Ao conceder "licença parcial" a Belo Monte, Ibama fere princípios elementares jurídicos e democráticos de formulação de políticas públicas. A licença parcial é uma forma de antecipar decisões não amadurecidas. Um artifício para transformar o mal feito em fato consumado.
O Ministério Público Federal do Pará já havia recomendado ao órgão que não fragmentasse o licenciamento para acelerar o processo, principalmente porque as exigências para a licença prévia não foram cumpridas. O Ibama está, portanto, dando sinal verde para um projeto inadimplente.
A nota do ministério público diz o seguinte:
A recomendação, emitida em novembro do ano passado, dizia ao então presidente do Instituto para se abster de "emitir qualquer licença, em especial a de Instalação, prévia ou definitiva, do empreendimento denominado AHE Belo Monte, enquanto as questões relativas às condicionantes da Licença Prévia 342/2010 não forem definitivamente resolvidas de acordo com o previsto".
A nota informa também que
Após a recomendação, em dezembro, técnicos do MPF foram até o local onde deve ser construído o canteiro de obras e constataram que as condicionantes exigidas pela Licença Prévia não foram cumpridas. "Até agora, a maioria das condicionantes encontra-se, se não no marco zero, muito aquém do previsto", disseram os procuradores.
Os procuradores dizem que 8 mil pessoas se deslocaram até agora para a região, que já sofre colapso de infra-estrutura. É uma prévia do que acontecerá mais adiante: incontrolável deslocamento de população atraída pelas obras, com sérios prejuízos sociais, econômicos e ambientais para a região.
A licença parcial, para desmatamento, causa danos irremediáveis antes mesmo do exame definitivo das condições para licenciamento da instalação de um projeto que já não cumpriu as exigências iniciais. Posteriormente, os gastos executados dessa forma improvisada viram argumento para continuar o processo. Já vi isto acontecer e depois as autoridades dizerem: "o que está feito, está feito".
Esse picadinho, essa licença parcial, pedaço do que deveria ser uma licença completa, com todos os requisitos técnicos, não existe na legislação ambiental brasileira. Nem poderia. É uma excrescência técnica e jurídica. Esse tipo de conduta viola padrões técnicos e de conduta administrativa exigidos dos servidores públicos. Afronta o próprio estado de direito democrático. Nenhuma autoridade governamental está acima da lei.
Esta semana a Suprema Corte do Novo México, no EUA, disse exatamente isto à recém-empossada governadora, que se recusou a publicar no registro público duas leis ambientais aprovadas pelo legislativo estadual. A governadora Susana Martinez estava, com essa decisão, bloqueando unilateralmente duas leis regularmente aprovadas. O presidente da Suprema Corte estadual, Charles W. Daniels, advertiu que "ninguém está acima da lei". A corte decidiu por unanimidade que as leis fossem publicadas sem demora, para terem efeito imediato. O princípio da obediência universal à lei, não é específico da democracia dos Estados Unidos. É princípio inarredável do estado democrático de direito.
A própria imprensa tem contribuído, às vezes, para criar uma impressão errada sobre Belo Monte, ao repetir a informação governamental sobre o projeto. A informação do governo é sempre imprecisa ou inverídica. É preciso que fique claro o que Belo Monte não é, separando a propaganda da verdade:
Belo Monte não será a segunda maior hidrelétrica do Brasil, nem a terceira maior do mundo. Essa confusão vem do fato de que, para tentar ganhar apoio para o projeto, o governo só fala dele como sendo capaz de gerar 11.233 MW de eletricidade. Não é. Está é sua capacidade máxima teórica que jamais será alcançada. Belo Monte geraria, no melhor cenário, 4.420 MW de média anual. Ficará alguns períodos totalmente parada por falta de água, com elevados custos de manutenção e alto risco de dano técnico às instalações. Provavelmente, sua geração média anual ficará abaixo de 4.000 MW. Estará longe demais dos principais centros consumidores, o que requer linhas de transmissão longas demais para que seja integrada à rede, com elevadas perdas de transmissão, alto custo de manutenção e alto risco de disrupção.
É, portanto, uma usina de porte médio, de baixa eficiência energética, alto custo de construção e operação e alto risco técnico e ambiental. Um projeto discutível do ponto de vista energético, econômico, financeiro e ambiental.
Belo Monte não é um projeto indispensável à oferta de energia no Brasil. Há muitas alternativas melhores, que o governo jamais quis considerar.
Dou um exemplo apenas. Em Minas Gerais, um dos estados de menor potencial eólico do país, até porque não tem costa e, portanto, não poderia explorar potencial "off-shore", serão gerados o equivalente a duas Belo Monte de eletricidade eólica, a custo inferior.
Belo Monte não vai custar R$19 bilhões. Estima-se que vá custar R$ 30 bilhões ou mais. O pedido de financiamento foi de R$ 25 bilhões. O preço ofertado no leilão para concessão é considerado artificialmente baixo pela quase unanimidade dos economistas e analistas do setor elétrico. Ele não será respeitado porque não tem fundamento técnico, financeiro ou econômico. Só com subsídio estatal, portanto mais custo não declarado. Nada é transparente ou real neste processo.
Belo Monte não sofre oposição apenas de ambientalistas. Tenho conversado com especialistas em energia, diretores de empreiteiras e empresas do setor elétrico, engenheiros elétricos em atividade no setor, economistas e investidores. Todos dizem que o projeto não é bom, nem do ponto de vista econômico-financeiro, nem do ponto de vista energético. Tanto que muitas empresas e muitos investidores se recusaram a participar dele. Até porque ele é de altíssimo risco, inclusive jurídico. São muitos os juristas e os procuradores que consideram que o projeto e o processo sofrem de vários vícios jurídicos. Economistas dizem que o risco para as finanças públicas é excessivo e o volume de subsídios sem qualquer transparência compromete seriamente o projeto. Sem todos os artifícios que estão sendo usados ele seria totalmente inviável.
Belo Monte está sendo tocado com menos transparência e respeito à legislação do que projetos similares foram impostos no regime militar. Lá não tínhamos a constituição que temos, nem as leis ambientais que temos.
Belo Monte não é um problema ambiental. É um sério problema político. Ele fere de forma irremediável os princípios de qualidade e transparência do gasto público e desrespeita os fundamentos da governança democrática. Tem sérias falhas de procedimento do ponto de vista técnico, jurídico e democrático. Do ponto de vista da ciência política, ele viola todos os princípios de formulação democrática e legal de políticas públicas.
(Por Sérgio Abranches, EcoPolítica, PortoGente, 02/02/2011)