“Quem passa fome no Brasil acaba passando em regiões cercadas por alimentos, cheias de supermercados, com comida da melhor qualidade”, constata Celso Marcatto, coordenador do Programa de Segurança Alimentar da Action Aid Brasil. Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, na última semana, o pesquisador critica a exportação de biocombustíveis e propõe maiores investimentos no campo. Tendo em vista o alto potencial brasileiro, ele argumenta que os agrocombustíveis devem ser produzidos dentro de uma perspectiva local. “Precisamos pensar em produzir isso de modo sustentável, inserindo-os nas cadeias produtivas existentes, nos sistemas de produção já instalados dentro da agricultura familiar.”
Celso Marcatto é engenheiro agrônomo e mestre em Agricultura Ecológica, pela Universidade de Wageningen, na Holanda.
IHU On-Line – O senhor afirma que um dos motivos da crise alimentícia está relacionado ao aumento da demanda dos países asiáticos. Mas, em contrapartida, outros especialistas dizem que a produção de alimentos mundial também aumentou. Tendo em vista esses argumentos, como essa posição pode ser justificada?
Celso Marcatto – A produção mundial de alimentos está aumentando, sim, no entanto não no mesmo ritmo do consumo. A crise atual é resultado de uma série de fatores, sendo o aumento do consumo de alimentos um deles. Ao mesmo tempo, ocorreram falhas de safra em algumas regiões produtoras importantes, como a Austrália. Aconteceu, também, a migração da produção de alimentos para outras culturas em função, por exemplo, do preço de insumos. Assistimos a mudanças no Brasil com a expansão da cana-de-açúcar em áreas destinadas à produção de alimentos, por exemplo.
Em função da crise do petróleo, do aumento do preço do barril, houve, simultaneamente, um aumento do custo dos fertilizantes e, principalmente, dos custos dos defensivos agrícolas. O nitrogênio, que é um elemento importante para o monocultivo, é extremamente dependente do preço do petróleo. Esses são alguns dos fatores que contribuem para essa crise, e o resultado é esse a que estamos assistindo. Como os estoques internacionais estão baixos, não há muita gordura para queimar.
IHU On-Line – O mundo ainda não produz alimentos o suficiente ou podemos dizer que essa questão está atrelada a outros aspectos como a especulação do mercado financeiro aos alimentos?
Celso Marcatto – A outra razão para o preço dos alimentos é justamente a especulação. Com todos os problemas que aconteceram, principalmente nos Estados Unidos, com relação aos investimentos que foram feitos, parece que uma parte dos investimentos, então destinada a cobrir os gastos, migrou para o setor de commodities.
Os dados que temos indicam que, sim, o mundo produz alimento muito mais que suficiente para abastecer a população. A questão, então, não é simplesmente aumentar a produção. Claro, há problemas localizados, em países que estão passando por dificuldades. No entanto, são casos específicos e relacionados ao clima. Dos 37 países que estão em risco de insegurança alimentar neste momento, 22 passaram por problemas climáticos sérios. Com exceção desses países que apresentam todos esses problemas, ou que estão sofrendo guerras, revoluções etc., a questão não é ter alimento disponível, e sim acesso a ele, o que continua sendo o grande problema do mundo.
IHU On-Line – É notável o aumento da produção agrícola no Brasil. Entretanto, como entender que num país em que se produzem tantas commodities ainda existam pessoas que passam fome?
Celso Marcatto – Esse é o problema. A produção de commodities, a produção do agronegócio, a produção dentro do modelo convencional, baseada em monocultura, não são uma resposta do ponto de vista de segurança alimentar, e sim uma resposta do ponto de vista econômico. Nas regiões onde esse modelo está se concentrando, há visivelmente insegurança alimentar, concentração de renda, concentração de meios de produção e concentração de terra.
IHU On-Line – A desigualdade social ainda pode ser considerada a principal justificativa desse problema, mesmo quando pesquisas revelam que as classes mais pobres elevaram sua rentabilidade?
Celso Marcatto – O número de famílias em condições de pobreza extrema diminuiu significativamente. Isso tem a ver com os programas sociais que o governo implementou, como o Bolsa Família, o programa de aquisição de alimentos, entre outros. Tem relação também com o desenvolvimento econômico. O problema é que o abismo ainda é muito grande. O Brasil, como já me referi, é um dos países onde existe a maior concentração de terra e de renda no mundo. Temos aí séculos de desigualdade que não acabam em poucos anos. Tal desigualdade causa, sim, a insegurança alimentar. Quem passa fome no Brasil acaba passando em regiões cercadas por alimentos, cheias de supermercados, com comida da melhor qualidade. As políticas sociais no Brasil são importantes, precisam ser aprimoradas, ampliadas, mas não são suficientes. Nesse contexto, torna-se necessário repensar o acesso aos meios de produção, à educação.
