Do reino animal vem um exemplo de “associativismo” admirável no qual interagem, numa estrutura superorganizada, a rainha, os operários e os soldados cupins. Apesar da falsa impressão de que eles somente causam destruição, na verdade esses insetos agem assim fazendo o que é preciso para alcançarem desenvolvimento e sobrevivência: se alimentarem.
Acontece que a ciência acaba de descobrir que a mesma estratégia dos cupins para digerir o alimento poderá ser utilizada para trazer benefícios inclusive à sustentabilidade. É que um estudo inédito desenvolvido no Instituto de Biologia (IB) pela pesquisadora Flávia Costa Leonardo acaba de identificar duas enzimas presentes na espécie Coptotermes gestroi: a endo-beta-glicosidase e a beta-glicanase, que, clonadas e expressas, de modo a imitar o que o cupim faz, mostram potencial, num futuro próximo, de degradar rejeitos como a palha da cana de açúcar e como o bagaço para serem transformados em energia. Com isso, do lixo se tirará uma valiosa aplicação econômica para a obtenção de biocombustíveis.
Coptotermes gestroi é uma espécie subterrânea que vive a construir túneis, galerias e que não se expõe diretamente à luz, para evitar a desidratação. Pois bem, esta é a espécie praga que hoje está trazendo maiores problemas aos centros urbanos. “Na sociedade, eles são detestados e combatidos com veemência”, conta Flávia Leonardo, que recentemente defendeu sua tese de doutorado sob a orientação de um agrônomo, o docente do IB Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, e com a colaboração de um médico, o hematologista da Faculdade de Ciências Médicas (FCM) Fernando Ferreira Costa, reitor da Unicamp. Este estudo foi realizado entre 2006 e 2010 nos Laboratórios de Hemoglobina e Genoma do Hemocentro e de Genômica e Expressão do IB.
A pesquisadora revela que a espécie avaliada não é originária de terras brasileiras. A praga foi introduzida do sudeste asiático e se adaptou muito bem nos centros urbanos de vários países. Esse cupim é muito conhecido pelo seu perfil destruidor, mais a fama de “comer casa”. Segundo ela, tal espécie pode ser encontrada ainda dentro de prédios, até mesmo no 15º andar. Seu papel é danificar uma série de materiais até chegar à madeira, seu principal hábito alimentar. Ocorre que neste processo o cupim consegue destruir certos materiais como plásticos duros, além de ser um hábil destruidor de fios telefônicos.
Flávia sempre teve como objeto de estudo o cupim, desde que ingressou na iniciação científica, embora com um enfoque mais aplicado à sua eliminação. Suas tentativas foram descortinar substâncias para conseguir exterminá-lo porque, ainda que se reconheça um importante papel no meio ambiente, os cupins mais conhecidos são as espécies pragas, porque elas chamam mais a atenção das pessoas por viverem da destruição de objetos. Eles são igualmente conhecidos como siriris, aqueles insetos que aparecem em dias cálidos, após ter caído uma chuva. Revoam as lâmpadas e são os reprodutores que darão origem à rainha e ao rei, fundando afinal uma colônia.
Além do mais, a pesquisadora pretendia conhecer curiosidades sobre os cupins, por serem considerados insetos sociais. “Eles formam, porém, uma sociedade bem diferente. Dá para se notar como eles trabalham em prol da colônia, muitos deixando de se reproduzir para manter o equilíbrio local”, define.
Conforme a bióloga, são poucos os estudos moleculares envolvendo o cupim. Este inseto, conta ela, não é um elemento isolado. São vários indivíduos diferentes na colônia. No contexto da casta, convivem principalmente a rainha, cuja função é quase que exclusivamente a de botar ovos, mas dela depende grande parte do reinado e a continuidade da espécie; os operários, que fazem o trabalho; e os soldados, que fazem a defesa da “colônia dos cupins”.
A autora da tese sempre buscou uma particularidade ainda não elucidada sobre os cupins. Uma delas consistiu em compreender os genes diferencialmente expressos, ou seja, o que faz um operário se tornar um soldado ou um elemento se tornar uma rainha. O estudo genético muito colaborou para essa investigação, isso porque muitos trabalhos analisavam outras espécies, com avanços expressivos. Agora com relação à Coptotermes gestroi, as pesquisas são novas sobretudo porque os estudiosos fora do eixo em que essa praga é encontrada poderiam não ter um forte interesse em decifrá-la. Fato é que o tema estimulou a imaginação da pesquisadora.
Através do estudo morfológico, garante ela, foram demonstradas mudanças marcantes na casta dos cupins que vão muito além das ocupações de cada qual na colônia. O soldado, por exemplo, possui uma mandíbula e uma cabeça bem maiores que os operários e que a rainha, para utilizá-las contra outros insetos. Os operários mostram um aspecto de maior fragilidade, por isso, quando saem da colônia em busca de alimento, constroem túneis e galerias para se abrigarem do calor e escapar de predadores. Já a rainha é fisicamente maior que os seus súditos, o que impõe sua soberania. “Os cupins via de regra se parecem com formigas. Medem apenas milímetros”, compara a pesquisadora.
