Que consequências práticas terão os acordos considerados “históricos” pelos 193 países que os firmaram na Convenção da Diversidade Biológica em Nagoya, no Japão, e relatados neste jornal (29 e 30/10) por Herton Escobar? O fato é que se conseguiu chegar a algumas regras consideradas fundamentais para a sobrevivência humana no planeta – ainda que para isso tenha sido preciso “colocar um valor monetário na vida” (31/10).
Os acordos incluem: 1) Um plano estratégico com metas globais para a conservação no período 2011-2020; 2) um protocolo que define regras para o uso de recursos genéticos derivados de plantas, animais e microrganismos, bem como formatos que respeitem a soberania dos países detentores sobre esses recursos e levem à partilha de benefícios entre o detentor e outros países e suas empresas que venham a explorá-los; e 3) a intenção de firmar em 2011, em reunião na Índia, um acordo sobre mecanismos financeiros que tornem viável atingir as metas acordadas.
O ponto de partida é difícil: nenhuma das metas para a conservação previstas para o período 2000-2010 foi atingida. A questão financeira, complicada: em Nagoya os países em desenvolvimento calcularam em US$ 300 bilhões anuais (cem vezes mais que os atuais recursos) os financiamentos necessários para que façam sua parte – e até aqui apenas o Japão se disse disposto a entrar com US$ 2 bilhões. Os países mais pobres reivindicaram também a eliminação de subsídios anuais de US$ 500 bilhões que países desenvolvidos concedem a atividades com impacto negativo na biodiversidade.
Quanto aos recursos genéticos, o tempo vai dizer se será superada a ferrenha resistência dos países industrializados a partilhar benefícios. No Japão, quando os países africanos reivindicaram também o partilhamento dos benefícios de produtos já explorados, os industrializados lembraram que, nesse caso, países como o Brasil e outros deveriam, então, pagar pelo uso secular que fazem de espécies de outros países, como café, laranja, trigo, cana-de-açúcar, arroz, coco, etc. Retrucaram os primeiros que hoje menos de 1% do valor dos produtos industriais derivados da biodiversidade chega aos países detentores dos recursos – quando o biólogo Thomas Lovejoy diz que só o comércio de medicamentos derivados de plantas está hoje em US$ 250 bilhões anuais.
Só no ano que vem, na Índia, vai-se ver quais serão os avanços práticos. Porque os acordos de Nagoya são tratados políticos, não têm força de lei. Cada país terá de criar mecanismos internos para cumpri-los. Mas é tudo muito urgente. Já têm sido citados relatórios como os do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e outras instituições, segundo as os quais os prejuízos na área da biodiversidade têm ficado entre US$ 2 trilhões e US$ 4 trilhões por ano, principalmente por causa de sobrexploração de recursos e serviços naturais, mudanças climáticas, poluição, acidificação dos oceanos, perda e degradação de hábitats (com novas culturas, pastagens, expansão de áreas urbanas). Segundo a Organização para a Alimentação e a Agricultura (FAO), da ONU, em cem anos já se perderam 75% da biodiversidade de plantas alimentares – e mais 22% dos cultivos de batata, feijão e arroz poderão perder-se por causa de mudanças climáticas. Gregory Asner, da Universidade da Califórnia, estima que até o fim do século a perda de florestas tropicais poderá chegar a 82% por causa do clima e da devastação localizada (New Scientist, 14/8).
As metas para 2011-2020 tentam criar caminhos para evitar essa trajetória de perdas. Estabelecem que é preciso reduzir à metade, “e onde for possível a zero”, a taxa de perdas de hábitats naturais, incluindo florestas; para isso será preciso ampliar dos atuais 12,5% para 17% a área global de conservação em terra e de 1,5% para 10% as áreas marinhas e costeiras. Além disso, os governos precisarão recuperar pelo menos 15% das áreas degradadas; reduzir a pressão sobre recifes de corais; aumentar os recursos financeiros para conservação da biodiversidade; assumir o compromisso de incluir esses objetivos nas estratégias nacionais e, em dois anos, ter um plano nacional de ação, que deve ter um capítulo sobre a relação entre a diversidade biológica e as cidades.
O Brasil foi criticado por bloquear discussões sobre monitoramento de danos nas culturas geradoras de agrocombustíveis – mas também argumentou no Japão que 75% das áreas de conservação criadas no mundo desde 2003 estão por aqui. Por isso quer receber recursos da ordem de US$ 1 bilhão por ano para essa área.
Talvez o ponto de maior impacto das discussões tenha sido o pronunciamento do presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, segundo quem “o capital natural das nações deveria ser um item calculado em combinação com o capital financeiro, a produção industrial e o capital humano. As contas nacionais precisam refletir os serviços vitais prestados pelos estoques retidos de carbono nas florestas e os valores que os recifes de corais e mangues significam para a proteção costeira. A conservação de recursos naturais, dos ecossistemas e da biodiversidade é decisiva para o desenvolvimento e para melhorar a vida dos pobres”. Entra-se aí na discussão sobre que fatores estão implícitos no desenvolvimento e devem ser considerados nas contas nacionais (PIB). O acordo de Nagoya propõe até incluir no balanço das empresas o custo de “externalidades ambientais” que tenham gerado. A Noruega já criou um índice para avaliar a situação dos recursos naturais, com 309 indicadores. Na França, comissão nomeada pelo governo e integrada pelo Prêmio Nobel Amartya Sen e Joseph Stiglitz, entre outros, já está propondo a incorporação de alguns valores ao PIB, como o do trabalho doméstico, do trabalho informal.
Quando chegará aos nossos meios políticos e administrativos essa discussão?
Washington Novaes é jornalista.
Artigo originalmente publicado em O Estado de S.Paulo.
(EcoDebate, 08/11/2010)