IHU On-Line – Alguns ambientalistas defendem a produção de biocombustíveis, pois estes geram energia mais limpa, ajudando na diminuição das emissões de carbono. Entretanto, como ampliar a produção energética sustentável e garantir, ao mesmo tempo, o acesso a esses alimentos? Qual é a sua proposta?
Celso Marcatto – Chamar os biocombustíveis ou os agrocombustíveis de limpos não é exatamente verdadeiro. Eles podem ser limpos do ponto de vista do uso, mas ainda não o são do ponto de vista da produção. Para você chamá-lo de limpo, toda a cadeia de produção, consumo e uso precisa ser limpa. Assim, não podemos considerar limpo o combustível derivado da cana-de-açúcar. Do ponto de vista social e ambiental, essas plantações representam uma tragédia às regiões onde estão sendo cultivadas. Por outro lado, isso não significa que devamos desprezar essa fonte de combustível. Mas, se estamos buscando desenvolvimento sustentável com eqüidade, com justiça social, além da soberania e da segurança alimentar, o caminho é produzir agrocombustíveis dentro de uma perspectiva local. Não há razões que justifiquem a exportação desse produto. Precisamos pensar em produzi-los de modo sustentável, inserindo-os nas cadeias produtivas já existentes, nos sistemas de produção já instalados dentro da agricultura familiar, por exemplo.
Acredito muito no potencial deles como uma alternativa para suprir a demanda da agricultura familiar ou da demanda local. Imaginar que o agrocombustível produzido no interior do Mato Grosso pode ser exportado para os Estados Unidos e que nisso exista redução da emissão de carbono é incorreto. Se pensarmos nos recursos utilizados para preparar o solo, derrubar a mata, remover o pasto que estava nele, veremos que muito carbono foi emitido no decorrer desse processo. Assim, não se torna benéfico para o Brasil realizar esse trabalho, pois não há um equilíbrio positivo. E, se for positivo, ele é muito pequeno.
IHU On-Line – Então, a preocupação do Brasil em exportar biocombustível é equivocada? Estamos na contramão do desenvolvimento econômico, ambiental e social?
Celso Marcatto – Do ponto de vista ambiental e social, será que teremos ganhos com isso? Será que o resultado, em termos de balanço de carbono, é positivo? A maior contribuição do Brasil para as mudanças climáticas mundiais são as queimadas. Como a produção dos agrocombustíveis impacta a questão das mudanças climáticas? Estamos assistindo ao processo de expansão da soja no Pará e em outras regiões, e ele se dá por meio de destruição da mata. Estamos assistindo, ao mesmo tempo, à expansão da cana-de-açúcar, em São Paulo, no Cerrado brasileiro, sendo que ela também se dá dentro do Cerrado, avançando para áreas de pasto degradado. Não há efetivamente controle sobre esses detalhes. No caso das usinas, não existe fiscalização para saber se essa expansão da cana-de-açúcar se dará em cima áreas de pastagens degradadas ou não. Se existem terras disponíveis, elas serão ocupadas. E, se for vantajoso produzir cana em relação ao milho, em relação ao feijão, ela será produzida.
IHU On-Line – Investidores do agronegócio alegam que plantam em áreas degradadas. Ao mesmo tempo, aumentam as vendas de terras produtivas. O senhor acredita que empresas tendem a plantar nessas áreas, com o objetivo de produzir mais toneladas de biocombustíveis? A ânsia pelo lucro pode precipitar mais desmatamento da Amazônia?
Celso Marcatto – Com certeza. Tenho a informação de que a cada hora chega uma empresa nova, nacional ou internacional, com interesse em investir em agrocombustíveis. O preço das terras em São Paulo já aumentou. Além disso, a disputa por elas está ficando acirrada, tanto entre monopólios nacionais quanto entre estrangeiros. O resultado disso será a elevação dos conflitos no campo, ou seja, a luta pela posse de terras. Isso irá implicar em desmatamento, em ocupação de áreas que antes estavam sendo destinadas para outra coisa.
Quando os produtores falam em pastagem degradada, devemos compreender o quê? Eu posso entender como área de mata em recuperação, dependendo do ponto de vista. Eu vejo uma pastagem abandonada como o sinal de que a natureza está recuperando uma terra. Isto é, não a percebo como uma pastagem degradada.