No início do trabalho, a bióloga começou identificando duas enzimas. Até o final da investigação, ela já tinha analisado pelo menos 20. Foram então criadas bibliotecas subtrativas, com sequenciamento de operários e soldados. A bióloga conseguiu reunir 110 mil sequências e, dentro delas, foram verificados três mil genes diferencialmente expressos. Essas sequências ficaram armazenadas no Laboratório de Genômica e Expressão do IB, cujo responsável é o professor Gonçalo, ficando sob a guarda de profissionais da área de Bioinformática do Instituto.
Não houve tempo hábil para analisar todas as sequências, relata Flávia Costa Leonardo, mesmo porque, como não existem muitos dados genômicos acerca do cupim, uma parte considerável delas não encontrava correspondente em banco de dados que reúne tudo o que foi conseguido até o momento. A pesquisadora sinaliza que mais de 50% não tiveram identificação.
Teoria
A bióloga relembra que, no passado, uma corrente de pesquisadores defendia que os cupins somente degradavam madeira porque tinham protozoários dentro do seu trato digestivo. Há uns dez anos, eles começaram a identificar enzimas próprias dos cupins e chegou-se à premissa de que de fato existe uma colaboração desses protozoários, ficando claro que os cupins também produzem estas enzimas.
Eles, ao comerem a madeira, não conseguem digerir totalmente a celulose, trabalho desempenhado com maestria em conjunto com os protozoários que vivem em seus intestinos, comenta Gonçalo Pereira. Esses protozoários permitem que Coptotermes aproveitem essa substância atuando como fonte indireta de alimentos e como “residência”. “Essa ação conjunta faz com que os cupins degradem com tal rapidez que em pouco tempo destroem um pedaço de madeira”, informa a bióloga.
Não obstante a madeira ser de difícil degradação, o cupim tem grande habilidade para conseguir isso, procurando obter açúcar desse material, que é formado por unidades de glicose. Trata-se do mesmo açúcar que vai às mesas dos restaurantes e que pode ser usado para produzir inclusive etanol. “Este inseto aprendeu como empregar, em sua evolução, a glicose da celulose, achada na madeira. Assim sendo, tal tema reveste-se de grande importância visto que mundialmente hoje se buscam fontes renováveis de energia”, expõe Gonçalo Pereira.
O trabalho de Flávia integra o contexto do grupo de pesquisa de cupins do Laboratório de Genômica e Expressão do IB. O seu enfoque é para estas enzimas. Ao mesmo tempo, comenta ela, um mestrando estuda as mesmas enzimas no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) para entender a sua forma de ação, se é verdadeiramente eficiente.
A despeito de toda a destruição que o cupim ocasiona socialmente, ele poderia ser bem-visto se houvesse potencial para usar suas enzimas boas para degradar a madeira. “Se isso fosse expresso num organismo que fermentasse, conseguiríamos produzir um biocombustível”, explana a pesquisadora, que reconhece que já se caminha para isso, apontando como grandes incentivadores desta linha de pesquisa no mundo os Estados Unidos e o Japão.
Na presente tese, foi realçada a problemática dos cupins de uma maneira diferente, pontua sua autora, sem pensar na destruição que eles provocam. “Se aprendermos com estes seres como degradar madeira da mesma forma, o procedimento poderá se estender não somente à madeira – também a tudo o que contiver celulose e lignocelulose, o bioetanol”, expõe.
Desenvolvendo atrativos para matar
Por acaso, a bióloga observava os genes diferencialmente expressos porque pretendia encontrar algum produto eficaz para exterminar de vez o cupim, intento demasiadamente difícil, em se tratando de uma colônia. A ideia era fazer um controle com RNA de interferência, técnica que tem um papel importante na defesa do patrimônio genético celular contra genes parasíticos e também no desenvolvimento e expressão genética em geral. “Não adianta acabar com meia dúzia de cupins. É preciso matar a rainha e achar a colônia. Como o cupim estudado é de solo, ou subterrâneo, não se sabe ao certo onde está a colônia, o seu ninho. Ele pode estar embaixo da terra e da casa inclusive. Então é muito mais difícil subjugar esta espécie”, refere.
O que os especialistas têm feito atualmente é trabalhar com atrativos para que os cupins saiam do seu habitat a fim de buscar alimento. Assim sendo, juntamente com este atrativo, vai o veneno que deve matar, o qual é levado de volta à colônia visando acabar com a rainha. Normalmente quando as pessoas pagam por uma dedetização, explica a pesquisadora, o que a empresa especializada neste trabalho promove é a colocação de uma barreira química. Espalha-se veneno em volta da casa e então o cupim não passa mais por ali.
O que Flávia constatou na sua tese foi que, ao se comprovar que existe um tipo de diferenciação em que o operário se transforma em soldado, logo é dele que parte a diferenciação para outras castas. O seu raciocínio foi: “se a gente transformasse um operário em mais soldados, isso acabaria com o equilíbrio da colônia, já que lá existe uma proporção ideal de indivíduos”. Afinal, lembra, são os operários que providenciam a alimentação de todos os componentes da colônia.
(EcoDebate, 05/01/2011)