Li na edição do dia 10 de novembro de 2010 do jornal Diário Popular uma referência ao deslocamento dos “posseiros” do Pontal da Barra na orla da Lagoa dos Patos, e então achei oportuno realizar uma visita ao local para que pudesse ter minhas impressões sobre a real situação, tendo em vista a dissertação de mestrado que desenvolvo sobre a produção do espaço urbano e os conflitos socioambientais da/na orla lagunar de Pelotas vinculada ao PPG-UFSC.
O termo posseiro na referida reportagem refere-se às ocupações de áreas sem títulos de propriedade, caracterizando uma posse “ilegal” do ponto de vista jurídico. Contudo, se partimos do pressuposto de que essa última é uma maneira de assegurar a possibilidade de uso do espaço urbano ou de garantir o direito a cidade, a questão não deve ser reduzida ao seu caráter jurídico e, sendo assim, o termo requer outra interpretação.
Depois de uma vista ao Museu histórico do Laranjal, onde é possível dar uma volta ao passado da formação urbana de Pelotas e do Laranjal, sai caminhando pela rua Dr. Antonio Augusto Assumpção em direção ao calçadão da praia onde faria uma visita a vila do Pontal da Barra. No caminho resolvi chegar à Escola Municipal de Ensino Fundamental Don Francisco de Campos Barreto, instituição que atende em média, 30 crianças dessa comunidade. Em conversa com a Orientadora Educacional, professora Ângela que se mostrou bastante preocupada com o futuro incerto dessas crianças, tomei conhecimento do importante trabalho social desenvolvido pela tia Neli com as crianças dessa localidade. Foi então que sai a procura dessa pessoa tão generosa.
Tia Neli é uma pessoa dinâmica, uma lutadora pelos direitos humanos, tem um coração enorme e possivelmente, uma missão a cumprir: ajudar essas crianças a terem o direito de serem crianças, e o direito de terem um destino diferente ao de seus pais e de tantas pessoas que sobrevivem em condições precárias de habitação, em grande miséria, cujo futuro já esta previsto pelo problema que a sociedade enfrenta com o crak.
É com o seu salário de pensionista e com a ajuda de algumas instituições fraternas e pessoas amigas e generosas que a Tia Neli, há seis anos ensina as crianças a pintarem, costurarem, incentiva a leitura, realiza peças teatrais, promove debates sobre sexualidade, gravidez na adolescência, drogas, ensina as crianças a valorizarem seu corpo, cuidados com a saúde enfim, ela permite que esses meninos e meninas deixem as ruas no turno inverso ao escolar para aprenderem a serem pessoas melhores. A mudança para o loteamento Eldorado próximo ao aeroporto não vai fazer tia Neli desistir, mas vai acabar com o sonho de muitos inocentes e dificultar ainda mais a vida dessas famílias.
O local de destino dessas famílias é segundo ela dois quartos, uma cozinha avarandada e um banheiro, tudo minúsculo no deserto, onde as crianças não terão a mesma liberdade. Chocar-se-ão com outras comunidades adultas e estarão à mercê da própria sorte, pois as suas relações de identidade e trabalho com o território lagunar estarão sendo rompidas, para formar uma nova relação em um ambiente cujas condições de vida ofertadas são incertas. Morando no Laranjal homens, mulheres e crianças dessa vila bem o mal retiram parte de seu sustento do trabalho que realizam na produção do pescado da lagoa e nas atividades de diaristas, cortadores de grama, pedreiros, pintores, e outros serviços que realizam nos períodos das flutuações dos recursos pesqueiros que derivam de aspectos ambientais, entre eles a variabilidade climática.
Diante disso cabem-nos algumas interrogações: Qual seria a razão da construção da Associação Comunitária Oficina Michel Oliveira, casa da criança e da saúde a ser inaugurada em março do ano que vem no Laranjal se os prováveis freqüentadores estão sendo removidos para outro bairro? Seriam os futuros turistas freqüentadores do complexo turístico Hotel Cavalo Verde, os beneficiados desse centro? O que se quer entender por problema urbano se não aquilo que obstaculiza a cidade de se colocar no circuito de megaeventos, no circuito da riqueza? Qual será o papel do Estado democrático nesta sociedade?
Quando o Dr. Antonio Augusto Assumpção e seu irmão o pecuarista Artur Assumpção idealizaram e democratizaram o Laranjal pensaram na satisfação e lazer da sociedade pelotense como um todo. No entanto o que se observa hoje no laranjal é a existência de um conflito advindo do processo de produção do espaço urbano vinculados aos interesses contraditórios existentes entre a iniciativa privada, os agentes sociais e o Estado, que teria o papel de mediar esse “jogo” através do cumprimento de sua missão básica de administrador e executor de uma política urbana que priorize a cidade enquanto patrimônio coletivo.
Observa-se também que os espaços “naturais” do Laranjal estão entrando na lógica da (re) estruturação do capital, pois estão sendo perseguidos a serviço da reprodução dos meios de produção capitalista e anulando o espaço de reprodução da vida e da cultura, ou seja, o lugar do trabalho com base nos modos de vida que estão aquém do modelo modernizador.
(Por Keli Ruas*, OngCea, 21/01/2011)
*keli Siqueira Ruas é Graduada, Especialista em Geografia/UFPEL, realiza pesquisa de mestrado em Geografia/UFSC e colaboradora do CEA.