O Censo Agropecuário de 2006, divulgado apenas em 2010 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), revelou alguns dos impactos do uso de agrotóxicos em larga escala no Brasil. O país é o que mais utiliza produtos químicos no campo, e quem os administra são trabalhadores que, em sua maioria, não foram capacitados para essa atividade insalubre.
Contexto
Desde o começo da Revolução Verde, tem-se debatido o uso de agrotóxicos e suas implicações para o ambiente e a saúde humana. Ao que tudo indica, caminhamos para a aceitação de sua utilização, estabelecendo regras que garantam a proteção das diferentes formas de vida expostas aos biocidas – seria o paradigma do uso seguro, também aplicável a outros agentes nocivos, como o amianto.
A legislação brasileira para a regulação dos agrotóxicos se constrói sob o paradigma do uso seguro. A Lei n° 7.802/89 e o Decreto nº 4.074/2002 atribuem aos ministérios da Agricultura, Meio Ambiente e Saúde a competência de “estabelecer diretrizes e exigências objetivando minimizar os riscos apresentados por agrotóxicos, seus componentes e afins” (Art. 2º, inciso II). Entre elas estão a obrigatoriedade do registro dos agrotóxicos, após (re)avaliação de sua eficiência agronômica, sua toxicidade para a saúde e sua periculosidade para o meio ambiente; o estabelecimento do limite máximo de resíduos aceitável em alimentos e do intervalo de segurança entre a aplicação do produto e sua colheita ou comercialização; a definição de parâmetros para rótulos e bulas; a fiscalização da produção, importação e exportação; as ações de divulgação e esclarecimento sobre o uso correto e eficaz dos agrotóxicos; a destinação final de embalagens etc.
No que diz respeito aos trabalhadores, o Ministério do Trabalho determina que os empregadores realizem avaliações dos riscos para a segurança e a saúde e adotem medidas de prevenção e proteção. Esta Norma (NR 31 da Portaria 3214/78) sublinha ainda o direito dos trabalhadores à informação, ao determinar que sejam fornecidas a eles instruções compreensíveis sobre os riscos e as medidas de proteção implantadas, os resultados dos exames médicos e complementares a que foram submetidos assim como das avaliações ambientais realizadas nos locais de trabalho etc.
Sustentável?
Mas no contexto em que vivemos hoje é possível fazer valer o uso seguro dos agrotóxicos? Vejamos alguns dados.
Em primeiro lugar, é preciso saber a magnitude do uso do agrotóxico no Brasil: somos o país que mais consumiu químicas agrotóxicas no mundo em 2008. Foram 673.862 toneladas – o que corresponde a cerca de 4 quilos de agrotóxicos por habitante. Isto rendeu US$ 7,125 bilhões para a indústria química (Sindag, 2008). São 470 ingredientes ativos, apresentados em 1.079 produtos formulados (Meirelles, 2008).
Diante desse quadro, para garantir o uso seguro dos agrotóxicos, seria preciso fiscalizar 5,2 milhões de estabelecimentos agropecuários, que ocupam uma área correspondente a 36,75% do território nacional. São 16.567.544 pessoas dedicadas ao setor – incluindo produtores, seus familiares e empregados temporários ou permanentes –, o que corresponde a quase 20% da população ocupada no Brasil. Além deles, também seria necessário acompanhar a proteção dos trabalhadores nas categorias de usos não agrícolas, como os comerciantes destes produtos e os funcionários das fábricas. Isso, claro, sem mencionar os moradores do entorno das indústrias e todos os consumidores de alimentos, que podem ser contaminados com doses diárias de veneno.
É nessa hora que pesam as deficiências das políticas públicas. Não faltam exemplos sobre as dificuldades de implementação do receituário agronômico ou notícias sobre o uso de produtos ilegais. Mais que isso, há que considerar as condições políticas para adotar a legislação reguladora: tome-se aqui, por exemplo, a ação incisiva do segmento ruralista no sentido de dificultar a reavaliação pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de agrotóxicos já banidos por diversos países, inclusive a China – como é o caso do metamidofós e do paration metílico.
