A cena se repete duas vezes ao dia. A primeira antes do pôr do sol; a segunda, ao entardecer. Os anciões da terra indígena Marãiwatsede chegam devagar, agrupam-se em forma de arco, acendem seus cachimbos. Eles são a autoridade máxima entre os xavantes. A reunião ocorre sempre no centro da aldeia, que fica a 150km de São Félix do Araguaia, no Norte do Mato Grosso. O assunto nestes encontros varia conforme a ocasião, mas o idioma é sempre o mesmo: o xavante. Em Marãiwatsede, a tentativa de preservar as tradições esbarra numa lógica econômica perversa: a relação intrínseca entre a pecuária, a soja e a destruição da floresta. Essa combinação transformou a terra dos xavantes no exemplo mais emblemático da contaminação da cadeia produtiva da pecuária e da soja, ambas expoentes do agronegócio no mundo.
A luta dos xavantes contra os fazendeiros se arrasta desde 1998, quando a terra indígena foi homologada. É uma extensão de 165 mil hectares de terra (ou 1.650 quilômetros quadrados), o que representa uma área superior a do município de São Paulo (1.523 quilômetros quadrados). Só que 90% dela estão ocupados ilegalmente. O Ministério da Justiça e a Fundação Nacional do Índio (Funai) identificaram 68 fazendas em Marãiwatsede. Apenas 11,56% são cadastradas e têm CNPJ acessível. Praticadas ilegalmente dentro da terra dos índios, a pecuária e a soja já desmataram 45% da mata nativa, segundo levantamento do Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam).
Navegue pelo especial multimídia Carne Suja, em que vídeo, infográfico e fotos mostram o avanço dos criadores de gado sobre as terras dos xavantes.
O Grupo JBS-Friboi, maior empresa na área de alimentos do mundo, já teve "carne suja" na sua cadeia produtiva. Só em outubro de 2009 é que as empresas líderes, incluindo Marfrig e Minerva, passaram a rastrear a carne. Em julho deste ano, ficou pronto o primeiro relatório de monitoramento, quando os três grandes do setor excluíram 221 fazendas. Só no Mato Grosso, o JBS tirou da lista de fornecedores 17 propriedades, das quais cinco em terras indígenas, entre elas Marãiwatsede.
Como JBS, Marfrig e Minerva são, segundo o Greenpeace, responsáveis por 36% do abate feito na Amazônia Legal, isto significa que ainda resta enquadrar 64% dos frigoríficos do país.
- Os frigoríficos continuam se alimentando de carne suja. São empresas que vendem seus produtos para os consumidores, por meio de supermercados que ainda não limparam suas prateleiras de passivos ambientais e sociais - denuncia Márcio Artrine, da Campanha da Amazônia do Greenpeace.
Segundo o cacique da aldeia Marãiwatsede, Damião Paradzané, a fazenda Rio Preto seria uma das principais incentivadoras da criação de gado dentro da área indígena. A propriedade está localizada no limite da terra dos xavantes, escoa 120 mil cabeças de gado por ano e aparece na lista do Ministério da Justiça e da Funai. O GLOBO tentou contato com o dono da fazenda, sem sucesso.
Um dos maiores infratores ambientais já identificado pelo Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) mora no Mato Grosso e tem fazenda na terra indígena Marãiwatsede. Os Penasso, da fazenda Colombo, constam da lista de punições com autos de infração por desmatamento ilegal. Recentemente eles foram alvo da Operação Soja Pirata. Numa área contínua de 3,6 mil hectares de terra foram apreendidas 14 mil toneladas de soja. A apreensão seria um caso isolado, não fosse o fato de 30 das 78 terras indígenas do Mato Grosso estarem localizadas em municípios com mais de dez mil hectares de soja.
(Por Liana Melo, O Globo, 13/11/2010)