excesso” de chuvas. Nessa região, logo depois do Natal, choveu em volume não visto desde 1880. Em Los Angeles, em três semanas, choveu o que costumava cair em um semestre. A Austrália ainda está às voltas com os dramas da inundação em Queensland. Nas Filipinas, desde dezembro do ano passado, 2 milhões de pessoas foram atingidas por inundações. Na África do Sul, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação (FAO) está alertando para o alto risco de inundações nas próximas semanas, continuando as que já arrasaram dezenas de milhares de hectares de cultivos – e comprometendo a alimentação dos mais pobres. Botswana, Lesotho, Moçambique, Namíbia e Zimbábue enfrentam os mesmos problemas. A África do Sul já decretou “estado nacional de desastre”.
Estranhamente, entretanto, o Partido Republicano dos EUA tenta bloquear na Câmara dos Deputados proposta que mantém poderes da Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês) para fixar padrões de emissões de gases nos vários setores econômicos e até exigir a redução. Esses poderes vêm sendo reconhecidos pela Corte Suprema do país desde 2007.
Também por aqui temos muito com que nos preocupar. Balanço publicado por este jornal (11/2) mostra que transportamos por rodovias nada menos do que 58% das cargas, ante 25% no sucateado setor ferroviário e 17% em hidrovias. Nada a estranhar, portanto, que o poluente diesel do petróleo responda por 53% das emissões no setor de transporte. Na Rússia, 81% das cargas vão por ferrovias; no Canadá, 46%; na Austrália e nos EUA, 43%. Para os problemas brasileiros contribuem também as emissões de automóveis, fabricados em quantidade cada vez maior e até com redução de impostos.
É preciso mudar essa matriz. Como é preciso atuar também em outros setores. Ainda agora, o Ministério Público Federal está recomendado ao Ibama (Estado, 10/2) que suspenda as operações das fases A e B, assim como anule a licença da fase C, no complexo termoelétrico de Candiota (RS) – movido a carvão -, que “viola desde 2005 os padrões de emissão máximos fixados pelo próprio Ibama”. As duas primeiras fases, juntas, têm 446 MW e a terceira, 350 MW. Mas, na prática, o que está ocorrendo é que o setor de energia recorre cada vez mais a usinas termoelétricas – de energia muito mais cara e altamente poluidoras.
Estudos publicados pela revista Nature (BBC News, 17/2) mostram que chuvas mais intensas têm hoje probabilidade 20% maior de acontecer por causa do aumento das emissões de gases. Já passou, portanto, da hora de mudar nossa postura interna e colocar a política do clima no centro de nossas estratégias, influenciando todas as áreas.
(O Estado de S.Paulo, EcoDebate, 01/03/2011)