O aumento da demanda por terra é conseqüência, sim, da produção de agrocombustíveis, e está diretamente relacionado à expansão da cana-de-açúcar. O aumento da produção vem ocupando o lugar das pastagens e, então, me questiono: “Para onde vai esse gado que até então ocupava essa região?”. A cana teria dificuldade de entrar na floresta Amazônica, onde chove todo o dia, porque ela necessita de um período de seca para acumular açúcar. Agora, ela não precisa entrar na Amazônia para degradar a floresta. Apenas o fato de ela expulsar o gado – na região do Cerrado – é o suficiente para alavancar o desmatamento. Assim, a ocupação da Amazônia se dará através do gado, não necessariamente da cana. O etanol não precisa ser produzido dentro da floresta para sentirmos o impacto. Em região de fronteira, há expansão do gado em função da ocupação dessas terras que antes eram envolvidas na produção do gado pela cana-de-açúcar ou pela soja.
IHU On-Line – Uma alternativa positiva para conciliar a produção alimentícia e energética pode ser a utilização de áreas degradadas para a plantação de oleaginosas, robustas como o pinhão manso, mamona, dendê, semente de girassol, por exemplo?
Celso Marcatto – É interessante explorar essas alternativas, principalmente a do dendê, cuja capacidade de produção de óleo é absurda. A cana-de-açúcar é para a produção de etanol o que o dendê é para a produção de óleo. Pinhão manso, mamona, girassol – que são plantas mais nobres – também são muito interessante para a produção de óleos. A questão é que existem várias formas de explorar isso.
Estive no norte de Minas Gerais, onde o Centro de Apicultura Alternativa e uma cooperativa grande de agricultores familiares local estão investindo na produção de oleaginosas. Eles estão trabalhando com o pinhão manso, com o girassol, com mamona. Esse tipo de produção pode gerar uma renda a mais para os agricultores. De qualquer modo, não é viável imaginar uma grande monocultura de pinhão manso, como há, no norte de Minas, 10, 20 mil hectares contínuos de eucalipto, 10, 20 mil hectares contínuos de cana-de-açúcar ou de soja. De nada adianta trocar um cultivo por outro, pois o resultado é o mesmo. A monocultura expulsa gente do campo, concentra renda, meios de produção, e aí o resultado será o mesmo: insegurança alimentar, concentração de renda, pobreza. Então, a questão não é exatamente o que se cultiva, mas como se cultiva. É claro que explorar o pinhão manso, que me parece uma planta muito resistente e com uma capacidade grande de produção de óleo, é ótimo, mas não em escala de monocultura.
O esforço que está sendo feito por algumas organizações ligadas a movimentos de agricultores familiares é introduzir essas plantas dentro do sistema de produção atual como um produto a mais, num sistema de policultivo. Visitei um assentamento onde as áreas de produção tinham um emaranhado de plantas – três variedades diferentes de milho, cinco variedades de feijão, um grupo grande de hortaliças, pinhão manso, girassol – ocupando o mesmo espaço. Dentro desse contexto, as oleaginosas são muito interessantes.
IHU On-Line – O ministro do Desenvolvimento Agrário, Guilherme Cassel, diz que o Brasil tem que produzir alimentos para o consumo interno e, além disso, aumentar a produção destinada à exportação. Como manter o equilíbrio?
Celso Marcatto – Esse equilíbrio é difícil, porque, atualmente, há um investimento muito grande na questão do agronegócio. Do ponto de vista ambiental e do ponto de vista social, essa expansão não é sustentável. Aonde isso nos levará, daqui a alguns anos? O que irá acontecer com o Cerrado brasileiro, com a Amazônia, se isso continuar no rumo em que está? E é evidente que o governo não consegue controlar a expansão. Então, a questão é: o que sobra para as gerações futuras? Como ficam os agricultores familiares, os trabalhadores rurais nesse momento? Estamos ampliando a produção de commodities para manter a balança comercial, para conseguir um equilíbrio momentâneo. Mas será que isso é uma saída sustentável?
IHU On-Line – Como reduzir a fome, a pobreza e, ao mesmo tempo, aumentar os meios de subsistência rural, conciliando as preocupações ambientais e sociais?
Celso Marcatto – Para nós, a saída são os modelos de produção diversificados e sustentáveis que garantam principalmente investimento em reforma agrária e acesso à população rural aos meios de produção. Além disso, é necessário montar sistemas de produção agroecológicos que considerem as características, as especificidades, os problemas e as potencialidades do sistema local, em termos de solo, vegetação etc.
Aproximar o agricultor familiar do mercado consumidor urbano, criar estratégias de aproximação, redução de intermediários, facilitar o acesso à comida e, ao mesmo tempo, investir pesado e ampliar os programas sociais, são medidas fundamentais. Para recuperar séculos de exclusão, é necessário ter um investimento muito grande em programas sociais de acesso aos alimentos, em programas de renda mínima. Somente investindo nessas questões teremos o rompimento desses desequilíbrios.
(IHU On-line, Ecodebate, 09/02/2011)