Depois da tragédia, o Rio tem sido inundado de solidariedade, mas também de desculpas esfarrapadas e atribuição de culpas para todos os lados. A chuva, o povo, e, principalmente, os outros, são sempre estes que deixaram tudo isso acontecer.
O país foi capaz de elaborar uma lei de responsabilidade fiscal, mas ainda não uma de responsabilidade social.
Com fundo na política neoliberal de redução do Estado, pune-se o governante que gasta muito - mas não o que gasta pouco ou o que gasta mal.
O abandono progressivo do Estado é visível no liberalismo que toma conta da fiscalização da ocupação imobiliária. Parte significativa das regras existe justamente para ser burlada ou contornada, às vezes com a própria anuência ou estímulo do poder público.
Não faz tempo, em São Paulo, criou-se a figura da operação urbana, permitindo um acréscimo a ser pago pelo construtor para ultrapassar o limite legal da edificação. Resumindo: pagando bem, que mal tem?
E o desvario do esvaziamento do Estado estava prestes a ser aprovado no Congresso Nacional com o pomposo nome de Código Florestal, reduzindo a tutela pública sobre a ocupação do solo.
Supõe-se que a idéia tenha naufragado com as enchentes. Quem se atreveria hoje a anistiar ocupações irregulares, pela simples existência de um "fato consumado", ou aumentar as áreas de construção em encostas, depois do desastre?
Quer se pense nas culpas, quer se pense nas soluções, o que falta é mais Estado e não menos. Mais regulação e não menos. Mais gasto público e não menos. Tal como as crises econômicas que têm se reproduzido mundo afora, as catástrofes demonstram que a ausência do Estado é, disparado, o maior dos riscos sociais.
É essa a tragédia anunciada: quando o Estado se retira, se omite ou se vende, a atividade predatória das especulações e o desespero dos excluídos fulmina a natureza, o bom-senso e, principalmente, a prudência.
A inserção do Estado na solução dos problemas não pode se dar apenas no auxílio à reparação dos danos, pois ainda que a conta possa demorar para chegar, remediar é sempre mais dolorido e dispendioso do que prevenir.
Mas para prevenir, não adianta só firmar a impossibilidade de se construir ou morar em certos lugares perigosos. É certo criticar quem mora onde não pode. Mas quem não pode, mora onde?
O país abriu mão de fazer, décadas atrás, sua reforma agrária. Consolidou gigantescos latifúndios e expandiu como nunca a população das cidades, com o êxodo rural que a concentração da propriedade gerou. E agora, imprensado contra o muro das cidades superpovoadas e da habitação inacessível, vai se negar também a tocar a reforma urbana?
As cidades estão coalhadas de privilégios a quem deles não necessita. Clubes privados construídos sobre terrenos públicos, obras particulares com recursos do Estado, grandes áreas desabitadas e tantas outras cortesias com os chapéus do povo.
Mas para a habitação popular, os recursos sempre minguam, nunca são suficientes. Não estranha que os mais pobres acabem por morar em localidades irregulares, em morros, em encostas, em represas, em mananciais, e até junto a linhas de trem.
A excessiva valorização dos terrenos nas cidades vai, paulatinamente, expulsando os moradores de baixa renda para lugares inóspitos e insalubres. Ou o entulhar de milhões de pessoas nos morros cariocas é algo que se deve achar normal? Se a tragédia atingiu a região serrana, imagina-se o que aconteceria se se reproduzisse na capital?
O Estado deve intervir urgentemente na urbanização das cidades, principalmente privilegiando a habitação popular. Urbanizar moradias da população carente, gigantesca nesse país, é muito mais importante do que construir estádios ou abrir grandes avenidas.
Que as desgraças que sofremos neste começo de ano, não sirvam apenas para por à prova a incúria das autoridades ou a imensa solidariedade do povo.
Que as águas levem junto com elas, a equivocada proposta de reformar o Código Florestal, fragilizando a proteção da natureza, de acordo com os interesses da especulação rural. E que tragam de volta a idéia de reforma urbana, sempre cercada de preconceitos por todos os lados.
A reforma urbana é delicada, difícil, demorada e custosa. Mas sem ela, vamos continuar assistindo a conseqüências devastadoras, que não poderão ser atribuídas apenas ao mau humor do tempo.
A dimensão das perdas humanas no terremoto do ano passado no Haiti, já deveria ter nos advertido: a natureza castiga, mas a desigualdade castiga muito mais.
(Por Marcelo Semer*, Envolverde/Adital, 20/01/2011)
*Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho"