Somente a ignorância impede o Brasil de contar com uma ampla rede de hidrovias, um potencial desperdiçado de seus grandes rios, lamenta José Alex de Oliva, superintendente de Navegação Interna da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). Com mais de três décadas de militância a favor das vias fluviais, como a do Rio Madeira, no noroeste do país, José Alex sonha com a viabilização do “eixo estratégico da América do Sul”, unindo as bacias do Orenoco, Amazonas e Rio da Prata, partindo da Venezuela para cruzar Brasil, Bolívia, Paraguai, Argentina e Uruguai.
Contudo, sua persistente luta pelo transporte fluvial, como voz quase isolada e que lhe custou o apelido de “Quixote das Hidrovias”, não evitou o atraso do setor. Somente em novembro, foram inauguradas as eclusas de Tucuruí, no Rio Tocantins, no Pará, após 29 anos de construção interrompida várias vezes. O custo final, de US$ 1 bilhão, triplicou o que se teria gasto para construí-las simultaneamente à hidrelétrica em operação desde 1984, segundo José Alex.
O desconhecimento de sua importância por parte da sociedade, do governo e de empresários, limita os investimentos em transporte fluvial, apesar de seus custos mais baixos em relação ao uso de rodovias, em um país de longas distâncias como o Brasil. É preciso “educar, tirar preconceitos das pessoas”, acrescentou. Ignora-se que os navios podem ter vida útil econômica de 50 anos nos rios, o dobro da vida marítima, e que o avanço tecnológico permite transportar cargas pesadas em cursos fluviais de pouca profundidade, acrescentou. “Todos os rios são navegáveis, dependendo da finalidade”, inclusive os que têm pedras, que podem ser usados para esportes, ressaltou.
Como as ferrovias também são escassas no Brasil, as rodovias concentram 60% do transporte nacional de cargas, o que encarece a produção e provoca mais contaminação. Multiplicar as estradas e os veículos automotores foi prioridade na estratégia de desenvolvimento brasileiro na segunda metade do Século 20. Agora, há “um forte movimento” a favor de hidrovias, em contraste com o passado em que “nenhum setor brigava por elas”, disse Olivier Girardi, sócio da consultora Macrologística. É um “momento crucial” para ampliar este modelo de transporte, disse este especialista.
A oportunidade surgiu com o auge da produção agrícola no Centro-Oeste do Brasil e a forte expansão também em outras regiões distantes dos portos do Atlântico, acentuando as carências de infraestrutura logística do país. Antes, o interior do Brasil afastado da costa oceânica não tinha uma produção em escala que fizesse indispensável o transporte fluvial e ferroviário, que, em geral, se destinam a produtos pesados e volumosos, de pouco valor agregado. A exceção eram os minerais, que justificaram a construção de vários corredores hidroviários para levá-los para o exterior.
Por isso, os adiamentos das eclusas de Tucuruí não despertaram pressões fortes. O Tocantins, que passou a ser navegável nos seus últimos 700 quilômetros, une o centro do Brasil, que começa a ganhar densidade econômica, a um porto marítimo no Norte do país. O Centro-Oeste também vive agora um forte crescimento econômico. Assim, o custo do transporte para o negócio agropecuário aumentou 147% entre 2003 e 2009, segundo a Associação Nacional de Exportadores do Ceará, que estima em 70% a parte de grãos transportada em caminhões.
Em seu estudo “Norte Competitivo”, que elaborou para o setor industrial, a Macrologística apontou as hidrovias como as melhores alternativas para corrigir as dificuldades logísticas da região amazônica e arredores. “As ferrovias são a segundo opção”, pois seu elevado custo de implantação exige a segurança de uma demanda à altura dos investimentos, disse Olivier. O Plano Nacional de Logística e Transporte, adotado pelo Ministério do Transporte em 2007, prevê a ampliação da participação do transporte fluvial de 13%, em 2005, para 29% até 2025.
Os defensores das hidrovias, como José Alex, responsabilizam o setor energético por essa baixa presença da navegação interna na matriz brasileira de transportes. O uso dos rios ficou nas mãos do Ministério de Minas e Energia, diante da urgência em gerar mais eletricidade. Os concessionários de complexos hidrelétricos deveriam cuidar também das eclusas, já que impõem um novo obstáculo à navegação. Além disto, o custo é muito mais baixo quando são construídas simultaneamente com as represas.
Entretanto, os projetos hidrelétricos, em geral, excluem as eclusas para não encarecer a energia. O preço inferior da eletricidade a ser gerada é decisivo nas licitações promovidas pelo governo para concessão do aproveitamento dos rios. O setor de transporte ganhou o apoio da Agência Nacional das Águas, que defende usos múltiplos para os recursos hídricos, mas esta ainda é uma batalha em curso.
Olivier propõe que em casos como o da bacia do Tapajós, afluente do Amazonas, as autoridades de transporte se adiantem criando uma hidrovia, antes de definir o aproveitamento hidrelétrico, para não ficarem reféns do setor energético e transferir-lhe o custo das futuras eclusas.
O transporte fluvial também enfrenta travas institucionais. No passado, o descaso com que era tratado se refletiu na ausência de um organismo governamental para sua gestão, recordou José Alex. As hidrovias estiveram por um tempo confundidas com os portos, que mesclava terminais marítimos e fluviais. Depois passaram a companhias estatais que administravam portos de forma descentralizada, eliminando a possibilidade de uma política nacional. Os recursos destinados à infraestrutura fluvial tinham, então, que passar por vários organismos sem afinidade, agravando as travas burocráticas e a incerteza, tudo o que desestimulava investimentos privados nesse tipo de transporte, disse o chefe da Antaq.
No Ministério dos Transportes, que “gasta 90% de seu tempo cuidando das estradas”, o tema também transitou por várias secretarias e departamentos. A Antaq, órgão regulador nascido em 2001, criou a Superintendência de Navegação Interna que, diante do vácuo na formulação da política de hidrovias, promove o debate sobre a questão por meio de seminários e aprova regulações que vão abrindo caminhos para esse tipo de transporte.
As hidrovias também enfrentam a oposição de muitos ambientalistas que condenam a eliminação de rochas, a dragagem e outras intervenções que alteram o fluxo e o curso dos rios, prejudicando a biodiversidade. “São os ONGangotangos”, como José Alex chama as organizações não governamentais que considera pouco sérias.
(Por Mario Osava, IPS, Envolverde, 24/1/2011)