Aos 10 anos, em 1997, Ziliane Oliveira Colares, moradora de Bagé, revelou seus anseios a Zero Hora:
– Eu sonho ser médica e morar num lugar que tenha bastante água para beber.
Confira a saga de famílias que sofrem com a estiagem:
Quatorze anos depois, residindo na mesma casa, a estudante do 1º ano do Ensino Médio enfrenta mais um racionamento.
– A gente já está acostumada. Nem sente mais – resigna-se a jovem, hoje com 24 anos.
A cada 12 horas, metade da população tem água. Não há surpresa na atitude das autoridades locais. Em 199 anos de história, Bagé depara com restrições de consumo há mais de nove décadas.
Zero Hora reencontrou personagens entrevistados nas últimas secas, conversou com vítimas da estiagem e mostra, nesta reportagem, como a ausência de água castiga a população de uma cidade de 116 mil habitantes, berço da pecuária gaúcha e que já foi chamada de Rainha da Fronteira.
As conquistas e os feitos costumam servir de marco para a população da maioria das cidades. Fala-se no ano de uma grande safra, rememora-se o título de uma equipe local, comenta-se o nascimento de um filho ilustre. Em Bagé, a referência histórica é a seca.
A água pinga na torneira do eletricitário Pedro Nunes Jardim, 58 anos, quatro horas por dia. Nem mais, nem menos. No Prado Velho, bairro de periferia, é assim mesmo. Mas a escassez não surpreende mais Pedro, um cioso aposentado da Companhia Estadual de Energia Elétrica (CEEE). Pedro preparou-se ao longo da década para enfrentar os humores de São Pedro. No pátio de sua casa de alvenaria, há dezenas de garrafas pet cheias de água. Caixas d’água, Pedro tem três: uma, de 500 litros, para saciar a sede, e duas, de 250 litros cada, que funcionam como cisternas para os afazeres domésticos. É bastante, mas não é tudo.
1989, o ano em que Bagé virou deserto
Nos fundos do terreno, encontra-se o verdadeiro motivo da tranquilidade de Pedro: um poço com capacidade para 18 mil litros, capaz de abastecer 40 famílias em situações extremas. A aparente fartura não dispensa cuidados espartanos no manejo. Na casa de Pedro, ele, a mulher, Maria, 38 anos, e os filhos Dinair, 10 anos, Érica e Pedro, seis anos, evitam luxos:
– Só damos a descarga quando é muito necessário.
E complementa:
– Não por qualquer ida ao quarto de banho, o senhor me compreende?
Tanto zelo é compreensível. Então com 37 anos, Pedro enfrentou a seca de 1989, o ano em que Bagé virou deserto. Campos verdejantes transformaram-se em caatinga. Vacas, bois e touros, habituados à fartura pampiana, tombavam famintos. Na cidade, creches cerraram as portas. Piscinas públicas, adaptadas em cisternas gigantes, abasteciam o povo.
Bancos, lojas e repartições ajustaram as rotinas às condições de um município desértico, reduzindo horários de operação. Para bairros e vilas distantes, e mais pobres, 12 caminhões-pipa levavam água. O calçadão do centro de Bagé, tradicional ponto de encontro, lembrava lugarejos do sertão, com filas gigantescas de moradores, pobres e abastados, carregando nas mãos baldes, canecas e bombonas, à espera de água.
Cento e doze casos de hepatite em apenas seis meses – três vezes mais do que no ano anterior – convulsionaram a saúde local.
O desespero era tanto que a prefeitura anunciou um convênio inusitado com a Fundação Cacique Cobra Coral, entidade espírita de Guarulhos (SP), especializada em interferir no clima, reduzindo secas e prevendo inundações. A parceria não saiu do papel.
– Para não passar sede, eu ia buscar água numa pedreira. Tirei os bancos de um Fusca azul, ano 1969, e transformei num Fusca-pipa. Voltava carregando 250 litros pra casa – conta.
Como a maioria dos conterrâneos, Pedro rememora tempos mais hostis, marcados por longas estiagens e cisternas vazias.
– A seca de 1989 foi bem ruim, mas meu pai contava que a de 1945 tinha sido muito pior. As vacas escavavam (batiam com o casco no chão) em busca de água – complementa.
Pode-se alegar tudo sobre as secas em Bagé, menos surpresa. Em dois séculos de história, a cidade vivenciou estiagens em 90 anos. O primeiro racionamento nos registros da prefeitura remonta a 1922, ano em que a Barragem do Piraí, com capacidade para 2,8 milhões de metros cúbicos, começou a ser construída.
Racionamento que durou 19 meses
Desde 1989, pelo menos outras três grandes restrições atormentaram a população: em 1995, entre 2005 e 2007, quando moradores chegaram a ficar 18 horas sem água nos canos, num racionamento de 19 meses, e em 2009, com a ausência de chuvas responsável por nocautear açudes e barragens no inverno – época de precipitações e pasto vigoroso na Campanha. Inacreditáveis 84 dias transcorreram, entre junho e setembro, sob racionamento.
Nascido e criado nos fundos de um campo de Bagé, João Carlos Proença, 57 anos, ouvido por Zero Hora na seca de 1995, experimentou uma pequena revolução em sua vida nos últimos 15 anos: ficou viúvo, casou-se de novo, criou os filhos dele e da nova mulher, descasou após seis anos e nove meses de relacionamento, tornou-se o faz-tudo mais conhecido da Vila Damé. Só uma coisa permanece inalterada na vida de João.
– Semana passada fiquei sem uma gota de água em casa – confidencia.
Com a estiagem e o piso dos campos sólidos como o concreto, o trabalho também se torna escasso.
– Nesta seca braba, capina não dá pra fazer. Colocar um moirão é impossível. Mas continuo tentando. Faço de tudo. Só não sei roubar – complementa.
Sem nunca ter saído de Bagé, João tem dificuldades em compreender a inclemência do clima. Alheio ao La Niña, a quem especialistas atribuem a falta de água no extremo sul do Brasil, João especula sobre os responsáveis pela secura:
– Devem ser os pecadores de Bagé.
O senhor se inclui? – questionamos.
– Um pecadinho a gente sempre tem. Mas não para ser castigado com a seca.
Talvez João não saiba, mas se alguém tem pecados impublicáveis são os sucessivos governantes incapazes de resolver um problema que há um século se repete.
A ação mais efetiva realizada nos últimos 20 anos, recordam moradores, resume-se a uma medida paliativa.
Entre 2008 e 2009, 5 mil caixas d’água de 500 litros foram instaladas. Elas são ótimas, desde que haja água para abastecê-las. E água, justamente água, é o que falta em Bagé.
(Por CARLOS ETCHICHURY E GUILHERME MAZUI, Zero Hora, 10/01/2011)