Qualificação profissional
Além disso, outra dificuldade para adotar medidas mitigadoras de risco e protetoras da saúde que é, de acordo com o IBGE, a grande maioria dos produtores rurais é analfabeta e mais de 80% têm baixa escolaridade. Há também um recorte de gênero: entre as mulheres, que respondem por cerca de 13% dos estabelecimentos agropecuários, o analfabetismo chega a 45,7%, enquanto entre os homens, essa taxa é de 38,1%. As regiões Norte (38%) e Nordeste (58%) concentram os maiores percentuais. Não se pode considerar a priori que baixa escolaridade signifique pouco conhecimento: há extenso e fecundo saber popular e tradicional entre os diferentes grupos de trabalhadores do campo, mas não exatamente em relação aos agrotóxicos, produto da civilização ocidental urbano-industrial.
Agravando esta condição de vulnerabilidade, acrescente-se que há mais de 1 milhão de crianças com menos de 14 anos de idade ocupadas com a agropecuária e quase 12 milhões de trabalhadores temporários, o que dificulta a capacitação e o acúmulo de experiência profissional.
Outro dado importante é que a assistência técnica continua muito limitada, sendo praticada em apenas 22% dos estabelecimentos – aqueles cuja área média é de 228 hectares. O Censo Agropecuário de 2006 mostra que mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos não recebeu orientação técnica (785 mil ou 56,3%). O pulverizador costal, que é o equipamento de aplicação que apresenta maior potencial de exposição aos agrotóxicos, é o utilizado em 973 mil estabelecimentos. As embalagens vazias são queimadas ou enterradas em 358 mil estabelecimentos e 296 mil estabelecimentos não utilizaram nenhum equipamento de proteção individual. E nos que utilizaram, a maioria adotou apenas botas e chapéu.
“Uso seguro”
Para implementar de maneira consequente e responsável o paradigma do “uso seguro” dos agrotóxicos, seria preciso conceber um vultoso e complexo programa, que incluiria a alfabetização dos trabalhadores; a sua formação para o trabalho com agrotóxicos; a assistência técnica; o financiamento das medidas e equipamentos de proteção; a estrutura necessária para o monitoramento, a vigilância e assistência pelos órgãos públicos; e a ampliação da participação dos atores sociais no processo de tomada de decisões, entre outros. Quanto tempo, recursos e vidas demandaria isso?
A intervenção para o uso seguro teria ainda que desenvolver estratégias específicas para os diferentes contextos em que o risco se materializa, considerando, por exemplo, que apenas a soja consumiu a metade destas 673 mil toneladas, seguida pelo milho com 100 mil e a cana com 50 mil toneladas. Ou seja, só nestes cultivos do agronegócio já teríamos cerca de 70% do consumo de agrotóxicos no país. Quais as estratégias para viabilizar o uso seguro neste setor?
Talvez caiba aqui a analogia do “brinquedo perigoso demais para ficar na mão de criança”: precisamos reconhecer que, por enquanto, não temos condições de fazer o uso seguro. E como as consequências dos agrotóxicos para a vida também são graves, extensas, de longo prazo e algumas irreversíveis ou ainda desconhecidas, não seria o caso de priorizar a eliminação do risco, como quer a legislação trabalhista? Não estaria na hora de ouvir ambientalistas, movimentos sociais, trabalhadores e profissionais de saúde que vêm, há décadas, falando e fazendo agroecologia?
(Por Raquel Maria Rigotto* , Revista Sem Terra, MST, 03/01/2011)
Raquel Maria Rigotto
* Médica, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da UFC. Coordenadora do Núcleo TRAMAS. Conselheira Titular do Conselho Nacional de Saúde, representante FBOMS (Fórum de ONGs e Movimentos Sociais para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento).